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GAMES
O outro lado do Pokémon GO
Fernando Carvalho

TRIBUNA ABERTA | Dentre tantas discussões e problematizações abertas com o jogo que virou febre na última semana, há algumas coisas que precisamos colocar a limpo.

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Reprodução/Nintendo

É verdade que ser negro no Brasil, não é a única e exclusiva mazela em nosso país tão desigual. Ainda, em pleno 2016, temos problemas como a fome, a desigualdade social, a violência que atinge não só, mas principalmente os negros, todas essas mazelas varridas para baixo do tapete e reforçado pelo racismo velado e disfarçado como “democracia racial”, etc. Às vésperas das Olimpíadas, e após a Copa, o Brasil receberá outro grande evento ao qual não está preparado: Pokémon GO. Se caso, você não esteve viajando para um buraco negro ou procurando as esferas do dragão no último mês, com certeza ouviu falar do Pokémon GO. Se você se encaixa em um dos dois exemplos citados, vamos esclarecer: trata-se de um game free-to-play, de realidade aumentada voltado para smartphones, onde saímos em uma aventura pelo mundo real, coletando e colecionando os 151 pokémons clássicos, da primeira geração. Todo tipo de acontecimentos bizarros tem acontecido desde seu lançamento, houve assaltos, bandidos sendo presos por armar emboscadas para treinadores pokémons, encontraram cadáver, entraram em delegacia buscando um dos bichinhos, etc. E toda esta comoção, tem suscitado uma série de questionamentos, como a influência das tecnologias nas nossas vidas, o quanto essas são moldadas por elas, uma série de questões sociais, filosóficas e toda uma nova leva sobre o que nos aguarda em um futuro próximo. Podendo inclusive, levantar questões sobre o racismo.

Reprodução/Facebook

Como toda discussão nas redes sociais hoje em dia, já aconteceu a cisão e a polarização das opiniões: gamers casuais, hardcore, amantes da Nintendo e entusiastas da tecnologia versus aqueles que consideram esta mais uma ferramenta de alienação, talvez a mais eficiente criada pela Indústria Cultural. Já posso me adiantar e declarar o lado derrotado. Ouvimos essa mesma história diversas vezes; seja nossas bisavós falando do cinema ou rádio; seja nossas avós falando da televisão; nossos pais falando dos videogames; ou ainda, o Gilberto Barros falando do Yu Gi Oh. Podemos dizer que essa histeria coletiva é comum, por conta do conflito de gerações e o pouco domínio das novas tecnologias por algumas pessoas mais resistentes, além do estranhamento natural que uma mudança tecnológica traz consigo. Toda crítica à Indústria Cultural é válida, entretanto o mercado do entretenimento absorve estas novas tecnologias há mais de um século, e a sociedade não deixou de avançar, formar pessoas inteligentes, capazes e com incríveis feitos, neste meio tempo. Nos dias de hoje, a preocupação não deve ser sobre o objeto, o celular e suas tecnologias, mas sim sobre o seu mau uso. O que gostaria de dizer, é que o problema não reside no Pokémon GO em si e seus acontecimentos bizarros desde seu lançamento (aqui, aqui e aqui), mas seus usuários e seus comportamentos perigosos, como caçar pokémons enquanto dirigem, por exemplo.

Soulja Boy/Instagram

Logo se a sua preocupação é com a alienação, causada por um jogo que está tirando as pessoas de suas casas e fazendo-as caminhar, descobrir novos lugares em seu entorno, além de observar melhor monumentos e locais que passamos diariamente sem prestar atenção, sua observação é parcial. Quem fez uma declaração deste tipo recentemente, foi o cineasta Oliver Stone que declarou para a revista Variety, que considera Pokémon GO de “um novo nível de invasão”, e que estaria nos transformando em uma “sociedade robótica”. Ele se junta ao coro de pessoas que fazem discurso político sobre uma forma de entretenimento, apontando um ou outro lado, e que teriam seus interesses difundidos pelo jogo. Existem críticas cabíveis (como por exemplo, questões de segurança), e outras que tocam o dedo na ferida das pessoas, exemplo disso é a campanha em defesa das crianças refugiadas sírias.

