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ESTRATÉGIA INTERNACIONAL | ECONOMIA
Diante dos oito anos do começo da crise mundial
Juan Chingo
Paris | @JuanChingoFT

O presente documento, elaborado em setembro de 2015, foi apresentado na Conferência da Fração Trotskista da Europa que se realizou em Paris em 5 e 6 de dezembro de 2015.

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A crise econômica entrou em uma nova fase, uma das mais complexas na história do capitalismo, depois de oito anos de seu início: a crise dos chamados “países emergentes”. Este elemento mostra a importância do método e das bases do marxismo para analisar os difíceis acontecimentos da economia, a geopolítica e a luta de classes a nível mundial no começo do século XXI. Quando, logo depois de uma forte queda atingindo o pico do que se chamou a Grande Recessão de 2008/9, a economia chinesa, graças a um monumental plano de estímulo e investimento, se recuperou fortemente e arrastou com isso os países semicoloniais produtores de matérias primas, entrou em voga a famosa teoria do descolamento, que sustentava que esses países haviam escapado da crise mundial que tinha seu epicentro nas grandes potências imperialistas. Se podemos dizer que a China atuou durante oito anos como fator contrário ao desenvolvimento da crise mundial, sua dependência, em última instância, do mercado dos grandes países capitalistas significava que, mais cedo ou mais tarde, os efeitos do encolhimento do mercado mundial também iriam afetá-la, como começávamos a ver mais abertamente nos últimos meses, e inclusive antes. Por isso, contra a moda dos emergentes[1], afirmávamos que

o que ocorreu é que a transmissão da crise das economias avançadas a estes foi postergada. Dito de outra maneira, a estabilidade relativa atual de que gozam estes regimes, comparada com a crise econômica e a debilidade política dos países centrais, não nos deve impedir de ver que esta é uma tendência conjuntural, uma discordância dos tempos da crise. Já na crise de acumulação capitalista da década de 1970 se havia dado um fenômeno similar. Nesse momento, foi a reciclagem dos petrodólares o que evitou que a primeira grande crise capitalista desde o fim do boom do pós-guerra golpeasse imediatamente a periferia, dando lugar a um período de “dinheiro fácil”[2].

Brasil, um dos epicentros da atual fase da crise

A combinação entre a crise econômica, política e social fazem do Brasil um dos epicentros da fase atual da crise mundial, talvez seu elo mais débil (compartilhando esse status talvez com Turquia e África do Sul). Frente a todos os que se iludiam de novo com o sonho do Brasil potência, que marcou a estabilidade dos anos lulistas, foram também as categorias e o método do marxismo aqui resgatados os que nos permitiram não cair nos cantos de sereia e resistir, apesar do consumismo reinante, ao inevitável giro da situação. Desde 2003, o Brasil acumulou uma entrada de fundos de um trilhão e meio de dólares, que instigou ao crédito barato. Mas, frente ao giro da situação internacional, este capital agora bate em retirada e deixa sem base financeira o mercado doméstico. E isso coloca luz agudamente às fortes contradições e debilidades da economia brasileira dos últimos anos. Comparada com a crise de 1980 que marcou o fim do chamado milagre brasileiro, a atual, ainda em seu início, pode ser mais grave. É que o boom anterior da economia brasileira da década de 1960/1970 se baseou em uma relativa industrialização, enquanto o último boom se desenvolveu em meio a uma desindustrialização relativa e a transformação do Brasil em uma potência agrícola e mineral, mas cada vez mais dependente da provisão de matérias primas no mercado mundial e, por fim, submetida à deterioração dos termos de troca das mercadorias e dos fluxos das altas e baixas dos mesmos. Por isso, longe de converter-se em uma nova potência, a crise política em curso busca forçar ao governo uma abertura econômica ao grande capital internacional e a uma onda de privatizações, no petróleo e nas contratações de obras públicas, a menos que os trabalhadores e os setores populares que começaram a despertar em junho de 2013 evitem.

A que se deve o caráter duradouro da crise atual?

