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DOSSIÊ TROTSKI - 76 ANOS
Postais da vida de Trotski
Santiago Trinchero

Hoje se completam 76 anos do assassinato de Trotski. Suponhamos que, quando nós morremos, vemos o curso de nossas vidas. Também que isso ocorreu com Trotski. Ficção histórica baseada nas publicações das Edições IPS – CEIP “León Trotsky”.

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I

León Trotski, homem marcado para morrer, é um morto que respira. Brinca pelas manhãs, como conjurando:

“Vê, Natalia? À noite não nos mataram, mas você se queixa.”

Não há muito, balearam a habitação em que dormia junto à Natalia. Entre os quase assassinos, havia um reconhecido pintor. Desde então, a Casa Azul em que vivem reforçou a guarda e os cuidados. Aos oficiais da polícia mexicana, junta-se uma escolta de jovens americanos, militantes da novíssima IV Internacional que era tão pequena quanto luminosa. Uma antecipação histórica de uma sonoridade insuportável para a burocracia.

Ramón Mercader é uma obra de mestre da engenharia social que observa o dorso de León Trotski enquanto este alimenta coelhos de seu jardim. Percorrera um longo caminho desde a Espanha Republicana ao pátio da Casa Azul. Naquela viagem, havia se livrado de seu passado, sua própria identidade havia se transformado ao longo dos anos, engrenagem de um plano orquestrado desde as mais altas esferas do stalinismo internacional. Trotski passa a seu lado e caminha em direção ao estúdio seguido por Mercader. Não suspeita de nada. Mercader leva consigo oculto um revólver, uma faca e uma picareta. Optou por esta última. Descarregou um golpe brutal sobre a cabeça de Trotski, que se desequilibra a um lado antes de entrar em colapso, dá tapas em Mercader, grita com uma fúria que o assassino mais tarde dirá que nunca esquecerá e chega inclusive a morder sua mão. Enquanto cai e durante as horas que agonizará no hospital, a metade de um século de que foi protagonista desfilará por sua retina.

II

León Bronstein é um jovem estudante que gosta, nessa ordem, de Matemática e política. Vive em Odessa, cidade costeira do que hoje é a Ucrânia. Rapidamente abraça a luta revolucionária em um mundo e em um tempo que não favoreceria o prolongamento da adolescência, muito menos nas famílias operárias. “Era a época da gente entre os dezoito e trinta anos”. Escreverá, muito depois, o próprio Trotski. “Os revolucionários de mais idade eram poucos e pareciam velhos. O movimento, até então, carecia em absoluto de aproveitadores, vivia de sua fé no futuro e de seu espírito de sacrifício. Não existia ainda rotina, fórmulas estereotipadas, gestos teatrais, truques oratórios feitos de antemão. O máximo de sua ambição era estar na máxima lacuna de tempo possível antes de serem detidos; manterem-se firmes frentes aos gendarmes; aliviar quanto fosse possível a situação dos camaradas; ler, durante a prisão, o maior número possível de livros; escapar o quanto antes do exílio no estrangeiro; adquirir ali conhecimentos úteis e voltar depois à atividade revolucionária dentro da Rússia.”

León Trotski em sua juventude

A vida desses homens e mulheres é contada por anos de deportação ou de prisão, são milhares de existências vividas com uma intensidade que eriçaria os pelos de qualquer produtor de Hollywood, se Hollywood não fosse uma merda. A geração política a que pertencia Trotsky havia herdado o legado teórico de Marx e Engels e dos grandes partidos operários ocidentais, os milhões de militantes da Socialdemocracia ou dos sindicatos tinham referência no pensamento marxista. Essa terceira geração de revolucionários pode sintetizar melhor que ninguém até então as experiências das etapas de acumulação teórica e do crescimento evolutivo “pacífico” no movimento operário. Tomaram em suas mãos esse legado e puseram tudo em questionamento: com poucos anos de diferença entre cada obra, Lenin escreverá Que fazer? (1902), Luxemburgo, Reforma ou Revolução (1900), e Trotsky, 1905 (1907), todas elas escritas ao calor dos acontecimentos fundacionais do século. Suas penas e ações forjaram uma era.

III

A taiga siberiana envolve o comboio, os bosques e pântanos árticos apenas abrem caminho por ele onde desfilam os deportados seguindo o curso do rio Lena, do qual dizem que Lenin havia tomado seu nome em um tributo clandestino a seu professor Plenánov, que em sua juventude assinava com o nome de Volgin pelo rio Volga. Desde que os czares ostentam o poder, essa parte do mundo tem sido o tapete debaixo do qual são varridos todos os dissidentes. Trotski marcha para sua primeira deportação, após ter passado meses em uma prisão de Odessa e de contrair matrimônio em Moscou, para que não o separassem de sua companheira na repartição pelas aldeias de deportados. As colônias cobertas de revolucionários de todas as tendências políticas da Rússia. Os deportados organizam comícios e até têm uma imprensa para passar o tempo, porém o mais importante que organizaram são as fugas: com ajuda de camponeses e contrabandistas podem alguns deles conseguir chegar ao estrangeiro. Foi nesse momento que Trotski se dedicou ao estudo profundo do marxismo. Com Labriola, clamava que “as ideias não caem do céu” e compreendeu o papel delas no complexo emaranhado da evolução histórica.

