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NEOLIBERALISMO DA DIREITA
Esboço de uma crítica marxista da teoria da “utilidade marginal”
Kenji Ozawa

Desde que a jovem estrela da direita, Kim Kataguiri, se tornou colunista da Folha de SP – mais por um giro à direita nas superestruturas políticas da América Latina do que por seus próprios méritos –, nós, do Esquerda Diário, temos denunciado avidamente o verniz heterodoxo, descolado, jovial e cool que sua coluna tenta passar no programa “mínimo” da velha direita tucana e PMDBista. Com este artigo, queremos dar um passo adiante, em direção à crítica não só da política de Kim e seu ““Movimento”” Brasil Livre, mas também da teoria econômica por trás desta política.

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Em 1919, o dirigente bolchevique Nikolai Bukharin publicou pela primeira vez seu livro Teoria econômica da classe rentista (Economic theory of the leisure class). Este livro, praticamente desconhecido no Brasil – e ainda sem tradução em português – é, talvez, a melhor crítica marxista já escrita da teoria econômica burguesa ensinada até hoje nas universidades de economia.

Exilado pelo regime czarista em 1911, Bukharin rapidamente foge da Sibéria em direção à Viena, onde assiste às palestras do prof. Eugen Bohm von Bawerk, um dos principais nomes da Escola Austríaca de economia, a mesma de Ludwig von Mises – “menos Marx, mais Mises” –, Friedrich A. Hayerk e Murray Rothbard, alguns dos heróis do panteão MBL. Durante seus seis anos de exílio, Bukharin se ocupará “com o plano de formular uma crítica sistemática da economia teórica da nova burguesia” e, especialmente, de Bohm-Bawerk, até retornar à Rússia, em 1917 (Preface to the Russian Edition – todas as citações em negrito referem-se a esta edição).

Neste artigo –, que queremos que seja só o primeiro de vários –, faremos um resumo do segundo capítulo do livro de Bukharin.

Da Economia Política às “econômicas”

Nas faculdades de economia burguesas, frequentemente se diz que a economia “é uma ciência social que estuda a administração dos recursos escassos entre usos alternativos e fins competitivos”, uma definição do estadunidense Paul Samuelson (1915-2009).

Ora, o nome de Karl Marx quase sempre aparece nos resultados de pesquisa do Google, ou na Wikipédia, junto de alguns “rótulos”: escritor, jornalista, filósofo, revolucionário, etc. Um desses rótulos, geralmente, é o de “economista”. Mas os textos “econômicos” de Marx, por exemplo, O Capital, não são estudos sobre a administração de recursos escassos. Ou seja, Marx nunca foi um economista. Nem mesmo o próprio Marx se considerava um economista político, mas sim um “crítico da Economia Política” clássica de Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823).

Adam Smith, autor do famoso tratado sobre A Riqueza das Nações, foi também o inventor da expressão “mãos invisíveis” do mercado. Embora fosse um liberal, Smith tornou-se um economista ainda na época “revolucionária” da burguesia, em luta contra o Antigo Regime dos reis e da nobreza parasitária feudal. Suas teorias não eram simplesmente estudos sobre a administração de recursos escassos, mas sim “uma teoria social, um elenco articulado de ideias que buscava oferecer uma visão do conjunto da vida social”, das relações sociais capitalistas que estavam surgindo da crise do Antigo Regime. (Economia Política, J. Paulo Netto, p. 29). Por isso, o que se chama, hoje, somente de “economia”, naquela época chamava-se “Economia Política”.

A Economia Política surgiu como uma arma de guerra da nascente classe burguesa contra o Antigo Regime. Por isso, os economistas políticos clássicos desenvolveram essa “arma” em torno da teoria do valor-trabalho, simplificadamente, a ideia de que a fonte da riqueza das nações é o trabalho, que caiu como uma luva contra àquela nobreza reacionária, que não trabalhava mas tinham todo o poder e a riqueza. Mas a teoria do valor-trabalho é uma teoria revolucionária não só em relação ao feudalismo, mas também à burguesia, pois, se a fonte da riqueza é o trabalho, porque os capitalistas ficam cada vez mais ricos, mas, em comparação, os trabalhadores ficam cada vez mais pobres?