Todavia, o problema das relações interpessoais estarem focadas no ambiente virtual, precede o Pokémon GO e existe em grande parte, por conta do fascínio das pessoas pela tecnologia móvel e pelas redes sociais, e não estamos sabendo lidar com elas. É um consenso que as novas tecnologias mudaram a maneira como vivemos, como nos comunicamos, como nos relacionamos, mas quando nos deparamos com algumas situações em que podemos perceber na prática o que essas mudanças significam, acabamos reagindo de maneira defensiva. Por exemplo, não é raro ouvirmos críticas sobre festas de adolescentes (como os “bailinhos de garagem”, da minha geração), onde eles se comunicam com pessoas de dentro e fora do ambiente, através do WhatsApp, ao invés de aproveitar a festa, as companhias e conversarem entre si.

Unindo todo esse contexto, ao “horror dos meritocratas” e o medo da inclusão digital: a tecnologia mobile trouxe a democratização do acesso à tecnologia e à internet. À título de curiosidade, em países como Japão e Coréia do Sul, com suas velocidades de internet e infraestrutura (diferente que se pensa no senso comum, nesses países não são todas as pessoas que têm acesso aos cabos de fibra ótica e suas velocidades magníficas, mantendo ainda o ADSL popular, mas obviamente não se compara com a rede sucateada e ineficiente que temos no Brasil), a maior parte do acesso à internet e redes sociais se dá por meio dos aparelhos celulares, enquanto o computador (desktop, laptop, etc.), está mais ligado ao ambiente de trabalho e estudo. Mas devemos notar que em países como o Brasil, com toda a sua desigualdade e ainda baixo acesso à tecnologia, o celular se tornou a porta de entrada ou o único meio de acesso que muitas famílias têm à internet, em parte pela distância dos grandes centros, e o acesso que as mesmas têm à infraestrutura necessária para a Internet fixa. Seja para estudo, trabalho, comunicação ou entretenimento, o uso do celular para acesso a Internet pelos mais pobres é uma realidade, inclusive com o uso de aparelhos mais sofisticados, ocasionando até um certo “ranço” dos mais privilegiados, e uma repulsa a essa democratização – pois tira a sensação de “clube de exclusividades” que a classe média e média alta tanto reclama para si – (sendo até mesmo usado como estratégia de marketing), mas podemos notar que esse fenômeno se espalhou, atingindo as diversas faixas econômicas, nos mostrando que todos os brasileiros querem ser e fazer parte dessa “elite”. O que é importante frisar, é que a maior parte dessas pessoas, não teriam acesso algum, ao que para nós é corriqueiro e comum e ao comprar aparelhos celulares, pagando à prestação estão em última instância pensando em um investimento, já que o custo pode ser até dezenas de vezes menor que um computador, notebook, tablets, videogames, entre outros aparelhos; pois o celular acaba sendo todos estes aparelhos juntos. Não é raro encontrarmos pessoas de baixa instrução e poder aquisitivo, comprar um desses aparelhos para proporcionar aos filhos e familiares, o acesso à informação que eles mesmos não tiveram, existindo inclusive, movimentos de democratização da internet, seguindo esta mesma lógica.

Analisando todo o contexto apresentado até aqui, qual a relação do Pokémon GO e os temas abordados com a questão étnica-racial?

Li recentemente o texto “Warning: Pokemon GO is a Death Sentence if you are a Black Man”, do escritor Omari Akil, que relata sua experiência ao jogar Pokémon GO, e como ela é moldada por sua vivência como um negro em um país em que afroamericanos são um alvo fácil para a polícia, e como algo aparentemente banal e inofensivo pode trazer consequências desproporcionais. Sabemos que se trata uma realidade diferente, e sequer podemos dizer que sabemos como é ser um negro nos Estados Unidos, mas podemos imaginar e traçar paralelos através de nossa própria experiência como brasileiro. Caso não queira ler o post, vou pontuar sua fala e colocar o vídeo.

@OmariAkil/Twitter

“Eu percebi que se continuasse jogando este jogo, eu poderia literalmente me matar. É perigoso jogar Pokémon GO se você for negro?

Eu tenho uma hora antes de ir para o trabalho. Pus qualquer roupa, e abri o aplicativo, e saí para uma aventura. Muito rapidamente meu sonho de caçar pokémons foi destruído, pela triste realidade que existe para um homem negro na América.

Eu gastei menos de 20 minutos lá fora. Cinco desses minutos gastei aproveitando o jogo, um desses minutos eu gastei tentando parecer o mais agradável e inofensivo possível. Conforme eu passei por uma mulher branca visivelmente atemorizada em seu caminho par o ponto de ônibus. Eu gastei outros 14 minutos sendo distraído pelo jogo, pelo pensamento dos incontáveis homens negros que foram abordados pela polícia porque pareciam “suspeitos”, ou imaginado ou o que o uso da segunda emenda faria, se eu passa-se pela janela pela terceira ou quarta vez, à procura de um Jigglypuff.