Como dizíamos no início, estamos frente a uma das crises econômicas mais complexas e duradouras na história do capitalismo e em uma situação socioeconômica que pode se definir como “não resolvida”. Mas, antes de nos aventuramos a discutir como pode evoluir, nos perguntamos: porque tem essas características? Para responder, vou me basear nos elementos apontados pelo economista marxista francês Isaac Joshua, que escreveu um dos livros mais interessantes sobre a crise de 1929 e que o CEIP León Trotsky[3] traduziu para o espanhol e que seria bom se pudesse ser traduzido ao português para contribuir com o debate da crise.

Em um trabalho de fins de 2013, Joshua chamava a atual crise de “Uma Crise de Terceiro Tipo”[4], distinguindo-a das crises do capitalismo do século XIX e da Grande Depressão. Fazendo uma história das crises, denomina as do século XIX e inclusive até as crises de 1900, 1907 e de 1913-1914, ou seja, anteriores a Primeira Guerra Mundial, como de “regulação competitiva”. As mesmas se resolveram pela forte queda nos custos de matéria prima, os juros e o pagamento de parcelas atrasadas da dívida e, especialmente, dos salários. Depois de uma extensa destruição de capital que permitiu a recuperação de benefícios, a recuperação se produziu apoiada em vários setores motores de produção de inovação recente (trata-se na maioria dos casos dos trens e posteriormente da indústria elétrica ou dos bondes). Estas crises foram intensas, mas curtas.

A crise de 1929 foi muito intensa e longa. O capitalismo entrou num período onde a relação salarial se generalizou na produção de mercadorias, deixando para trás toda uma série de setores que se baseavam na pequena produção capitalista (camponeses, artesãos, etc.) e que, segundo o autor, atuavam como colchão da queda econômica. A “homogeneização do meio” multiplica o impacto inicial, uma vez que se produz a crise de superprodução, na medida em que se propaga e amplifica a mesma. Pelo mesmo motivo, não se pode repetir a saída do passado. Como disse Joshua:

...a flexibilidade de baixar salários é na verdade uma vantagem para o equilíbrio do sistema, na medida em que a proporção salarial representa só uma pequena porcentagem da renda nacional. Esta flexibilidade permite então, em uma recessão, a recuperação da parte dos benefícios em valor acrescidos das empresas, evitando repercussões demasiado violentas sobre o gasto dos consumidores e, portanto, sobre a demanda global. Desde o momento em que os salários cumprem um papel dominante na renda nacional, como é o caso de 1929 nos EUA (60%), a flexibilidade para baixo se converte em uma séria ameaça na totalidade do sistema, que pode o empurrar para o fundo durante as fases de involução. Portanto, parece que a gravidade da grande crise dos Estados Unidos, sua capacidade de unir intensidade e duração, é que a regulação das competições (em particular, a flexibilidade dos salários mais baixos) se manteve em um contexto que se modificou por completo com o assalariamento.

Como já explicamos em outros trabalhos, a saída da Grande Depressão esteve ligada a fatores políticos, especificamente, a forte destruição de forças produtivas adicionais provocada pela Segunda Guerra Mundial e seus resultados, que permitiram a reativação da acumulação capitalista.

Por último, a crise atual, comparada com esta última e tomada de conjunto, parece relativamente menos intensa, mas sua duração faz com que o final seja ainda indeterminado e que, como resultado, termine provocando convulsões econômicas, sociais e geopolíticas impensadas e que, diferente da crise de 1929 (gerada pela dupla emergência dos EUA em nível mundial e Alemanha em nível europeu, e que em alguns anos de fenômenos políticos extremos como o nazismo na Alemanha, o início da revolução e da guerra civil espanhola, o ascenso de Roosevelt e o New Deal nos EUA etc.) não atuaram como causas motoras da crise. Retomando a tipologia anterior, havia toda uma série de fatores contra cíclicos herdados do período de pós-guerra que foram atingidos pela ofensiva neoliberal e ainda têm um peso significativo na economia[5]. Isso cumpre um papel de evitar uma queda maior, mas dificulta a saída da crise. Por outro lado, a mundialização do capital produtivo desenvolvida nas últimas décadas tem gerado um salto qualitativo na tendência à homogeneização: contrariamente do que havia sido o caso durante a Grande Depressão, hoje continentes inteiros como Ásia, países imensos como a China podem estar englobados na tempestade de uma crise econômica, amplificando-a, por sua vez e agregando seus próprios desequilíbrios a uma economia mundial em crise estrutural[6].

