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Por que não pude falar?
Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Ansiedade, se sentir culpado por não estar "se esforçando" e não conseguir dar sua opinião: o que o ambiente doentio da universidade faz com a gente e por que isso é funcional para o sistema em que vivemos.

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Eu estava ali. Eu queria falar. O direito estava dado, as falas abertas, era só levantar a mão. Falavam coisas com as quais eu não concordava, então eu precisava falar, afinal, eu estava ali. "Quem cala consente", não é isso que nos dizem? Quis ter uma capa de invisibilidade para poder estar ali não estando. Para que pudesse ver as aulas e, já que não consigo falar, quando ocorresse algum momento como esse, em que discordo, poder não estar ali presencialmente, sendo contada no quórum, fazendo coro com os silenciosos que supostamente consentem. Pois não consinto. Quis minha capa da invisibilidade para me omitir sem consentir, para não me culpar por não falar, por "não saber falar", e, por conta disso, nem ao menos ajudar a tentar mudar as merdas que causam meu sofrimento e o de tanta gente. Ser invisível, oficialmente. Já que não consigo resistir, não existir. Mas não pude, principalmente porque é isso que querem: que eu me convença de que sou mais uma peça dispensável, com defeito. Um parafuso meio solto, sozinha.

A aula era de sintaxe do português e o raro espaço de debate que existe na educação como é hoje, especialmente na universidade, foi concedido pela professora: percebendo a crise de muitos alunos com a ansiedade que estava sendo causada por aquelas duas semanas de reposição de aulas após a greve, ela considerou pertinente discutirmos o porquê de insistir em sofrer nesse curso, o porquê de estarmos ali, para quê sintaxe do português. "A única matéria que desde o início dos tempos existe e nunca saiu do currículo escolar é a gramática", ela disse a certo ponto da discussão, falavam sobre preconceito linguístico.

Desde o início, desde o surgimento da escola até hoje. Em um sistema em que a educação é privilégio de poucos, por que é tão importante que essa matéria exista e seja como é? Por que é importante que os professores precisem dizer que existe apenas um sistema linguístico e que este é o correto? Que qualquer variação a esse sistema - mesmo que com ela as pessoas se comuniquem muito bem, obrigada - é na verdade um erro e não serve para nada? Porque a gramática diz sobre uma coisa muito essencial para nossa existência: a fala. Precisamos dela o tempo todo. É genialmente perverso então usá-la para justificar inferioridade, excluindo aqueles que não se encaixam no padrão ensinado pela educação burguesa. A burguesia não acha suficiente nos excluir dos espaços apenas nos privando de literatura, arte, ciências exatas etc., mas também inventando um padrão de língua que só ela entende (ou melhor, finge que entende), para que nas primeiras palavras já fique claro quem é a "gente diferenciada". "Antes de opinar vai aprender português", dizem, e em uma tacada só ilegitima-se a opinião daqueles que não tiveram acesso à escolaridade com base no argumento de que "se esse aí não sabe nem falar, que dirá opinar sobre política/arte/etc".

A gramática normativa é um nível de conhecimento que nos tira o espaço de fala, e não é o único. Dentro da universidade isso fica bem nítido. Professor que no primeiro ano passa uma bibliografia impossível de ser acompanhada em um só semestre, principalmente se você trabalha, dizendo que "é um absurdo ainda não terem lido, são clássicos". Professor que passa filme em inglês sem legenda porque "no vestibular tem inglês, se vocês passaram, vocês sabem". Se você foi mal naquela prova feita sob pressão em duas horas, em que tinha toda a matéria do semestre, você deveria "se questionar se tem vocação para esse curso, porque talvez não tenha". Aquela lógica do vestibular de exigir o que não lhe foi dado é repetida todos os dias.