A teoria do valor-trabalho expunha um ponto vital da burguesia: a mais-valia, simplificadamente, a ideia de que os capitalistas ficam cada vez mais ricos porque enriquecem às custas não do próprio trabalho, mas sim do trabalho dos outros. Por isso, a burguesia, depois de ter construído “um mundo à sua própria imagem”, se empenha em tentar refutar, em negar a descoberta científica da teoria do valor-trabalho tanto quanto o diabo se empenha em fugir da cruz. As teorias de Eugen Bohm von Bawerk (1851-1914) surgem nessa tentativa, e é contra essas teorias que Bukharin dedica um bom tempo dos seus seis anos de exílio à Teoria econômica da classe rentista.

Bohm-Bawerk é – junto com Carl Menger (1840-1921), William Stanley Jevons (1835-1882) e Leon Walras (1834-1910) – um dos arquitetos da “contrarrevolução marginalista” do final do século XIX, que não passa de uma reelaboração mais sofisticada, mais “perfumada” das teorias daqueles que Marx chamou de “economistas vulgares”, por exemplo, William Nassau Senior (1790-1864), Frédéric Bastiat (1801-1854), Jean Baptiste Say (1767-1832). A partir das teorias vulgares, os marginalistas tentaram criar uma teoria do valor alternativa à teoria do valor-trabalho: a teoria do valor subjetivo, ou valor-utilidade, ou “utilidade marginal”.

Nas faculdades de economia burguesas, a teoria da utilidade marginal é considerada o começo da economia “científica”, e a teoria do valor-trabalho de Marx, baseada na Economia Política clássica, uma teoria enviesada e pré-científica. O termo Economia Política (em inglês, Political Economy) é, então, abandonado, e a ”nova” ciência é batizada Economia tão somente (em inglês, Economics); supostamente apolítica, neutra e imparcial, “que estuda a administração de recursos escassos”, ou seja, que relações supostamente técnicas, entre pessoas e coisas, e não as relações sociais, entre pessoas.

O que é “valor”?

Simplificadamente, Bukharin define valor como “o padrão determinante dos preços”, aquilo que determina os preços. Ora, numa economia capitalista, o “preço, e, portanto, o padrão determinante dos preços, que é o valor, é a categoria fundamental que abrange tudo” (Idem). Ou seja, salário, lucro, juros, etc., tudo do capitalismo depende dessa categoria chamada valor. Mas o que é realmente esse padrão? O que determina os preços? O que é, de fato, o valor? De que é feito o valor, o que constitui valor, qual o “conteúdo” do valor?

Na teoria de Marx, o valor é uma relação entre dois fenômenos sociais: 1) o preço e 2) a produtividade do trabalho. Na teoria de Bohm-Bawerk, o valor é uma relação entre 1) o preço e 2) as preferências subjetivas, psicológicas, as avaliações individuais dos consumidores. Ou seja, na teoria de Bohm-Bawerk, o valor é uma relação entre um fenômeno social, o preço, e um fenômeno individual. Por isso, Bukharin diz que a teoria do valor de Marx é uma teoria objetiva, e a teoria de Bohm-Bawerk é uma teoria subjetiva: porque, na teoria de Marx, o valor é uma relação social, entre pessoas; na teoria de Bohm-Bawerk, o valor é uma relação individual, entre uma pessoa e uma coisa.

Segundo Bohm-Bawerk, o valor depende de qual é a utilidade daquela coisa pr’aquela pessoa, ou seja, o padrão determinante dos preços é a utilidade das mercadorias.

Enquanto que, com Marx, a utilidade é só a condição para a origem do valor, sem determinar o grau do valor [ou seja, sem determinar o preço] Bohm-Bawerk deriva o valor inteiramente da utilidade e o torna a expressão direta desta última (C. 2-2 Utility and Value (Subjective)).

Os dois pontos de vista da mercadoria

No primeiro capítulo d’O Capital – “A Mercadoria” –, Marx escreveu que, no capitalismo, o trabalho tem um “duplo caráter”, ou “dupla natureza”: uma natureza qualitativa e uma natureza quantitativa. Por isso, as mercadorias “podem ser consideradas sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da quantidade”. O ponto de vista qualitativo da mercadoria é o ponto de vista da utilidade da mercadoria, ou seja, quais são as necessidades ou desejos que aquela mercadoria satisfaz. Já o ponto de vista quantitativo é o ponto de vista daquilo que Bukharin chama de “produtividade do trabalho”, ou seja, do “tempo de trabalho socialmente necessário”, simplificadamente, de quanto tempo uma mercadoria demora até ficar pronta e de quanto esforço exige produzir essa mercadoria, quanto dispêndio de nervos e músculos.