As dificuldades do processo de acumulação que têm se manifestado desde a década de 1970, como consequência da forma que se saiu da mesma, ou seja, sem uma grande destruição das forças produtivas, apesar dos ataques ao salário, do desenvolvimento de novas invenções como a informática, não geraram - mesmo levando em conta a recuperação dos lucros - um salto no investimento de forma sustentada e generalizada, como depois do boom do pós-guerra: pelo contrário, existe um paradoxo entre a recomposição das taxas de lucro e a debilidade de acumulação. Enquanto isso, também se observa uma tendência à superacumulação em determinados nichos da economia mundial – desde fins dos anos 1960 até a crise asiática de 1997 nos chamados NIC e novos NIC[7]; mais tarde, desde meados dos anos 1990 até 2000, o boom da “nova economia”, motorizada pelas telecomunicações e a informática; posteriormente a chamada bolha imobiliária com epicentro nos EUA, Espanha e Inglaterra, ainda que de extensão mundial; e, simultaneamente, o denominado “milagre” econômico chinês - nichos de superacumulação que são esquecidos pelos defensores unilaterais da tese de financeirização da economia.

Dito isso, não significa negar o papel que a hipertrofia do setor financeiro cumpre sobre a economia, dando origem a um contínuo boom creditício e à crescente liquidez do sistema permitindo durante um tempo a recuperação da taxa de crescimento, superando de forma artificial os obstáculos mais estruturais à acumulação, mas aumentando a crise monetária e bancária devido às crescentes tendências especulativas[8]. Em síntese, as contradições se agudizam. Como disse Isaac Joshua, “a intervenção do Estado, por um lado, e a baixa flexibilidade dos salários e dos preços, por outra parte, reduzem a magnitude da crise atual (…) A globalização do capital produtivo e a financeirização da economia real aumentam a instabilidade”.

Mas, antes de tudo, uma crise estrutural

As modificações que estamos pontuando podem ser observadas no seguinte gráfico, onde vemos como os ciclos e a crise financeira são mais longos e mais profundos, aumentando a rapidez do sistema para sair da crise:

Como vemos, a duração e a amplitude do ciclo financeiro tem aumentado notadamente desde meados dos anos 1980, reflexo da liberalização financeira e das mudanças na política monetária uma vez consolidada a ofensiva neoliberal. Isso permite que o ciclo financeiro seja mais longo que o tradicional ciclo de negócios. Pode se ver como esse último, por exemplo, na recessão do começo dos anos 2000, o chamado dotcom crash [bolha das empresas de telecomunicações “ponto com”, em português – NdE], originado pela superacumulação e superespeculação no ramo de comunicações e informática, pode ser continuado pelas políticas acomodatícias do FED, que permitiram que a recessão não se agravasse graças à continuidade do ciclo financeiro. Por sua vez, as crises recessivas são mais agudas quando coincidem com a fase de contração de um ciclo financeiro, como foi o caso de 2008/9. É nestes momentos em que entramos em uma crise estrutural, onde a crise do processo de acumulação se combina e se reforça com a crise financeira, dando lugar a uma mudança profunda nos paradigmas de crescimento. É esse caráter, e não a forma da mesma, como disse Joshua, o que lhe cria um parentesco com a crise dos anos 1930; a crise de acumulação da década de 1970 ou no nível de crise de países a crise japonesa de 1992, ou nos países atrasados, a crise asiática de 1997/8 ou a crise da dívida latinoamericana e a posterior década perdida ou, portanto, um período estendido de uma década ou mais de estancamento e novas crises na América Latina.

Evitou-se a grande Depressão.... mas a um elevado preço

Se por um lado a burguesia mundial teve êxito em evitar a repetição de uma Grande Depressão postergando para mais à frente no tempo os ajustes, ao mesmo tempo a resposta dada não fez mais que incrementar os desequilíbrios e contradições, o que por um lado a tem impedido de conseguir ainda um novo paradigma como foi o neoliberalismo que a permitiu a sua maneira fechar de alguma forma a crise de acumulação aberta com o fim do boom, e por outro lado, não se pode descartar, pelo contrário, aumenta a possibilidade, de novos cenários catastróficos financeiros e econômicos.

Isso se deve a que, por um lado, os ajustes ao salário e a maior exploração do trabalho conseguidos pelos capitalistas graças à dureza da crise, enquanto têm provocado uma melhora da rentabilidade, as perspectivas de investimento produtivo não a acompanhou, devido a que a demanda ainda é incerta. A grande maioria da mais-valia não investida – o que Marx chamava de pletora de capital – tem se voltado às finanças e às ondas de especulação.

Recentemente, um artigo da CNN dizia que as empresas estadunidenses não financeiras entesouraram quantidade recorde de dinheiro em espécie. Em tom jocoso dizia:

Se essas titãs dos negócios realmente amam House of Cards podiam desfrutar adquirindo o Netflix 53 vezes. Inclusive poderiam comprar a Apple, o Facebook e o fundo de inversão Berkshire Hatahway de Warren Buffett e ainda ficariam com dinheiro para brincar.Em outras palavras, as grandes empresas estadunidenses têm literalmente mais dinheiro em espécie que o que sabem que fazer com ele. A montanha de dinheiro em espécie em abóbadas corporativas subiu a um recorde máximo de $1,4 trilhão durante o quarto trimestre, segundo uma análise FactSet das 500 S & P”. E outra nota da mesma época afirmava: “Em lugar de contratar trabalhadores e investir no futuro, as empresas estão sentadas em seu dinheiro ou devolvendo-o aos acionistas. Nenhuma das duas estratégias faz bem a economia real.... Elas não veem suficiente demanda de seus clientes para justificar o investimento em grandes projetos para o futuro.

Este movimento, por sua vez, foi estimulado e alentado pelas ações e decisões da Reserva Federal e dos bancos centrais do mundo, que responderam à crise de 2008/9 com medidas sem precedentes. Por sua vez, quando os efeitos de reativação destas medidas começaram a decair, as tendências à desaceleração da economia mundial que se desenvolviam em 2012 estimularam uma série de novas medidas desesperadas de estímulo monetário sem limites, como os programas de afrouxamento quantitativo europeu e japonês, que seguiram medidas similares implementadas pelos Estados Unidos desde o ano de 2008 e alguns anos mais tarde pela Inglaterra. Anos de taxas zero, trilhões de novo “dinheiro” e intervenções e manipulações sem precedentes tem deixado a economia e mercados globais altamente vulneráveis.

Os principais focos de vulnerabilidade são o derretimento da bolha de capital fictício e a crise da China e os mercados emergentes, principais zonas de acumulação do capital nos últimos anos.

A Bolha de capital fictício e seus limites

A bolha ou inflação de capital fictício, isto é, não garantida pela geração de mais-valia, não pode se sustentar indefinidamente. Trilhões de dólares tem sido canalizados aos bancos e agentes financeiros que dominam os mercados - $4 trilhões só do FED! - para pagar as dívidas impagáveis da elite financeira e facilitar seu posterior enriquecimento sobre a base das atividades especulativas e parasitárias. Esses subsídios massivos para os super ricos têm feito pouco para reativar a economia real, que na realidade só se recuperou parcialmente desde a queda de Wall Street de setembro de 2008. Em troca, asseguraram um aumento de quase três vezes no preço das ações e um maior crescimento das atividades financeiras, tais como fusões e aquisições, recompras de ações e aumentos nos estoques existenciais de dividendos que desviam recursos de investimentos produtivos. Os níveis de investimento nos principais países capitalistas são, ao menos, 20% abaixo dos níveis prévios da crise. Durante todos estes anos a prática central que a abundância de dinheiro barato alentou nas corporações não financeiras foi a recompra de suas ações para fazer aumentar artificialmente seu valor acionário. A abundância do crédito e o dinheiro fácil explicam também que a muitas firmas seja conveniente endividar-se, seja para reestruturar passivos alargando os vencimentos e aproveitando as baixas taxas de juros, ou para financiar a recompra de ações. Outra prática ligada, que tem crescido de maneira sustentável nos últimos anos, mas que em 2015 explodiu, são as fusões e aquisições, no marco de que muitas firmas estão sofrendo uma falta de crescimento de recursos. Assim, as mega fusões em 2015 superam o recorde de todos os tempos. Em 18/09 [de 2015] o Financial Times informava que