E só você ainda não leu Dostoieviski. Só você não sabe inglês. Só você não sabe lidar com a pressão de uma prova gigante. Exigem de antemão que você saiba um conhecimento que não lhe é passado e querem deixar claro que você é o único ali que não sabe, que você está abaixo, para trás, não tem "vocação". Todos os outros ali sabem mais, alguns fazem questão de interromper as aulas para vomitar sua grande erudição. O que deixam de nos contar é que, primeiro, você não é o único. Como você, vários coleguinhas estão sofrendo com isso. Segundo, você não sabe não porque não quer, não se esforçou o suficiente, mas sim porque existem pessoas específicas para saberem disso, para terem esse conhecimento, e você não é o candidato escolhido. Esse conhecimento não é seu, esse não é seu lugar. Você é pobre, é negro, LGBT, mulher... Seu lugar é nos postos mais precarizados, nos quais isso não é necessário. Enquanto houver capitalismo e sua consequente necessidade de mão de obra precarizada e explorada, esse conhecimento nunca será fornecido de bom grado para todo mundo, já que sem nosso sangue, suor e lágrima não tem lucro pra burguesia. Sem a precarização das nossas vidas o burguês não consegue explorar para alcançar seu lucro e sem justificar de todas as formas possíveis a nossa suposta inferioridade ele não consegue precarizar. Loopping infinito.

É conveniente que nos mantenhamos calados para que não lutemos contra isso e eles mantêm nossas mordaças nos convencendo de que não sabemos de nada e não devemos opinar. Não opine se você não sabe português. Não opine se você não leu os textos para essa aula. Sua opinião não vale, não seja sujeito. E é aí que você entra na piração de que precisa ler tudo o que aparentemente só você não leu para que consiga participar das discussões em sala, das assembleias, do bar com seus colegas...

Não é normal deixar tudo de lado por conta de não conseguir lidar com essa pressão. Não é normal estar tão estressado com a infinidade de coisas para estudar e fazer que você não consegue estar tranquilo com sua família ou ir tomar uma cerveja com seus amigos sem se sentir “culpado” por não estar estudando e “se esforçando”. Ou quase perder seu emprego por estar muito pilhado com isso tudo e esquecer obrigações importantes. Ou se isolar de tudo e de todos por achar que sua presença nessas condições (antissocial, quieto, irritado) é terrível. Se isolar de tudo para estudar e mesmo assim não o conseguir, ter que ler quinze vezes o mesmo parágrafo e não compreender uma só palavra e entrar em desespero com isso, sendo que às vezes ele, na verdade, é um parágrafo confuso mesmo ou será explicado mais tarde ou é só mais uma mostra de pedantismo desnecessária. Nada disso é normal, mas acontece que é “normal”, já que são inúmeras pessoas passando pela mesma situação. Porque o problema não é você, mas sim esse ambiente é doentio. Pare de se culpar, isso não é bom.

A culpa não é um sentimento digno, que diz sobre “reconhecer os problemas para procurar uma superação deles”. Isso se chama balanço. A culpa é paralisante. Faz com que diante de seus problemas você se rebaixe cada vez mais, se coloque como menor, digno de punição por seu erro, "pecador", e, por isso, se curve a uma suposta força maior que, esta sim, saberia o que é correto de se fazer. O cristianismo utiliza desse sentimento para conseguir seus adeptos. O capitalismo também. A não ser que você acredite nessa força maior que virá te salvar e te encaminhar para o Certo e Justo, não se culpe. O capital não salva, inclusive faz o contrário. Sobre esperar uma salvação divina, bem, sugiro que aguardem sentados.

O capital faz isso para sua sustentação e manutenção. Esse aparato silenciador existe porque não querem que coloquemos nossa opinião, pois sabem que a incoerência do capitalismo é bastante simples: aqueles que tudo produzem não têm direito àquilo que produzem. É simples e claramente injusta, não é bom que saiam espalhando por aí. E para justificá-la como justa, a burguesia dá todas as voltas possíveis com suas teorias, deixa tudo muito complexo e faz questão de que você não entenda e ache que eles entendem. Eles não entendem nada.

Por isso se acalme. A educação que nos é passada hoje é isso mesmo: um quebra cabeça de mil peças que te dão para montar no escuro e com partes faltando. Não está nem um pouco a serviço de nossa libertação, mas sim de nos inserir no mercado de trabalho, mercadorias que somos. É contra isso que precisamos lutar e é por isso que sua opinião tão importante: sua voz está em falta. Mas se você se calar, não conseguir falar, tenha calma, continue tentando e, mais uma vez, não se culpe. Esse exercício não é de maneira alguma simples como dizem que é, mas saiba que você não está só.

 
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