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BREXIT
Os "Brexits" da burguesia e o resgate da memória histórica do movimento operário
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Houve analistas que comparassem os atuais capitães da campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia, como o conservador Boris Johnson e o líder do UKIP Nigel Farage, com o monarca Henrique VIII, que no século XVI havia convocado a ruptura da Inglaterra com a Europa continental dominada pela Igreja Católica romana, criando uma mística religiosa como o anglicanismo para sustentar o direito de contrair novo matrimônio e garantir um filho legítimo como herdeiro. O “Brexit de 1534” teria outros atributos semelhantes com os atuais: a luta pela soberania contra a burocracia continental (substitua-se o Papa Clemente VII por Bruxelas) e o afastamento de estrangeiros protestantes e huguenotes (hoje provenientes do Leste europeu e da Ásia).

É certo que o teor reacionário da campanha pelo plebiscito, por ambos os lados, um em defesa do nacionalismo anti-imigrante e outro europeísta austeritário, traz o eco das ameaças medievais, guardadas as proporções: os adeptos de Roma ameaçavam o país inteiro com a excomunhão caso rompessem com a Europa, e os pró-saída ameaçavam com decapitações “pela graça de Deus”.

Mas a analogia, inútil dizer, atropela inúmeros limites que impedem dizer que se trata da primeira vez desde a era pré-Elizabetana que o Reino Unido escolhe dissociar-se da Europa. Mas ela é ilustrativa ao demonstrar como a enorme crise política herdada da Grande Recessão de 2008 segue abrindo fissuras e volta a atingir a geopolítica em cheio, e como o consenso neoliberal das últimas décadas se rompe por todas as costuras.

É o maior golpe no establishment britânico em décadas, e o maior desde o início da crise mundial no “grande empreendimento falido” do capitalismo que foi a União Europeia, um dos projetos burgueses mais ambiciosos do pós-guerra fria. O Reino Unido era a principal potência militar e diplomática no bloco, aliado fundamental dos EUA nos assuntos europeus, representava o segundo maior PIB da UE (2,8 trilhões de euros, dados de 2013), o principal parceiro econômico da Alemanha dentro do mercado único, sem mencionar o poderoso setor financeiro da City londrina (dentre as 50 maiores instituições financeiras do mundo, 6 são britânicas, comparadas com 10 dos EUA). A votação de ontem deixará marcas permanentes neste projeto e promove um longo período de incertezas institucionais internas ao Reino Unido, e externas, abrangendo toda a Europa.

O estrago já começou e deve ser enorme para o status quo do Parlamento. Desmoralizado com a derrota, o primeiro-ministro, o conservador David Cameron, anunciou sua renúncia. Um desastre político para quem foi reeleito há pouco mais de um ano. O líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, eleito para “renovar pela esquerda” o Labour, está contestado dentro do próprio partido e terá dificuldades em permanecer no posto.

O grande vencedor do referendo foi o UKIP (Partido Independente do Reino Unido), partido de extrema-direita xenófobo radical, que defende o fechamento de fronteiras aos muçulmanos, dirigido por Nigel Farage. Na eleição geral de 2015, o UKIP obteve 13% dos votos. Já havia conquistado um ano antes 24 das 73 cadeiras britânicas na eleição do Parlamento Europeu. Agora, com a vitória nas urnas de sua grande bandeira – a separação da UE – se torna um ícone para a ofensiva nacionalista da extrema-direita que busca representar os interesses do capital europeu.

A maioria dos analistas prevê fortes quedas da Bolsa de Londres com efeitos expansivos na economia mundial, ainda que esses efeitos se façam sentir por etapas. A provável desvalorização da libra esterlina dificultará o pagamento da dívida britânica e seu enorme déficit em conta corrente, e a maior incerteza nos investimentos dento do Reino Unido traz o risco de elevação dos juros para empréstimos e diminuição da entrada de capitais. Todo um espectro que golpeia em cheio uma economia que depende da UE para suas exportações (47% delas se destinam ao bloco europeu).

Ruindo a União Europeia imperialista?

Os primeiros a saírem com seus chamados a referendos nacionais foram a França e a Holanda. Tendo como porta-vozes seus representantes de extrema direita, Marine Le Pen e Geert Wilders, convocaram o “Frexit” e o “Nexit” (a direita não hesita em mostrar a indigência de sua criatividade). O Sinn Fein, da Irlanda do Norte, anunciou que “o governo britânico abdicou de qualquer mandato para representar os interesses econômicos e políticos do povo da Irlanda do Norte”, exigindo plebiscito separatista do Reino Unido. Patrick Harvie, líder do Partido Verde Escocês, disse que “apoiaria” um novo referendo pela separação da Escócia frente à Inglaterra, caso a líder do SNP (Partido Nacional Escocês), Nicola Sturgeon, queira convocá-lo.

A francesa Le Pen, vendo a oportunidade política para o populismo de direita, intoxicou os ouvidos da chanceler alemã Angela Merkel afirmando que “a União Europeia está decaindo com o totalitarismo de Bruxelas”, ao qual dá como resposta o retorno à “Europa das Nações”.

Contra esta demagogia reacionária nada pode oferecer os liberais conservadores encabeçados por Merkel, que tentam de todo modo soprar algum entusiasmo pela união em seus membros. A Alemanha, buscando reformular a União Europeia em função de seus interesses imperialistas, liderou as respostas à crise econômica, à crise da dívida grega, ao conflito na Ucrânia e à crise dos refugiados, agravando todas as contradições para concentrar o controle político do continente. Dificilmente conseguirá manter um equilíbrio mais que instável sobre um novo desafio nas relações inter-estatais envolvendo o Reino Unido sem gerar novas crises.

Se é certo que até o momento a burguesia europeia sob direção alemã conseguiu manter a unidade e a moeda comum, não eliminou as tendências centrífugas que seguem se expressando politicamente no crescente peso dos partidos “euro-céticos”. O Brexit pode ser detonador de uma nova onda de nacionalismos reacionários na Europa.

Crise dos partidos tradicionais, polarização social e a estratégia operária

A grande contradição deste período que se abre na Europa depois do ponto de inflexão que é o Brexit é os partidos tradicionais do “centro neoliberal” seguem em crise ou em colapso depois de serem os arquitetos das crises que atravessam o continente. Vimos na Grécia com o virtual desaparecimento do PASOK, com o PSOE no Estado espanhol, e agora na França no marco de uma crise sem precedentes do PS de Hollande. Socialdemocratas e conservadores, por sua política, pavimentaram o caminho para o fortalecimento dessa extrema direita. São os responsáveis pelas políticas imperialistas que agravaram as penúrias da Grande Recessão e levaram ondas de refugiados a vagar em meio à repressão militar ou serem enterrados na tumba flutuante que é o Mediterrâneo.

Os fenômenos à esquerda desta polarização social, pelo contrário, se desenvolvem apesar dos neoreformismos europeus, como Syriza e Podemos, que emergiram sobre as derrotas na luta de classes desde 2008.

Jeremy Corbyn, líder do Labour Party (Partido Trabalhista), assim como Podemos e grande parte da esquerda “europeísta”, propõem uma estratégia de votar por “permanecer para mudar por dentro”. Mas esta estratégia já fracassou na Grécia com o governo do Syriza, que em apenas 6 meses depois de ter assumido Tsipras com a promessa de fazer um governo “anti-ajuste” terminou capitulando completamente frente a Troika, implementando um pacto de neocolonização sob a bota da Alemanha. Se Tsipras demonstrou ser o mesmo que Miterrand mas em muitíssimo menos tempo, que podem fazer Corbyn e Iglesias com a mesma estratégia mediocremente reformista?

Para alguma coisa deve servir a história, e a esquerda reformista fracassou em todos os seus testes. Nem Corbyn, nem Iglesias, muito menos Tsipras fizeram qualquer menção à espetacular luta operária que atravessa a França como um fio vermelho. Pelo contrário, Tsipras saúda os sionistas de Israel e reprime refugiado na Grécia, e Iglesias se dirige amistosamente ao monarca herdeiro de Franco e aos 50 maiores patrões do Estado espanhol dizendo que “para que o país ande bem os empresários precisam ir bem” (já se vê, uma vez que os “governos da mudança” em Barcelona e Madri não se intimidam em dispensar a repressão contra os trabalhadores em luta).

Estes neoreformismos, que falam contra a austeridade sem nenhum aspecto anticapitalista, buscam a utopia reacionária de reestruturar o "empreendimento falido" da União Europeia imperialista. Sobre esta estratégia, só podem trabalhar pela derrota do movimento de massas.

A memória histórica da burguesia se encontra em suas tradições de domínio, em suas instituições, nas leis do país, na experiência acumulada na arte de governar (não à toa aventuram analogias com os séculos passados). No capitalismo, a memória da classe operária se reduz a seu partido (no caso, seu partido histórico, a tradição marxista revolucionária). Um partido reformista é um partido de memória curta, cuja missão é repetir os mesmos erros que causaram grandes derrotas ao movimento dos trabalhadores (erguendo-se sobre estas derrotas) para salvar o regime capitalista.

Estas palavras de Trotsky nos servem para reforçar a idéia de que a real alternativa independente contra as instituições em crise histórica do capitalismo são as idéias da revolução socialista. As alternativas à crise européia hoje são vocalizadas na disputa entre a direita e a extrema direita, mas não enxergar os exemplos à esquerda desta polarização seria cegueira. Os elementos de crise política, econômica e social que perpassam alguns países centrais abrem espaço também para as idéias da esquerda revolucionária – que se podem enxergar mesmo através da expressão distorcida de socialismo que Bernie Sanders representa nos Estados Unidos, fruto de como essa idéia, ainda que difusa, vai ganhando peso em amplos setores de juventude e de trabalhadores.

É para essa alternativa que trabalhamos. A burguesia se esforça em alertar que o Brexit atual não terá os bons frutos do “Brexit de 1534”, tendo guardado na manga grandes penúrias que imporá sobre os trabalhadores.

Garantir os direitos sociais e políticos dos imigrantes, estreitar os laços estratégicos entre os trabalhadores nativos e estrangeiros, das distintas religiões, significa um combate irredutível contra a xenofobia e o racismo da União Europeia imperialista, sua austeridade e a teoria reacionária do retorno à "Europa das Nações", e não reatualizar suas fronteiras com programas de reforma dos mecanismos de poder capitalistas.

Resgatar a memória histórica do mais avançado que deu o movimento operário é entender que é impossível reformar a Europa dos Impérios por dentro, e sim arrancar o poder das mãos da burguesia e rumar para a destruição das fronteiras nacionais impondo os Estados Unidos Socialistas da Europa, parte de levantar sobre suas ruínas uma nova sociedade de homens e mulheres livres, onde as fronteiras não sejam propriedade de nenhum estado e sim desapareçam em favor do território mundial livre para a humanidade sem classes.

 
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