Por que Marx diz que o ponto de vista da utilidade das mercadorias é qualitativo, e não quantitativo? Porque cada mercadoria tem a sua utilidade particular.

Nem toda mercadoria tem a mesma utilidade. Algumas mercadorias podem satisfazer várias necessidades diferentes. A água tem várias utilidades, por exemplo: beber, cozinhar, tomar banho, lavar a louça, as roupas, etc. Além disso, algumas necessidades possam ser satisfeitas por várias mercadorias diferentes, por exemplo, uma pessoa pode comer arroz e feijão, ou pode comer macarrão. Mesmo assim, não existe nenhuma utilidade universal, comum a todas as mercadorias. Cada mercadoria tem a sua utilidade particular.

Mas, se não existe nenhuma utilidade universal, comum a todas as mercadorias, também não é possível comparar as mercadorias do ponto de vista da utilidade. Então como é que o preço das mercadorias é determinado pela utilidade?

Marx responde: não é! O preço das mercadorias NÃO pode ser determinado por algo particular a cada uma delas, porque o que é particular de cada mercadoria não pode ser comparado, uma com as outras. Por isso, o padrão determinante dos preços, o valor, só pode ser algo universal, que seja comum a toda e qualquer mercadoria, sem exceção: pois só aquilo que é comum é passível de comparação. E o que é esse algo universal? Qual é a única coisa comum a toda e qualquer mercadoria, sem exceção? Que todas as mercadorias são produtos do trabalho.

Cada mercadoria particular é produzida por um tipo diferente de trabalho, por exemplo, o trabalho de um operário gráfico ou ceramista é diferente do de um metalúrgico, ou de um bancário, professor, metroviário, etc. Mas todos esses trabalhos não são nada mais, nada menos que dispêndio de nervos e músculos em função do tempo, e esse dispêndio em função do tempo é passível de ser medido quantitativamente, por exemplo, em “horas de trabalho”. Portanto, o trabalho é algo comparável. As necessidades e desejos humanos não. Por isso, o valor, ou seja, o padrão determinante dos preços só pode ser o trabalho, nunca a utilidade.

O paradoxo da água e do diamante

Mas, se o valor das mercadorias depende do trabalho... o lucro do patrão também! Por isso, a burguesia precisa negar a descoberta científica da teoria do valor-trabalho. Mas, se a única coisa comum a toda mercadoria é ser produto do trabalho, como medir e comparar quantitativamente as mercadorias sem se expor ao golpe fatal da mais-valia? Ora, segundo Marx, a mercadoria “pode ser considerada sob um duplo ponto de vista”, o da utilidade e a do esforço necessário à sua produção. “Então, façamos da utilidade algo possível de medir e comparar”, responderam os marginalistas.

Ou seja, a suposta “refutação” de Marx por Bohm-Bawerk não passa de uma tentativa fracassada de nos convencer que é possível medir e comparar necessidades e desejos humanos e, consequentemente, as utilidades das várias mercadorias. Por isso, a teoria de Bohm-Bawerk é uma salada. Por exemplo:

Segundo Bohm-Bawerk, a utilidade (em inglês, utility) “se expressa de duas formas essencialmente diferentes; a forma inferior está presente sempre que uma mercadoria em geral tem a capacidade de servir ao bem-estar humano. A forma superior, por outro lado, requer que a mercadoria seja não só causa eficiente, mas, simultaneamente, condição indispensável de um bem-estar resultante [...]. O estágio inferior é denominado utilidade [em inglês, usefullness]; o superior, valor”. Por exemplo, a relação de um copo d’água ao “bem-estar humano” é diferente no caso de uma pessoa sentada perto de “uma fonte que proporciona uma oferta abundante de água potável” e no caso de “outro homem, um viajante no deserto” (Bohm-Bawerk, cit. Bukharin, C. 2-2).