Quando meu cérebro começou a combinar a complexidade de ser negro na América, com a distraída exploração que é projetado para Pokémon GO. Só há uma conclusão: Eu poderia morrer se continuasse jogando.

Há uma desproporcional chance, que alguém chamasse a polícia para me investigar, por estar andando em círculos. Há uma desproporcional chance que eu leva-se um tiro, enquanto tiro meu RG do meu bolso de trás.

Vamos apenas continuar e adicionar o Pokémon GO, para a longa lista de coisas que pessoas brancas podem fazer, sem temor de serem mortos, enquanto pessoas negras devem ficar verdadeiramente desconfiados."

Ao ler o texto, imediatamente vem à mente um vídeo, que quem já assistiu e/ou já viveu em uma periferia (ou simplesmente é negro), se identificou imediatamente. Apesar de falar sobre os negros estado unidenses, é uma realidade em toda periferia do Brasil, aconselhar seus filhos com as mesmas falas ou ouvir de seus pais, justamente por ser parte da realidade de muitos aqui.

É fácil perceber que nesse ponto, só estão nos acompanhando as pessoas que querem realmente se aprofundar no assunto, ou aqueles que irão rejeitar os argumentos e questionar até o fim “por não se tratar de nossa realidade”. Mas o que as pessoas que negam o racismo no Brasil e o massacre do povo negro, usando como principal argumento para provar que não há “racismo” e sim “preconceito com pobres” não notam, é que os desfavorecidos do país são sim, pobres; isso é inegável, mas ignoram os números que mostram a parcela dessa população pobre que é negra assim como ao não comparar os números de assassinatos de negros e brancos, dentro de uma mesma faixa econômica, com o mesmo poder aquisitivo.

Com uma rápida pesquisa, podemos pegar os dados estatísticos em fontes tidas como “improváveis” de ter este tipo de conteúdo, como a revista Exame e a matéria “8 dados que mostram o abismo social entre negros e brancos”. Veja bem: é um site que não está ligado à nenhuma ONG, algum grupo do Movimento Negro ou de tendência do “time vermelho” (porque um dos novos argumentos, é justamente achar que a causa dos movimentos negros é inerentemente ligado aos partidos de esquerda). Observe os dados e os números apresentados. A realidade está bem distante do senso comum agora, não?

Outro ponto, é justamente a velha questão de culpabilizar a vítima. Sei que surgiram argumentos que há uma probabilidade maior de ser assaltado do que assassinado, ao sair nas ruas empunhando um aparelho celular. Mas, enquanto estou escrevendo este texto, surgiu a “providencial” notícia “Dr. Dre tem celular confundido com arma e é imobilizado na frente de sua casa”. Agora, imagine-se uma criança, correndo pelas ruas no final da tarde, porque surgiu um Pikachu ou Vaporeon na esquina da sua casa, mas você é negro e periférico; se isso pode acontecer com um rapper famoso, em um país em que existe realmente uma parcela da elite isolada, formada totalmente por negros, o que pode acontecer com o garoto mestre Pokémon, de Itaquera, Cidade de Deus, de alguma cidade satélite de Brasília ou da periferia de Recife?

Com certeza algumas pessoas ficarão indignadas com essas afirmações, pois consideram uma realidade distante, mas ao acompanhar o recente caso do menino de 10 anos, assassinado pela polícia. percebemos que as semelhanças são maiores que as diferenças. Relembrando o caso: nas primeiras reportagens, havia a certeza que o menino roubou (junto com um amigo de 11 anos) um carro, e que teria reagido. Com o passar do tempo, o caso foi ficando cada vez mais nebuloso. Ou ainda, a Chacina de Costa Barros. Poderíamos citar inúmeros fatos semelhantes, mas sabemos que todos falhamos em seguir as Regras da Internet, inclusive a mais importante: a de não ler comentários. É nelas que residem o pensamento do cidadão médio em nosso país, e sabemos que sempre surgem os “especialistas” (todos são promotores, júris, juízes e executores). O mais comum é encontrar pensamentos que carregam em última instancia a ideia de que “se morreu, merecia”. Será que nossa observação dessa realidade está contaminada? Será que esse garoto tinha consciência do perigo que estava correndo? Não seria mais fácil acreditar que uma arma foi plantada na cena do crime, ao notarem o erro de confundir o celular com uma arma?