Trotski no exílio siberiano

Trotski escapa em um trenó puxado por renas em meio à tundra, em uma noite gelada. Sua primeira esposa e suas duas filhas ficam para trás, na aldeia, e conseguem evitar que a polícia se dê conta de sua ausência durante vários dias. Seria recebido na Áustria por Víctor Adler, patriarca da Socialdemocracia daquele país, e uma de suas direções lhe recriminará sobre como o incomodaria em um domingo. Trotski se pôs a medir a relevância do descanso de domingo para esses homens e as tarefas da revolução, que eles atendiam como se se tratasse de um ofício. Como Adler dissipou essa recriminação assim que o viu, a ideia desapareceu de sua mente. Anos depois, comprovaria que essa repreensão foi um cartão postal das profundas transformações que estava sofrendo a Socialdemocracia que Marx e Engels haviam fundado.

Para o jovem Trotski, abria-se um mundo novo que o levaria primeiro a Paris e depois a Londres, onde se encontravam os melhores elementos da socialdemocracia russa com Plejánov, Lenin e Martov à frente. Com 23 anos e uma pena que já havia lhe dado renome em toda a Rússia, o jovem Trotski ingressava na primeira linha dos revolucionários europeus.

IV

Alix von Hessen-Darmstadt, neta da rainha da Inglaterra, faz sua apresentação na sociedade aristocrática russa durante o funeral de seu sogro, o czar Alexandre III. A nova czarina passou a se chamar Alexandra e agora marcha solenemente atrás do caixão. Os cortesãos murmuram um mau agouro: aparece pela primeira vez atrás de um morto. Nicolas II, devoto esposo e czar de todas as Rússias, ri. Os Romanov reinaram durante os três séculos, uma caminhada atrás de um caixão não vai alterar essa ordem natural das coisas.

Com golpe de sabre e peso de cossacos, a dinastia Romanov forjou uma potência continental cimentada nos aspectos mais atrasados do feudalismo, na contramão da modernidade que nascia na Europa. As luzes do iluminismo apenas roçaram o corpo dessa nação, na qual as almas dos camponeses eram compradas e vendidas com a terra, como retrata magistralmente a novela de Nikolái Gogol. Enquanto na Europa o burguês e as cidades haviam sido edificadas sobre as ruínas do Império Romano, as cidades russas haviam sido arrancadas na dureza das estepes, edificadas do zero. Moscou permaneceu, durante muitos anos após a Revolução, pouco mais que uma aldeia ligada ao palácio do czar.

Grandes propriedades nobres coexistiam com os grandes monopólios industriais. 140 mil famílias nobres foram responsáveis por quase a metade das terras cultiváveis no campo, deixando o restante para mais de 100 milhões de camponeses; nas cidades, os operários eram poucos, não mais de um milhão e meio, mas concentradíssimos nas grandes fábricas rivais com as inglesas e alemãs. Enquanto na Europa, entretanto, proliferavam-se as pequenas e médias oficinas, heranças das velhas guildas e da acumulação primitiva do capital, a Rússia de Alexandre II havia importado os métodos mais avançados da exploração industrial. O cultivo trienal de terras existia a escassos quilômetros do em torno do cabeçal rotativo e da fresadora universal. Essas contradições irão se comprimindo como em um mecanismo de combustível às energias revolucionárias da sociedade russa. Lenin tinha razão: bastava uma faísca para incendiar a pradaria. Essa faísca foi a guerra contra o Japão. A Revolução de 1905 mudaria o mundo.

V

León Trotski senta-se frente ao Tribunal. A primeira revolução do século XX foi derrotada, a maioria dos seus líderes se encontra presos, mortos ou fugidos no estrangeiro. É citado um 4 de Outubro de 1906. No próximo mês, o ex-Presidente do Soviete de Petrogrado fará 27 anos. O Tribunal lhe acusa de encabeçar a tentativa de um golpe de Estado, enganando os trabalhadores russos para ferir a divina graça do czar, que em sua misericórdia outorgava aos golpistas a honra de um julgamento justo. Trotski agradece a consideração, mas explica que ele não pretendia dar um golpe de Estado, nem dirigir uma revolução. Que entende que, para as estreitas mentes obscurantistas da polícia e dos letrados da classe dominante, essas palavras podem soar iguais, porém que são radicalmente distintas. Que as revoluções não se desenvolvem nas alturas nem nos corredores dos palácios, mas que pulsam nas ruas, nas fábricas, nas mentes e nos corações de milhões de homens. Que a pulsão que assegura o triunfo da insurreição não é o desejo de matar, e sim a vontade de morrer. Que por essa razão não esteve nunca na agenda do Soviete, como é acusado, o uso de armas e canhões. Que a mobilização popular deveria, antes de se armar, encarnar um sentido coletivo que superasse o medo individual da morte, que apenas assim o soldado tiraria seu dedo do gatilho, negando-se a reprimir. Que a greve geral cria as condições apropriadas para esse tipo de colisões e que sim, que o método é brutal. Mas que a história não conhece outro.

Trotski em sua cela na fortaleza de São Pedro e São Paulo (1906)

O tribunal czarista vê nesse jovem agitador e em seus companheiros bolcheviques a soma de todos os seus medos. Farão com que marchem a uma segunda deportação siberiana. A cabeça de León Trotski trabalha mais rápido do que a locomotiva do trem que os leva ao teto do mundo, uma pena imaginária em sua cabeça vai traçando os esboços do que serão as conclusões mais importantes do século. O soviete, como órgão do poder transicional das classes dominadas, marcaria com fogo a consciência das massas russas e do mundo todo. Se até os dias de hoje as formulações acerca do governo operário tenham adquirido um caráter mais algébrico, o soviete lhe confere uma nitidez inabalável. Trotski sorri a seus companheiros no trem e não encontra palavras para explicar-lhes a sorte que têm todos eles por estarem vivos e terem sido protagonistas desse primeiro assalto às portas do céu.

Tradução: Vitória Camargo

 
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