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LITERATURA
As Vidas Secas de um povo oprimido
Nivalter Aires
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Graciliano Ramos nasceu em 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo – Alagoas. Colaborou com diversos jornais, a partir 1906, em 1927 foi eleito prefeito de Palmares dos Índios pelo extinto Partido Democrata, através de uma aliança com as elites locais, por ser um respeitado comerciante com fama de honesto, culto, e principalmente por ser amigo dos caciques do partido, ele próprio prefeito chegou a dizer “escolheram-me por acaso. Fui eleito naquele velho sistema de atas falsas, os defuntos votando”, por mais que tenha chegado a prefeitura pelos meios convencionais para a época, sua administração, a partir de 1928, não foi nada convencional tentou combater a corrupção, cortar gastos, elaborar projetos, abrir estradas, construir escolas, cuidar da limpeza pública e vetar apadrinhamentos políticos que favorecia os coronéis, essa atividade política heterodoxa para a época e local acabou resultando na sua renuncia a prefeitura em 1930.

Em 1929, ainda no exercício da prefeitura, enviou ao Governador de Alagoas um relatório de prestação de contas do município, onde o relatório burocrático recheados de números deu lugar a peças literárias, que chamou atenção devido a sua qualidade literária, os textos foram publicados em jornais de Alagoas. Tendo chegado as mãos do editor Augusto Schmidt, que o procurou em busca de outros escritos que também pudessem ser publicados. Em 1930, após renunciar a prefeitura, mudou-se para Maceió, onde trabalhou como diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, demitindo-se no ano seguinte. Em 1932 escreveu os primeiros capítulos de S. Bernardo, em 1933 publicou Caetés, que já vinha trabalhando a algum tempo, nesse mesmo ano foi nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas – equivalente a Secretária Estadual da Educação de hoje em dia. Em 1934 publicou S. Bernardo.

Em 1936 foi preso em Maceió e levado para o Rio de Janeiro, sob acusação de produzir literatura comunista. Durante a prisão acabou se aproximando de membros do Partido Comunista, a qual veio a se filiar em 1945. Em 1937 foi posto em liberdade no Rio de Janeiro e começou a publicar os capítulos de Vidas Secas na forma de artigos em separado, e em 1938 reuniu-os na forma de livro. Em 1962 Vidas Secas recebeu o Prêmio da Fundação William Faulkner (instituição estadunidense de incentivo a literatura criado pelo ganhador do Premio Nobel de literatura de 1949, William Faulkner) como o livro representativo da literatura brasileira contemporânea.

Em um artigo “O romance do Nordeste” publicado no Diário de Pernambuco, em março de 1935, Graciliano Ramos escreveu que “era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação. [...] Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria”. Esse é o espírito dos romances da chamada Geração de 30.

Vidas Secas (1938) é um livro que mesmo curto precisa ser digerido devagar, cada acontecimento precisa ser sentido pelo leitor. Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia, esses personagens nos guiam pelo Sertão nordestino em tempos de seca, na dura realidade das retiradas, da morada, das dificuldades, da violência e até mesmo do isolamento cultural e social.

O primeiro capítulo – Mudança – dá o tom da narrativa, ambientando a história, introduzindo os personagens e suas respectivas condições. Fabiano como desventurado pai de família com suas responsabilidades, Sinhá Vitória resignada ao seu papel de Mãe e mulher nordestina, os meninos aparecendo muito mais como um peso a ser carregados, e Baleia como personagem mais carismática e também a mais ativa do grupo, inclusive provendo a alimentação, através das suas habilidades de caçadora, nesse momento de necessidade. Outra marca do capítulo é a esperança, que mesmo diante da desgraça se a chuva chegasse seriam “todos felizes [...] A cara murcha de Sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinhá Vitória provocaria a inveja das outras caboclas […] A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo”. Não há dúvida que se trata de uma esperança vã, de inverno, que a estrutura social e fundiária não lhe permitirá ser “dono” da terra.

No capítulo seguinte dedicado a Fabiano, as coisas perecem que vão bem “Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta […] e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera” com a chegada do inverno e a vaga de vaqueiro. É as coisas realmente pareciam ir bem, Fabiano era um homem. Era? Ou “era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros”? Em tempo, diante de suas reflexões pessoais, ele próprio conclui: “Você é um bicho, Fabiano”, e “isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades”. No entanto um dia, “sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia”, mas caso acontecesse “um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. […] Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia”. As confusas reflexões de Fabiano refletem a confusão desse homem-cabra-bicho sobre seu espaço no mundo social, até as reflexões sobre sua linguagem própria evidenciam essa distância entre os “Fabianos” e os homens.

O distanciamento em relação ao mundo social é marcante no capitulo – Prisão – Fabiano com toda sua ingenuidade, sua ignorância, sua desconfiança, sua obediência, não parece se encaixar naquele mundo. Todos pareciam querer tirar vantagem dele. Justamente nesse momento surge o Soldado Amarelo convidando-o para um jogo de azar, no qual vai perder o pouco que tentava economizar. Diante da derrota sai descompensado e depois provocado pelo Soldado Amarelo, mesmo diante de sua tentativa de se esquivar do problema, “impacientou-se e xingou a mãe” do Soldado, que abusando do poder corporativo da polícia acabou por prender Fabiano que “marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. - Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano. Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando - Hum! Hum!”.

“Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças”, os companheiros de cela tentavam consolar “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita”.