Imagem: Jogador encontra Pinsir, em protesto que aconteceu em Oakland, nos EUA.

O trabalho policial é mal remunerado e ingrato, mas a violência é institucionalizada, e dependendo do ambiente, sabemos que existem dois pesos e duas medidas. Eduardo Suplicy foi detido durante uma reintegração de posse, e reclamou para o policial sobre o desconforto no braço enquanto estava sendo carregado pelos policiais. O mesmo cuidado não foi tomado durante a desocupação de escolas públicas, por alunos secundaristas no ano passado. E todos podemos concordar com a desproporção da ação no segundo caso, afinal tratava-se de adolescentes lutando por um ensino melhor. É inegável, a violência existe, enraizada em nossa cultura. Assim, como o machismo, o racismo, misoginia, xenofobia, etc. Tanto que o lugar comum se mostra através do humor.

Também temos que pensar no caso de autodefesa, de um morador que a casa que está sendo rondada por garotos, ou até mesmo adultos, no seu entorno. Sei que diferentemente dos EUA, não há liberação de armas nem sequer uma “segunda emenda” que garanta isso como direito, mas além de ser algo histórico e cultural, muitos dos próprios americanos e imigrantes residentes nos EUA, já consideram esse modelo antiquado. Entretanto, também é ingenuidade pensar que não há armas de fogo em posse das pessoas, no Brasil. A diferença é que apesar das campanhas de desarmamento, é cada vez mais fácil adquirir uma arma, e há uma forte mobilização de pessoas que pregam o direito de poder portar armas legalmente; mesmo não sendo seguranças, policiais ou bandidos. E uma dessas pessoas, pode assassinar o garoto jogando Pokémon GO, na tentativa de proteger a própria família da mesma violência. Ou em uma visão mais trágica, um menininho atirar no outro com a arma do pai, por inveja da quantidade de pokémons, ou com algum raro específico.

É isso que preocupa. Um garoto branco, correndo sobre a grama de seu condomínio fechado, com seu iPhone, com seguranças e altos muros, não pode ser comparado com o garoto, negro, pobre, da periferia, andando na praça, cheia de entulhos e lixo, portando seu celular comprado à prestação pelo pai (ou que os pais emprestaram para a diversão da aventura), que só quer que o filho tenha uma melhor oportunidade de vida do que ele. É como comparar o tratamento dado ao Eduardo Suplicy e ao estudante secundarista; são ambientes e situações diferentes, e a reação e proporção do emprego da força por parte das polícias, serão diferentes também.

Foto: androidcentral.com

Apesar da reflexão, a intenção não é negar a ninguém a experiência de ser um “treinador Pokémon” ou fazer alguém jogar sem sair de casa. Na verdade, devemos ter cuidado e cuidar de nossas crianças, mas se você e seu pequeno treinador é negro, o cuidado deve ser redobrado. Olhando de forma positiva, é uma excelente oportunidade de levá-lo ao parque, e ter uma tarde divertida juntos. Ou se você quiser jogar, sem ficar expondo seu celular ou o do seu filho, use o PokeRadar, veja onde há pokémons em sua área, vá até o local e inicie o jogo. É como jogar no modo hard. Ou se quiser ser mais raiz ainda, pode tentar o Pobremon. Poderíamos também falar sobre a polêmica da Jinx blackface. Ou ainda, do problema da insegurança das jogadoras mulheres, entre outras inúmeras questões, mas não quero tomar o lugar de fala, e será melhor lermos um texto escrito por uma mulher, que além da propriedade na fala, virá da experiência e sensibilidade feminina sobre o assunto.

O aplicativo existe, é divertido e a tecnologia tem grande potencial, além de mudar nosso entendimento do espaço urbano e digital, assim como suas interações. Mas veja onde e quando poderá utilizar com segurança, e aconselhe seu filho. O sonho de caçar pokémons, seja para quem acompanhou o anime ou jogou em seu Gameboy, não pode ser manchado pelo sangue de vítimas e por estatísticas de assassinatos. Apesar de não podermos nos conformar, nunca, devemos observar a sabedoria e realidade crua, nas palavras de Omari Akil:

“Vamos apenas continuar e adicionar o Pokémon GO, para a longa lista de coisas que pessoas brancas podem fazer, sem temor de serem mortos, enquanto pessoas negras devem ficar verdadeiramente desconfiados.”

 
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