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TURQUIA
Entre o sultão e a ditadura dos generais: quem é quem no levante militar que sacudiu a Turquia
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Tudo o que acontece na Turquia importa aos principais centros de poder ocidentais. A Turquia é parte do grupo de países do G20, é junto com Israel o principal parceiro político e diplomático dos Estados Unidos no Oriente Médio e é o bastião da OTAN na Ásia (abriga bases militares norteamericanas em Incirlik, e tem o segundo maior exército do mundo, 1 milhão de efetivos). Além disso, divide fronteiras com países como Iraque, Irã e Síria, conformando um centro de operações estratégico do imperialismo nesta área em permanente distúrbio geopolítico.

Não à toa, apesar do atraso nas declarações, os governos de Barack Obama nos EUA e de Angela Merkel na Alemanha deram seu apoio ao primeiro ministro Recep Tayyip Erdogan, fiel guardião de seus interesses na região (o mais recente acordo de Erdogan com Merkel estabelece um freio ao afluxo de refugiados à Europa em meio à crise migratória).

Esta relação íntima com as potências ocidentais foi um dos ingredientes que alentou a tentativa de um setor do alto comando do Exército turco a aplicar um golpe de estado contra o governo. O governo de Erdogan já não nutria há anos a mesma força que possuía quando assumiu como premiê em 2003, em meio a uma década de sólido ascenso econômico que lhe possibilitou aplicar reacionárias reformas neoliberais em troca de algumas concessões. Depois de 2013, como aconteceu com diversos países “emergentes”, a Turquia foi golpeada pela crise econômica mundial e teve sua moeda desvalorizada a níveis históricos.

Distintos movimentos de oposição ao autoritarismo crescente de Erdogan se desenvolveram, entre os quais a rebelião da Praça Taksim, a resistência da minoria curda e também de setores operários como os metalúrgicos da Renault, que lutavam contra a precarização da juventude trabalhadora, em meio a escândalos de corrupção que derrubaram três ministros. As relações com a Rússia se deterioraram ao ponto de praticamente abrir um conflito armado pela questão síria, e até mesmo a parceria com Obama esfriou depois dos acordos nucleares com o rival regional, Irã.

Parecia o momento perfeito para que este setor nacionalista do Exército – desde a década de 90 enfrentado com o partido de Necmettin Erbakan, fundador do islamismo político turco ao qual Erdogan era filiado – tomasse as rédeas do poder.

O fato de Erdogan controlar a ferro e fogo um regime bonapartista de direita, pró-imperialista, que organiza sangrentos “pogroms” contra a população curda e reprime os trabalhadores e jovens que se manifestam contra o autoritarismo, é suficiente para que se repudie cada uma de suas medidas reacionárias e desperte a solidariedade internacional na luta contra seu regime.

Entretanto, isto não faz com que um golpe militar pelo famigerado exército turco ganhe, nem de longe, contornos progressistas. Trata-se de uma intentona para dirimir a rivalidade entre a ala secular do Estado Maior (anti-islâmico, que derrubou o governo islâmico de 1997) e o AKP de Erdogan que quer varrer esta ala em prol de uma direção militar controlada pelo governo.

Um país cravejado de golpes militares sangrentos

Golpes militares não são novidade na Turquia: o país viveu uma ditadura militar a cada dez anos desde 1960. O Exército sempre se considerou como o protetor do moderno estado turco, criado em 1923 por Mustafa Kemal Atatürk, fruto da fragmentação do Império Otomano derrotado na Primeira Guerra Mundial. A defesa dos princípios do “nacionalismo kemalista”, uma doutrina secular burguesa, sempre foram mantidos por meio da repressão mais atroz, que não ficava atrás da crueldade otomana.

Em 1960, os militares removeram do poder o Partido Democrático, no primeiro golpe militar da república turca, enforcando o primeiro-ministro Adnan Menderes e outros dois ministros. Em 1971, em meio aos protestos de trabalhadores contra a recessão e a alta da inflação durante a crise do petróleo, mais uma vez o exército se impõe nas ruas, controlando as manifestações e substituindo diversos governos de turno como parte do desvio do processo.

