www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
MORRE RENOMADO DIRETOR DE COMÉDIAS ROMÂNTICAS
Morre Garry Marshall, mas o sonho de “Uma linda mulher” permanece vivo
Fernando Pardal

Em 1990, “Uma linda mulher”, dirigido por Garry Marshall e produzido pela Disney, foi um enorme sucesso de bilheteria, ficando em quarto lugar naquele ano: arrecadou US$ 178,4 milhões, cifra que, em valores corrigidos, equivale a US$ 463 milhões de dólares. Entrou para a história do cinema como a mais bem sucedida comédia romântica da história do cinema. Seu exemplo vive até hoje...

Ver online

No longa, o maior sucesso da carreira de Marshall, que se tornou célebre por dirigir comédias românticas como “Noiva em fuga”, “Diário de princesa” e “Um salto para a felicidade”, o galã Richard Gere vive um empresário milionário – Edward Lewis – que contrata a prostituta Vivian Ward – interpretada por Julia Roberts para passar uma semana com ele.

A ideia original do filme era bastante diferente do resultado final: receberia o nome de $ 3.000, em alusão aos 3 mil dólares que Vivian recebia para passar a semana com Edward. Ele se centraria no submundo da prostituição, nos conflitos de classe entre os protagonistas, e no vício em cocaína que atingiria a personagem principal e sua amiga – que morreria de overdose no final. Mas, como sabemos, na indústria cultural o que rege a criatividade é uma só questão: lucro. E a produção achou – e provavelmente acertou – que poderia fazer muito mais grana com uma bela história de amor que redimisse a prostituta Vivian. O cartaz do filme dizia: “She walked off the street, into his life and stole his heart”. (Ela saiu da rua para entrar na vida dele e roubou seu coração).

E, bem, quem não viu o filme não poderá acusar esse texto de nenhum “spoiler”, já que até o cartaz do filme denuncia seu previsível final: o que começou como uma relação de prostituição, com o magnata empresário como cliente, se transforma em amor, com direito à clássica cena final em que o arrependido ricaço apaixonado corre até a casa da prostituta (ou melhor, vai com sua limousine alugada) e, com gritos e uma enlouquecida subida pela escada de incêndio, vencendo seu medo de altura e com rosas na mão, ele pede o perdão de sua amada e eles vivem “felizes para sempre”.

A fórmula estava pronta muito antes do filme: como nos contos de fadas, a heroína sofredora e maltratada pela vida é redimida de todos os seus tormentos ao encontrar o príncipe encantado que não apenas lhe dará amor, mas também uma vida rica e confortável. O público visado, evidentemente, são as mulheres, que devem ver o filme e soltar suspiros apaixonados com a incrível sorte de Vivian, que irá casar com o belíssimo e ricaço empresário. O filme ainda inclui toques inspirados em outros clássicos hollywoodianos, como as cenas de tipo “My Fair Lady” em que um elegante funcionário de Gere é encarregado de treinar Vivian nas boas maneiras da alta sociedade, etiqueta à mesa etc., e inclui apimentadas cenas de sexo, como sobre o piano do hotel.

Assim, todos os ingredientes de um grande sucesso estão garantidos: risadas, romance, aventura, reviravoltas na trama, atores bonitos, sexo e um belo final feliz. A fórmula que segue sendo aplicada, com maior ou menor sucesso, em pelo menos nove entre dez sucessos dos grandes estúdios. E que, sem dúvida, Marshall aprendeu a implementar com maestria nos seus filmes, tornando-se assim um medíocre, bem sucedido e rico diretor de Hollywood.

Ele morreu, mas em seu lugar brotarão mais dez iguais, fazendo dezenas de filmes como “Uma linda mulher”, que, para os diretores, atores e estúdios envolvidos podem trazer centenas de milhões de dólares, mas cujo objetivo atingido é muito mais profundo e estratégico do que esse lucro momentâneo: é o de reproduzir o mito do “príncipe encantado” que permanece sendo ensinado desde o berço às mulheres que nascem sob o capitalismo. O casamento irá redimí-las e deve ser sua meta gloriosa; no amor se realizarão, encontrando a felicidade e a riqueza; ali, no amor romântico, deverão se nutrir todas as esperanças de escapar a todo o sofrimento e miséria imposto por essa sociedade à vida das mulheres.

O que está por trás do sucesso das comédias românticas?

Essa educação ideológica é tão consistente, sutil e persistente que o seu combate é uma difícil missão. Difícil, sobretudo por dois aspectos: o primeiro é que é uma ideologia que se assenta sobre uma firme base material e procurar sustentá-la no plano das ideias, a base da sociedade capitalista na qual a família é a célula econômica fundamental. A manutenção da mulher como a organizadora do lar, a que cuida dos filhos e do marido – e tudo isso começa muitas vezes com a ilusão de um casamento “de conto de fadas” onde se encontrará o “amor eterno” que a fará “viver feliz para sempre” – é imprescindível para o sistema capitalista e sua manutenção. E, portanto, qualquer tentativa de erradicar essa ideologia sem que se ataque a base material sobre a qual ela se ergue está condenada a um fracasso, por essa ou aquela via, pela cooptação, pela destruição ou por vias mais complexas.

Mas a questão é justamente o segundo aspecto: as ideologias se sustentam na base econômica e material da sociedade, mas elas não se criam e nem são abolidas por decreto. Elas se sustentam também em modos de sentir e estruturas psíquicas que são profundamente arraigadas em nossa mente; e muitas vezes aprendemos do jeito mais difícil que é mais fácil mudar o que pensamos do que o que sentimos. É mais fácil olharmos para a indústria cultural e produtos como “Uma linda mulher” e entendermos o que dessa ideologia patriarcal se reproduz ali, do que rompermos com nossas formas de amar e de construir relações afetivas. E aí é que está o imenso valor de “Uma linda mulher” e de tantas outras coisas, como músicas, livros, novelas para o capitalismo: elas nos pegam não apenas pelo convencimento consciente das ideias ali colocadas; pelo contrário: quanto menos conscientes formos das ideias de que estão ali presentes, tanto mais bem sucedido será o convencimento no plano afetivo e inconsciente. Eu mesmo me lembro de ter assistido talvez uma dezena de vezes esse filme na sessão da tarde, de rir e me emocionar. Lembro da trilha sonora que tinha em casa e de ouvir músicas como “Oh, Pretty Woman” de Roy Orbison, que foi transformada em título e música tema do filme, ou “It must have been love” da dupla sueca Roxette tão famosa nos anos oitenta.

O poder dessas formas de convencimento dos valores, preceitos morais e éticos, modos de sentir e se comportar de uma sociedade é com imensa frequência esquecido ou subestimado por aqueles que lutam contra essa sociedade de miséria, e, pior ainda, com igual frequência reproduzido. Lembro-me aqui de uma frase de Leon Trotski – um revolucionário fundamental que dedicou excelentes textos à reflexão das questões culturais e subjetivas e sua importância – que dizia que são muitos os que “pensam como revolucionários e pensam como filisteus”. Se queremos ir até a raiz da dominação capitalista, é fundamental nos atentarmos para a colonização do inconsciente que é feita por esse sistema, em cada pequeno detalhe como uma comédia romântica repetida à exaustão na sessão da tarde. E sabermos que Gerry Marshall morre, mas o “sonho de ser uma linda mulher” permanece cada vez mais vivo nas mentes das meninas educadas nessa sociedade.

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui