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LITERATURA
75 anos sem Virginia Woolf
Fernando Pardal

No dia 28 de março completaram 75 anos da morte da escritora inglesa Virginia Woolf, cuja obra é uma referência indispensável do romance moderno.

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Com 59 anos de idade, Virginia Woolf entrou no rio próximo à sua casa com pedras no bolso de seu casaco e se suicidou afogada. O forte impacto que uma morte assim não pode deixar de causar, e que certamente imprime sua marca – como ocorre a tantas autoras incríveis – sobre a própria obra que legou, é algo que aponta para a força de sua literatura.

Suas personagens femininas traziam a marca de um mundo em que não podiam deixar de ser prisioneiras. Fossem elas mais submissas ou revoltosas, mais questionadoras ou pacatas, não há como não ver nas mulheres das páginas de Woolf pessoas que lutam contra uma prisão de uma vida constantemente pressionada à mediocridade e ao convencionalismo. Algumas lutam contra as grades mais visíveis dessa prisão, como o comportamento dócil ou a necessidade de um bom casamento imposto às moças “de boa família” da época de Virginia, o alvorecer do século XX.

Outras têm marcas mais dificilmente perceptíveis na estrutura patriarcal, mas nem por isso mais sutis em sua opressão ou menos destruidoras para quem as sofre. Ainda que Virginia estivesse muito distante das mulheres trabalhadoras ou das mais pobres para que seus sofrimentos pudessem fazer parte das narrativas da escritora, a construção que ela apresenta aos leitores da subjetividade das mulheres das classes altas é um vivo retrato do sofrimento que o capitalismo patriarcal é capaz de impor, mesmo às mulheres de condições econômicas privilegiada, como era o caso da própria Virginia.

Filha de uma rica família, ela não pôde, contudo, diferente de seus irmãos homens, frequentar a universidade. Ainda pequena, Virginia sofreu abuso sexual por parte de seus meio irmãos. Apesar de sua homossexualidade, tanto parentes quanto seus amigos do chamado “grupo de Bloomsbury” – quase exclusivamente masculino, com exceção de Virginia e sua irmã Vanessa –, que incluía nomes célebres como o do economista John Maynard Keynes e o filósofo Bertrand Russel, lhe diziam constantemente que “precisava casar” para ter alguém que “cuidasse” dela. Em um desabafo numa carta a sua amiga Violet, Virginia disse: “Eu queria que todo mundo não me ficasse repetindo que devo casar. Será uma irrupção da rude natureza humana? Eu acho repulsivo.” Assim, podemos ver como a marca de uma sociedade misógina e patriarcal marcou de maneira expressiva a vida da autora.

Ao contrário daqueles que veem na biografia de um autor um “detalhe sem importância” que constitui apenas um amontoado de fofocas, enquanto o que importa verdadeiramente é analisar sua obra “por dentro”, acredito que não há uma fronteira que pode ser facilmente estabelecida entre vida e obra. Virginia foi considerada uma das criadoras de uma das técnicas literárias mais marcantes da literatura moderna, o chamado “fluxo de consciência”, em que a narrativa deixa de se prender a fatos objetivos da realidade e passa a seguir os passos da consciência de uma ou mais personagens, que vagam e se perdem em pontos subjetivos e profundos de sua própria mente, muitas vezes bastante apartados da “realidade empírica”. O exemplo mais comumente citado é o livro Ulysses, de James Joyce, - cujo manuscrito, aliás, foi oferecido para publicação para a editora de Virginia e seu marido, Leonard – cujo título alude ao herói mítico da Odisséia de Homero. Contudo, na epopeia moderna de Joyce o protagonista é um homem comum em seu dia, e a grande jornada não se dá no mundo externo, mas no interior da própria consciência.

Se é verdade que isso é uma marca subjetiva fundamental da modernidade, em que o indivíduo, e, portanto, a percepção e as sensações subjetivas e particulares ganham um peso determinante na percepção do mundo, não podemos deixar de pensar que Virginia Woolf têm contribuições muito singulares na construção desse tipo de narrativa. A autora está situada em um mundo onde a libertação das mulheres, especialmente das mais ricas, é uma promessa não concretizada. Ainda que tivesse a primeira condição, a independência econômica, da qual ela demonstra ter muita consciência ao escrever em “Um teto todo seu” que “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu se quiser escrever ficção”, Virginia não era plenamente livre.