Por que apanhar do governo não é desfeita? Por que um pobre diabo como Fabiano encontrava-se preso? “Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo […] Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?”. Certamente que Fabiano não poderia refletir sobre a culpa de uma sociedade de classe, onde ele era o subalterno do subalterno, uma sociedade que lhe nega a própria condição de homem.

Como se fazer homem é outra questão relevante, respondendo a violência com mais violência? Entrando para o Cangaço? “O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. […] O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo”. Mas Fabiano não eram homem, era um cabra, por cima um cabra pai de família que se resignou a voltar para casa.

O capítulo dedicado a Sinhá Vitória, apresenta ela como a típica dona de casa, dedicada aos seus afazeres domésticos, na medida que apresenta seu sonho com uma cama de lastro de couro, visto que “tudo ali era estável, seguro [...] Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles - e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que aperreava Sinhá Vitória”. O quão simples pode parecer sonhar com uma cama, e mesmo assim é algo profundamente distante da realidade deles diante de sua pobreza.

Os capitulo 5, 6 e 7 dedicados aos meninos, o mais novo, o mais velho e ao relacionamento familiar, respectivamente, são na verdade retratos de como se reproduzem os “Fabianos”, a admiração do mais novo pelo Vaqueiro Fabiano montado em seu gibão de couro e seu imponente trabalho seguido do seu desejo de ser como o pai; a curiosidade do mais velho barrada pela falta de conhecimento dos pais, a falta de comunicação e qualquer tipo de instrução. Enfim o cenário não permite nada diferente da criação de dois futuros “Fabianos”, presos aos mesmo dilemas e problemas do pai.

Festa, o capitulo 8, se dedica com destaque aos problemas de convivência e sociabilidade daquela família, mesmo as roupas que deveriam usar para a festa de Natal na cidade, onde deveriam ir a novena lhes era incomoda, inclusive machucando fisicamente. “Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas”, os meninos ficaram bestificados com a cidade, que certamente se tratava de uma cidade muito pequena, e mesmo assim tudo parece novo, grande, diferente de todo o mundo que eles conheciam, para eles era impossível conservar “tão grande soma de conhecimentos […] Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem”. Impossível aquele mundo “Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo”. Como é possível uma classe, que na ausência de definição melhor podemos entender como camponesa, tão alheia ao capitalismo mesmo estando submetido a sua exploração? A única explicação possível é o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, desenvolvimento desigual onde coube ao Nordeste brasileiro o papel de profundamente atrasado, e o desenvolvimento combinado partindo da diferença no desenvolvimento social e a combinação de elementos pertencentes a diferentes etapas da organização social.

Diversos momentos da história são tristes, não há como negar, mas o destino da pobre Baleia é de cortar o coração, “cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente”, sem dúvida uma das personagens mais carismáticas da literatura brasileira. Triste fim ficar doente, triste fim precisar ser sacrificada, triste fim ser Fabiano a precisar fazê-lo.

O sistema de exploração a qual estava submetido não era entendível para Fabiano, ele “recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira”, ou seja precisava vender o que ganhava em animais para poder alimentar a família, de modo que constantemente precisava de dinheiro adiantado, ao qual pegava com o patrão em troca dos seus bichos, mas sempre tinha uma danado dum juro que comia todo seu dinheiro. Sinhá Vitória que tinha miolos fazia as contas de quando eles deveriam receber do patrão “mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinhá Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros”, “com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo?”, “O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda”, “Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens”. E o que havia de fazer, estava submetido a exploração “Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza”. Mesmo em toda a brutalidade e falta de conhecimento Fabiano no seu âmago “sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele [...] Não havia paciência que suportasse tanta coisa”, sentia a injustiça a qual era submetido por todos os lados, sentia que a culpa não era sua, ou mesmo de um elemento isolado, não era só a seca, ou somente o patrão, mas todo um sistema ao qual estava submetido, não saberia explicar se fosse perguntado, não sabia definir nem para si, mas sentia.

Um momento de tensão no romance é quando Fabiano nos seus afazeres de vaqueiro encontra no meio do mato o Soldado Amarelo, veja que situação Fabiano de facão na mão, diante do Soldado que havia provocado sua prisão e surra na cadeia, o que fazer? Afinal era “um sujeito violento, de coração perto da goela”, como agir naquela fração de segundo? “Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado”. “O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia” Fabiano “não quisera matar um cristão” “Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho […] - Governo é governo […] Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo”. Graciliano Ramos, nesse capítulo, fornece um perfeito exemplo para o entendimento de um dos conceitos de hegemonia em Gramsci que aparecem nos Cadernos do Cárcere, hegemonia como uma particular articulação entre força e consenso, naquele momento, naquela fração de segundo, Fabiano poderia facilmente ter matado o Soldado Amarelo, não havia nenhum impedimento físico, afinal era cabra valente, estava armado e detestava aquele sujeito, então o que segurou sua mão naquela fração de segundo? O consenso, afinal governo é governo mesmo agindo com violência e injustiça.

Como não poderia ser diferente, em se tratando do Nordeste, a história é cíclica com os momentos de seca e chuva agindo de modo imperativo na vida daquele povo. O “bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo”, e assim começa mais uma jornada de retirada. “Porque não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? […] Porque haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos?” Por que suas vidas haviam de ser dominadas por essa dinâmica de pobreza e submissão?

Longe de dúvida “Vidas Secas” é um dos maiores clássicos da literatura brasileira, e legitimo representante da Geração literária de 30. É um romance revolucionário.

 
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