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CRÔNICA
Tempos de olimpíadas no Rio de Janeiro
Sara Fernandes

Crônica sobre as Olimpíadas no Rio de Janeiro escrita por uma estudante do serviço social.

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Entro no ônibus costumeiro e passo pelos lugares cotidianos.
Me sento no fundo do ônibus e meus olhos começam a passear através da janela.
Mesmo ônibus, mesmo percurso, mesmas ruas.
Cenário diferente.
O estranhamento - mais do que previsto - deu lugar ao nó na garganta.
A música no fone, agora abafada pelos pensamentos inquietantes.
Quantos questionamentos. Quantos gritos calados.
A indignação tomava conta dos meus poros e parecia querer exalar.
Meu corpo começou a ficar quente. Vermelho.

Apesar de já ter gerado muito da reflexão das consequências do evento aqui - e viver muitas delas - foi naquela janela de ônibus, com o olhar atento a cada canto da cidade que normalmente já me atrai a atenção, no cotidiano sentido, que a constatação da perversão e crueldade do Estado doeu mais uma vez.
Doeu profundo.

Os olhos apertavam pra captar cada detalhe.
Embaixo dos viadutos.
Nos cantinhos das ruas.
Nas calçadas.
Na beira do canal.
No meio da praça.
Na porta da estação do metrô.
No ponto de ônibus.
Na porta do comércio.

Cadê os colchões, cobertores, e os únicos e poucos pertences daqueles que ali habitam?
Cadê os moradores que sentados nas calçadas estavam com as mãos estendidas e com um amigo cão ao lado?
Cadê os que se banhavam a beira do canal, e carregavam consigo seus poucos utensílios?
Cadê as pessoas que estavam deitadas no meio da praça, que vendiam suas balas na frente da estação do metrô?
Onde estão aqueles que vivem na pele o descaso e a desigualdade todos os dias de suas vidas? Onde estão os que vivem de todo o caos urbano em suas casas de paredes invisíveis em baixo de um viaduto?
Como o negativo do mínimo lhes é tirado para agradar a sei-lá-quem?
Como eles são retirados?
Para onde são levados?

Essa circunstância não é recente.
A higienização da cidade, já vem de tempos. A repressão nas periferias. O genocídio da juventude negra das favelas. Os moradores de ruas expulsos e retirados de avenidas públicas. Os terceirizados sem salários. As universidades públicas despencando, capengando com o sucateamento generalizado. As escolas-prisões que encurralam os estudantes nos padrões e não os deixam livres às descobertas do conhecimento. Merenda estragada. Salas de aula caindo aos pedaços. Professores espancados pela polícia. Servidores públicos sem salários. Estudantes sofrem repressão nos atos. A comida cada vez mais cara. O deboche que passamos cotidianamente no transporte público. Os direitos negados às mulheres. A saúde pública que está respirando por aparelhos pra sobreviver e está precisando mais de remédios e tratamento do que as filas imensas nas portas dos hospitais.

Enquanto alguns poucos podem pegar o transporte pra ir a um evento de luxo, nós pegamos o ônibus caro, lotado e lento pra batalhar pela sobrevivência, e da janela vemos a cidade-farsa que estamos pagando pra gringo ver. Se nós pobres, que temos moradia, feijão e carne pouca, não somos considerados para o Estado, quiçá os que vivem em volta das tais paredes invisíveis e que de feijão e carne pouca, possuem nenhuma. O alento que é ver cada guerreira vencer nas olimpíadas, enche o peito de orgulho e esperança, mas não deixa ignorar o preço alto que estamos pagando - e uns muito mais que outros. Olimpíadas pra quem? O Estado esbanja a grana do povo, tira da saúde e educação e investe nas suas prioridades frívolas, pra quem usufruir?

Reflexões já conhecidas, mas que inquietam o coração e tiram o fôlego.
Reflexões que podem não gerar grandes frutos, mas que dão mais força pra lutar.
Entre a descrença e a fé. Entre lágrimas e a força que saltava pra mudar mundos.

Sigamos em luta, porque a labuta diária no Rio de Janeiro permanece e a esperança que o raiar de um novo dia chegará, ainda aquece o peito em meio ao caos.

A canção no fone voltava a ecoar, e agora eu escutava.
Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.

 
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