Ela sofria de uma grave doença psíquica, que hoje provavelmente seria classificada como transtorno bipolar afetivo ou um quadro borderline, se pensarmos nos limitantes e enclausurantes diagnósticos baseados em sintomas da onipresente psiquiatria contemporânea. Ainda que obviamente não esteja a nosso alcance fazer um diagnóstico da escritora, somente na visão mais estupidamente "biologicista", à qual adere a maioria dos médicos atualmente, se poderia dizer que essa condição se dava de forma independente das próprias vivências que lhe foram impostas pela condição de ser mulher em tal sociedade. Sua primeira tentativa de suicídio foi após a morte do pai, em 1904, e foi seguida por episódios psicóticos, em que Virginia, por exemplo, ouvia os pássaros cantarem em grego (talvez seja um bom momento para expressar a obsessão que tinha por ler e se formar intelectualmente como uma forma de procurar obstinadamente compensar a impossibilidade de sua formação acadêmica).

Em contos e romances as personagens de Virginia trazem essa pesada marca. Muitas vezes a exploração de seu mundo interno nas narrativas é uma forma de expressar, também, a impossibilidade das mulheres desfrutarem um mundo que não fosse o de suas próprias mentes. Amarradas às famílias, costumes e casamentos, elas eram impossibilitadas de tornarem-se plenamente sujeitas de suas próprias vidas, e a consciência torna-se um universo a ser explorado por aquelas a quem as amarras não conseguem embotar intelectual e afetivamente. Nesse sentido, há um notável parentesco entre a escrita de Woolf e da escritora Clarice Lispector, cujas personagens femininas tantas vezes nos apresentaram esse universo interno melancólico e um tanto desesperador.

Virginia começa a escrever seu primeiro romance, “The Voyage Out” ("A Viagem", então com o título de “Melymbrosia”) em 1907, mas só o publicará em 1915 pela editora de seu irmão, após queimar sete versões preliminares. Seu sobrinho e biógrafo, Quentin Bell, afirma sobre ela: “Seu laconismo literário era em parte resultado de timidez; ainda ficava aterrorizada com o mundo, aterrorizada de se expor. Mas unia-se a isso outra emoção, mais nobre — um alto conceito de seriedade de sua própria profissão. Para produzir algo que atingisse seus critérios particulares, era necessário ler vorazmente, escrever e reescrever continuamente, e, sem dúvida, se não estava escrevendo na hora, agitar as ideias que expressava em sua mente”.

Certamente, nesse comportamento se expressam também as características que, em outras circunstâncias, eram lidas nela como sua “loucura”. A insegurança e obsessão, o medo da exposição afirmados por Quentin não são menos traços sociais que se procura impor às mulheres do que características subjetivas de Virginia. Isso aparece de forma ainda mais marcante em outro trecho da biografia de Quentin: “estava sempre imaginando que, para o mundo exterior, [seus romances] pudessem parecer simplesmente doidos ou, pior ainda, fossem realmente doidos, seu horror à zombaria rude do mundo continha o medo mais profundo de que sua arte, e por isso ela mesma, fosse uma espécie de impostura, um sonho imbecil sem valor para os outros. Por isso, para ela, uma nota favorável valia mais que o mero elogio; era uma espécie de certificado de sua sanidade mental.”

Sua segunda tentativa de suicídio foi em 1913, com 31 anos, com a ingestão de 6,5 gramas de Veronal, um sedativo. Contudo, foi apenas em 1941 que ela consumou sua morte, após um novo agravamento em sua doença que lhe causou imenso sofrimento psíquico. Ao partir para se jogar no rio, Woolf deixou cartas endereçadas a seu marido e à sua irmã, Vanessa. A carta para Leonard dizia:

Querido,
Tenho certeza de que enlouquecerei novamente. Sinto que não podemos passar por outro daqueles tempos terríveis. E, desta vez, não vou me recuperar. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece ser a melhor coisa a fazer. Você tem me dado a maior felicidade possível. Você tem sido, em todos os aspectos, tudo o que alguém poderia ser. Não acho que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes, até a chegada dessa terrível doença. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida, que sem mim você poderia trabalhar. E você vai, eu sei. Veja que nem sequer consigo escrever isso apropriadamente. Não consigo ler. O que quero dizer é que devo toda a felicidade da minha vida a você. Você tem sido inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer que – todo mundo sabe disso. Se alguém pudesse me salvar teria sido você. Tudo se foi para mim, menos a certeza da sua bondade. Não posso continuar a estragar a sua vida. Não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós.
V.

Nesses 75 anos da morte de Virginia Woolf, podemos revisitar sua obra e ter a certeza de que ainda não se abrandou a grandiosidade de uma das escritoras mais vigorosas do século XX. E que o legado que nos deixa essa autora está também para além de sua obra, e nos ensina muito sobre como uma sociedade pode ferir e esmagar seus brilhantes indivíduos. Em seus livros de ensaios mais célebres, “Um quarto todo seu”, de 1929, e “Três Guinéus”, de 1938, ela trata da dificuldade que mulheres enfrentam para se firmar como intelectuais e escritoras em um mundo dominado pelo patriarcado. Em seus contos, as dores das mulheres são escritas de forma ainda mais penetrante. Sua obra vive como um legado artístico e também de resistência.

 
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