Com o acordo de $17 bilhões do grupo telefônico francês Altice para comprar a empresa norteamericana Cablevisión, o valor total das transações de $10 bilhões alcançou $1,19 trilhão, superando o anterior máximo estabelecido em 1999, exatamente antes do colapso das pontocom. O número total de ofertas gigantes subiu para 47 – uma a menos que o recorde de 2006, exatamente antes da crise financeira.

Mas se a história é um guia, esta atividade poderia estar alcançando um pico. Os dados da Dealogic mostram que uma sustentada atividade de fusões e aquisições dos ciclos de 1997 a 2000 e de 2005 a 2008 foram seguidas por fortes quedas dos mercados acionários e uma diminuição correspondente das fusões e aquisições. Entretanto, apesar disso a fúria continua: nos últimos meses, a maior cervejaria do mundo, AB InBev, revelou seus planos para fundir com a cervejaria rival SAB Miller. Um acordo que provavelmente custaria mais de US$ 100 bilhões e se encontra entre as seis maiores aquisições de todos os tempos. Esta febre de investimentos e especulações vai ser posta à prova quando o ciclo do dinheiro mudar e se encarecer (questão que apesar de seus temores e reticências deixa planejada a decisão do FED), o que faz com que seja mais concretas as perspectivas que se aproximam de um crescimento econômico mais lento, e a redução da rentabilidade, que vão dificultar no futuro a capacidade para servir a dívida. Como disse um analista frente à fúria da atividade M&A: “Por ora, a maioria das transações que vemos são estrategicamente sólidas, mas estas vão ser postas à prova quando o ciclo inevitavelmente mudar”. Neste momento, a acumulação de crédito sem contrapartida na acumulação real, ou a fenomenal bolha de capital fictício, ou seja, títulos que representam capital inexistente vão sair à superfície, com consequências catastróficas para a economia.

O estourar da superacumulação e superespeculação na China e os emergentes: o elo débil do sistema mundial

Para além da discussão sobre se a conjuntura econômica na China rapidamente vai reabsorver os recentes golpes, como anunciam alguns economistas, o que não pode deixar dúvidas é que os acontecimentos dos últimos meses quebraram a credibilidade e a aura de que gozava a China, e a gestão econômica da burocracia restauracionista do PCCh. Como já começa a existir em numerosos países emergentes, como no caso do Brasil, o estourar da superacumulação e superespeculação na China e nos emergentes constituem o elo débil do sistema mundial.