Com a impossibilidade de frear as manifestações durante a década de 70 e principalmente o fortalecimento dos sindicatos e associações operárias, a 12 de setembro de 1980 o chefe do Estado Maior, Kenan Evren, colocou tanques nas ruas da capital para impor uma sangrenta ditadura militar: o parlamento foi dissolvido, a constituição suspensa, associações sindicais ativistas de direitos humanos foram perseguidos e detidos. Os números são estarrecedores: no imediato pós-golpe, mais de meio milhão de pessoas são presas, cerca de 300 morrem devido à tortura no cárcere e outras centenas desaparecidas. 14.000 pessoas perderam o direito de cidadania.

Estas duras cicatrizes foram reabertas em 1997, quando o primeiro ministro islâmico Necmettin Erbakan, do Partido do Bem Estar, foi removido do poder, disparando a inimizade histórica entre o islamismo político turco e o setor kemalista do Exército.

O golpe fracassado neste final de semana foi seguido com expurgos aos inimigos militares e civis do governo: 2800 soldados presos, 2700 juízes destituídos junto a outros 9 da Corte Suprema. Se é certo que um setor que foi às ruas contra os militares não o fez como sinal de apoio ao presidente, também é certo que parte importante dos que estiveram nas ruas de Ancara e Istambul são fiéis partidários do governo e inclusive membros de bandas paramilitares de direita e anti-curdos, que atuaram junto com a polícia do AKP para "caçar" qualquer um que julgassem "anti-Erdogan", prender e castigar os soldados que participaram do complô militar. É sobre este ponto de apoio que se fortaleceu o governo para aplicar novas medidas restritivas e antidemocráticas.

Por que um golpe militar agora?

Quando Erdogan chegou ao poder, em 2003, uma de suas “prioridades” foi enfraquecer esta ala nacionalista-secular do Exército, em vista das rivalidades com o islamismo político. Em 2008, lançou uma campanha que ficou conhecida como o “caso Ergenekon”, uma série de inquéritos judiciais contra chefes das Forças Armadas (além de jornalistas e políticos) sob acusação de fazerem parte de “organizações que tramavam a derrubada do governo civil”. Vários membros da cúpula militar foram presos, enfraquecendo o poder do Exército, e golpeando sua imagem.

É sabido que, apesar de toda a cúpula militar nacionalista apoiar a repressão aos curdos que vivem ao sul da Turquia na fronteira com a Síria, esta fração do Exército se opunha a uma intervenção contínua da Turquia na guerra civil síria, uma política que veio sendo desenvolvida por Erdogan.

Nos últimos dias a imprensa governamental vem dando indícios de que o gabinete “mudará o tom” da situação de gradual enfraquecimento desta ala secular do Exército. No início de agosto se celebrará o conselho militar anual que decidirá as promoções e afastamentos dos cargos militares, em que já se visualizam movimentos mais decisivos de “limpeza” das fileiras a fim de assegurar a subordinação completa do Estado Maior à política de Erdogan. O golpe foi uma medida desesperada para obstaculizar estes movimentos.

Nem golpismo militar nem o fortalecimento de Erdogan oferecem algo progressista aos trabalhadores e à juventude

O legítimo sentimento contra a reação militar, portanto, não autoriza a enxergar com ingenuidade a composição das manifestações, que apesar da participação de movimentos democráticos e pró-curdos, também abriga as tropas de choque da direita que são base social do autoritarismo do AKP. Trata-se de enxergar que um golpe militar não facilita em nada a luta dos trabalhadores e da juventude turca contra o reacionário regime de Erdogan, cujo fortalecimento – impregnado de contradições econômicas e políticas – não possui absolutamente nada de progressista a oferecer às massas.

A independência política dos trabalhadores, sua organização e a aliança com os setores mais oprimidos, às mulheres e à juventude, são o "detalhe chave" necessário à situação.

Em meio ao novo atentado na França (o terceiro em 18 meses) e as recentes convulsões provocadas pelo Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia), à polarização política e social que deixa em crise ou afunda os partidos tradicionais do regime político em distintos países – inclusive países centrais como os Estados Unidos e a França – além de golpes institucionais como no Brasil, é inevitável enxergar as linhas de falha que continuam a rachar a institucionalidade burguesa após anos de crise capitalista, intervenções militares na África e na Ásia e a decadência da ordem neoliberal hegemonizada pelo imperialismo norteamericano.

Estes elementos de “crise orgânica”, se abrem espaço para a xenofobia e a demagogia racista da extrema direita, também abrem a oportunidade de eventuais irrupções das massas populares e trabalhadoras, como vemos na luta contra a reforma trabalhista na França.

 
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