Existe em primeiro lugar o enorme perigo que significa a enorme desalavancagem[9] dos carry trades[10] que se acumularam nos últimos anos. A dívida em dólares da jurisdição dos EUA chegou a $9,6 trilhões, de acordo com os últimos dados do Banco de Pagamentos Internacionais (BIS, por sua sigla em inglês). Os empréstimos em dólares aos mercados emergentes se duplicaram desde a crise do Lehman a US$ 3 trilhões. O mundo nunca esteve tão alavancado[11] e, portanto, tão sensível a qualquer mudança em sinais monetários, como se viu há alguns dias frente à ameaça (não concretizada) de uma minúscula subida das taxas de juros pela Reserva Federal norteamericana (FED). O BIS diz que a dívida total dos países ricos aumentou em 36 pontos percentuais para 265% do PIB desde o pico do último ciclo, e em 50 pontos para 167% do PIB na Ásia, América Latina, Oriente Médio, Europa do Leste e África. A ideia de que uma elevação das taxas de juros do FED não afetaria estes capitais sobre a base de que uma parte importante dessa dívida está em moeda local foi desmentida pelo próprio BIS, que calcula que em média 100 pontos desse movimento nas taxas dos EUA induzem a 43 pontos do movimento no custo do endividamento de moedas locais. Mas, de maneira mais estrutural, a superacumulação em determinados ramos de produção, em especial do setor manufatureiro chinês e do resto da Ásia, enquanto o setor produtor de matérias primas a nível global, o excessivo fluxo de capitais e as bolhas financeiras e imobiliárias a que deram origem, são as razões de fundo que prenunciam uma forte crise nesses países, como já começa a se ver em vários países dos chamados emergentes. É que por trás dessa tendência especulativa e orgia da dívida se desenvolveu uma forte tendência à superacumulação na economia real. Os altos preços das matérias primas levaram a um frenesi do investimento do setor. A crise de 2008 produziu uma pausa, mas continuou nos três anos seguintes. Enormes quantidades de capital se verteram em projetos de alto risco. Maior que a redução das entradas devido à queda dos preços de matérias primas, o principal problema para os países produtores é o estourar de uma bolha de investimentos. Um caso paradigmático é a economia da Austrália, que caminha para uma queda devido à explosão de sua bolha de investimento de minérios. O pior ocorrerá apenas quando o sistema financeiro acabar com os ativos improdutivos que estão relacionados. Muitas economias da África já estão sendo afetadas. Tem havido uma febre de ouro na África. As grandes empresas mineiras estiveram vertendo dinheiro. À medida em que o dinheiro se esvai, começa a haver consequências graves. Muitas economias africanas têm construído sua base de custos supondo novas entradas de capital. Será difícil se adequar à sua ausência. Este é já o caso da Zâmbia, um grande centro de minérios cuja exportação de cobre lhe permitiu gozar de uma década de boom econômico, quando a economia chinesa estava expandindo. Neste último ano de 2015, à medida em que as multinacionais instaladas no país, como o gigante de matérias primas Glencore ou as empresas chinesas, suspenderam a produção nas minas, sua moeda atingiu níveis cada vez mais baixos da história em relação ao dólar, desvalorizando 30% desde janeiro do ano passado, sendo a moeda de pior performance depois da Bielo-Rússia, segundo Bloomberg. Durante os anos de auge, a mineração atraiu bilhões de dólares em investimentos. O setor foi um motor chave da economia da Zâmbia, que desfrutou de um crescimento médio anual do PIB de 6,4% na última década – uma das taxas de crescimento mais aceleradas do mundo. Agora, com a mudança de sorte, Lusaka está girando até o FMI em busca de ajuda, com pouco êxito no momento devido a incerteza política. O destino da Zâmbia sintetiza a brusca mudança do panorama dos países atrasados que se beneficiaram com a melhora dos termos de intercâmbio[12], as baixas taxas de juros e os fluxos de capitais durante o auge do ciclo.

Mas, o mais dramático por seu peso e consequências para a economia mundial, tem sido a perda de imagem da China, como resultado das idas e vindas do partido dirigente em sua gestão do crash da bolsa. A realidade é que ainda que a queda no mercado de ações terá um impacto limitado na economia, já danificou um dos ativos mais valiosos de Pequim: sua credibilidade. Estrategicamente, esta é a desvantagem mais importante que a burocracia chinesa podia esperar frente ao período mais difícil em que entra: uma crise de transição sem paralelos desde que Deng Xiaoping lançou o giro pró-capitalista nos fins da década de 1970. A necessidade de conseguir um forte reequilíbrio da sua economia, exageradamente capital-intensiva, a um modelo mais baseado no consumo interno e os serviços, sem que se produzam no seu ínterim uma brutal queda do PIB, é quase como conseguir a quadratura de um círculo. Alguns especialistas buscam não dramatizar os acontecimentos atuais, dizendo que, por um lado, é positiva a correção no investimento imobiliário, já que China sofria uma bolha imobiliária como a Irlanda ou o Estado Espanhol antes que seus mercados entrassem em colapso. Por sua vez, apontam que, longe de uma forte recessão, a China está em um círculo vicioso agora no setor de serviços, depois de uma década de relativo estancamento, que estaria crescendo mais rápido que o PIB, enquanto gera empregos, já que este setor é mais intensivo em força de trabalho que a indústria. Mas a realidade é que o tamanho da sobrecumulação tem sido tão grande que é praticamente impossível aos outros setores preencher o vazio que se está criando.

Sua duvidosa ideia é baseada na ingênua suposição de que o governo chinês está sempre no controle da situação e que nunca o perderá. O fato de que a burocracia chinesa, desde que começou as reformas pró-capitalistas, não sofreu o mesmo destino que a burocracia estalinista de Moscou nos finais da década de 1980, ou que evitou as duras quedas de seus vizinhos durante a crise asiática de 1997/8 ou, mais tarde, se recuperou rapidamente da Grande Recessão de 2007/8, não implica que sempre vai ser esse o caso. A realidade é que todos os exemplos históricos semelhantes de superacumulação apontam a um grave desvio das bases de seu poder.

Algumas publicações, como é o caso de The Economist, pensam de todas as maneiras que, dadas as reservas chinesas e o fato de que a dívida está denominada em yuan, não haveria uma queda catastrófica como a ocorrida logo após a bancarrota de Lehman em 2008. Mas, ainda nesse cenário – o mais otimista, já que descarta a dívida denominada em dólares e, sobretudo, os importantes sinais de fugas de capitais e a rápida perda de divisas apesar de partir de uma forte acumulação, mas que pode demonstrar-se insuficiente caso exista um ataque contra o yuan e que a burocracia insiste em defender – afetar-se-ia a taxa de crescimento chinesa. O estourar da bolha poderia assentar um cenário de quebras de bancos e empresas financeiras, e uma forte desvalorização de capitais. E o certo é que todos os indicadores apontam que a bolha tem adquirido consideráveis dimensões.

A próxima fase da crise colocará à prova Pequim

As fortes ambições de Pequim tanto no nível econômico como militar em transformar-se em uma nova grande potência imperialista são resultado deste processo de superacumulação prolongado, cujo ciclo de elevação inflou – para além de suas forças reais que se mediram agora na crise – a visão e o papel da China no mundo na máxima cúpula do PCCh. Entretanto, mais que estas ânsias de potência, no curto e médio prazo sua fixação deverá se deslocar para garantir que tudo não venha abaixo, em outras palavras, que a fenomenal crise de superacumulação que tem seu calcanhar de Aquiles no sobrendividamento congênito ao modelo chinês não saia do controle. É uma tarefa hercúlea – apesar de contar com meios importantes, mas limitados – de resultado incerto. Sua desigual e combinada industrialização tardia e o atraso com respeito aos principais países imperialistas na produtividade do trabalho são uma pesada carga, difícil de superar, apesar dos esforços voluntaristas do PCCh. Seu fracasso pode criar os mesmos fantasmas que historicamente assolaram a China: as explosões e revoluções sociais de todo tipo ou a crescente intervenção imperialista externa. As prioridades de Pequim nos últimos meses estão se modificando rapidamente: cada vez mais está girando para manter a ordem social e reter o poder que vai ser profundamente afetado pela crise da transição econômica, social e ecológica em curso. Um intenso curso ao estilo Putin, com crescente utilização de ameaças reais ou imaginárias do inimigo exterior para legitimar-se em troca da ideologia do crescimento indeterminado, em ameaça de falência.

***

NOTAS

[1] Ainda que usemos [este termo] de forma jornalística, o conceito de emergência está impregnado de um forte conteúdo ideológico burguês, dando a entender que há certa linearidade no desenvolvimento econômico que permitiria os países de caráter semicolonial avançar a um estado de emergência e, posteriormente, alcançar o nível dos grandes países capitalistas, esquecendo que, desde o fim do século XIX e começo do século XX, a existência do imperialismo a nível mundial impede que os países de desenvolvimento burguês atrasado, incluindo nisso todos os países semicoloniais que constituem hoje em dia os mais numerosos a nível mundial, possam repetir o modelo de desenvolvimento dos primeiros. Este termo, surgido no começo do neoliberalismo – mas decididamente na década de 2000 com a denominação pelo economista da Goldman Sachs, Jim O’Neil, dos BRICs – designava um grupo de países que apresentavam, partindo de níveis baixos, fortes oportunidades de investimento, e veio a trocar o termo caído em desgraça “países em desenvolvimento”, que se generalizou depois da Segunda Guerra Mundial. Enquanto esse conceito se desenvolveu durante o boom do pós-guerra, a denominação de países emergentes é menos abarcativa, dando conta, em termos do chavão financeiro, do caráter mais restrito do crescimento econômico dentro dos países semicoloniais e dependentes onde inumeráveis países são deixados de lado dos circuitos das cadeias de valor do capital internacional, concentrando-se os investimentos em alguns poucos, o que é uma mostra do caráter muito mais desigual da acumulação capitalista depois da crise de 1970.

[2] Ver artigo sobre o tema na Revista Estratégia Internacional, Edição de julho 2012. Disponível em: http://ft-ci.org/Revista-Estrategia-Internacional?lang=es

[3] Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones "León Trotsky" nasceu em maio de 1998, fundado pelo Partido de Trabalhadores Socialistas (PTS) na Argentina e se dedica ao estudo, investigação e difusão da obra de Leon Trotsky. Pode ser acessado no site: http://www.ceipleontrotsky.org [NdE]

[4] Contretemps, 18/11/2013

[5] O papel dos Estados é, hoje em dia, muito superior (a proporção no PIB dos orçamentos públicos se encontrava em 1913 abaixo de 9% nos EUA e na França, frente a mais de 30% e 50% respectivamente de hoje). É preciso destacar, nas convulsões atuais, a ação voluntarista dos Bancos Centrais, constituindo uma diferença essencial destacável entre o “neoliberalismo” e a época clássica do liberalismo do século XIX.

[6] A liberalização da economia mundial apresenta um maior alcance em alguns aspectos do que a realizada nos finais do século XIX e começos do século XX, onde os elementos de protecionismo industrial e comercial foram muito significativos, além do aspecto qualitativo que assinalamos na mundialização do processo produtivo.

[7] NIC são os países conhecidos como Tigres Asiáticos, na sigla em inglês, “Novos países industrializados”. [NdE]

[8] Para aprofundar a questão, ver Juan Chingo “Crises e contradições do ‘capitalismo do século XXI’” na Revista Estratégia Internacional nº24 dez 2007/jan2008. Neste trabalho escrito antes do pico da crise de 2008/2009 afirmávamos que “...a ofensiva neoliberal (uma resposta política, militar e econômica do capital à queda da taxa de lucro que vinha baixando desde finais dos anos 1960, uma vez esgotado o caráter excepcional do boom do pós-guerra), ainda que tenha conseguido em grande medida recuperar a rentabilidade, tem feito gerando contradições explosivas que mais cedo ou mais tarde explodiram em uma crise de conjunto, atualizando a definição do capitalismo como um sistema em declínio”.

[9] A desalavancagem ou efeito alavanca invertido (deleveraging em inglês) é o contrário da alavancagem em economia. Geralmente se dá em períodos de crise quando os atores econômicos (lares, empresas, investidores), que antes haviam se endividado para beneficiar-se da alavancagem, já não podem suportar o peso de sua dívida. Sua solvência se vê reduzida (depreciação de ativos, perspectiva de benefícios em baixa), o qual os impõe quitar rapidamente seus endividamentos em condições desfavoráveis. Quando a desalavancagem se generaliza em uma zona econômica, pode conduzir a recessão ou inclusive a depressão.

[10] Carry trade é uma aplicação financeira de alto risco que consiste em tomar dinheiro a uma taxa de juros em um país e aplicá-lo em outra moeda, onde as taxas de juros são maiores. [NdE]

[11] A alavancagem financeira é o uso do endividamento para financiar uma operação. Ou seja, em lugar de realizar uma operação com fundos próprios, faz-se com fundos próprios e um crédito. A principal vantagem é que se pode multiplicar a rentabilidade e o principal inconveniente é que a operação não saia bem e acaba sendo insolvente.

[12] Ou termos de troca, ou seja, a relação entre os preços das mercadorias importadas e exportadas de um país [NdE].

 
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