No primeiro caso, o copo d’agua não pode ser considerado como uma condição indispensável; mas no último caso, sua utilidade é de um grau “extremo”, já que a perda de um único copo d’água pode ter consequências sérias para o nosso viajante. (C. 2-2)

Por isso, Bukharin diz que o ponto de partida da teoria de Bohm-Bawerk é a “utilidade certificada” (Idem). Simplificadamente, Bohm-Bawerk diz as utilidades são passíveis de comparação porque há utilidades “extremas”, “indispensáveis”, ou seja, algumas utilidades são mais importantes, enquanto outras são menos importantes. Mas de que maneira a utilidade maior ou menor de uma mercadoria influencia no seu preço?

Ironicamente, ao dizer que algumas necessidades são mais importantes e outras, menos importantes, Bohm-Bawerk vai de encontro a uma frase muito famosa nas faculdades de economia, mesmo economia burguesa:

Nada é mais útil que a água, mas ela não pode comprar quase nada; quase nada pode ser obtido em troca dela. Um diamante, pelo contrário, quase não tem nenhum valor em uso [nenhuma utilidade], mas uma quantidade muito grande de outros bens pode frequentemente ser obtido em troca dele.

O autor desta frase é ninguém mais, ninguém menos que Adam Smith, aquele Economista Político que inventou a ideia das “mãos invisíveis” do mercado.

Toda avaliação subjetiva é, sempre, avaliação de utilidade?

Até um economista burguês como Adam Smith já sabe, desde muito tempo antes de Marx ou Bukharin, que a utilidade jamais poderia ser o padrão determinante dos preços, o valor.

É característico do modo moderno de produção, acima de tudo, que este não produz para as necessidades do próprio produtor, mas para o mercado. O mercado é o último elo numa corrente de variadas formas de produção, na qual a evolução das forças produtivas, e a correspondente evolução das relações de troca destruiu o antigo sistema de economia natural e suscitou novos fenômenos econômicos (C. 2-2).

Nesse processo de transformação da “economia natural” em economia capitalista, Bukharin distingue três estágios. No primeiro estágio, “o centro de gravidade se situa na produção para o consumo próprio”, só o excedente, aquilo que “sobra” e que não é imediatamente consumido pelo produtor é posto à venda no mercado. “Gradualmente, a evolução das forças produtivas e a ameaça da competição leva a uma mudança no centro de gravidade em direção à produção para o mercado”, mas, mesmo nesse segundo estágio, boa parte de tudo que é produzido ainda é consumido por quem produziu (Idem).

Segundo Bukharin, as condições desse segundo estágio ainda podem ser observadas com frequência na agricultura camponesa. “Ainda assim, isso não implica uma cessação”, uma interrupção “do processo de evolução. A divisão social do trabalho continua avançando, alcançando finalmente um nível no qual a produção em massa para o mercado torna-se um fenômeno típico” e nenhum dos produtos é consumido pelos próprios produtores (Idem). Na teoria de Bohm-Bawerk, o valor é uma relação entre o fenômeno social do preço e o fenômeno psicológico, ou seja, individual das avaliações subjetivas dos consumidores. Mas será que está relação é a mesma, é igual em todos os três estágios que Bukharin distingue?

Não. Numa economia natural, por exemplo, numa tribo indígena, com poucos recursos e pouco produtiva em comparação com a indústria, tudo aquilo que é produzido tem uma utilidade “certificada”. Mas, na medida em que a economia se torna mais produtiva, ou seja, na medida em que há mais “sobra”, mais excedente, cada vez menos esses produtos excedentes são avaliados de acordo com a utilidade, com que necessidades ou desejos satisfazem, pois já não tem utilidade pr’aqueles que os produziram, antes de mais nada. Até que, finalmente, a produção que é propriedade dos capitalistas, da burguesia, já não tem mais nenhuma utilidade que não seja a venda.

Por conseguinte, é precisamente a completa ausência de avaliações baseadas na utilidade das mercadorias que é característica das economias que as produzem (Idem).

Mas e os compradores? Os produtos postos à venda podem não ter utilidade pr’aqueles que estão vendendo, mas se esses produtos não tivessem utilidade nenhuma a não ser a venda, ninguém os compraria! Bukharin não disse que, na teoria de Marx, a utilidade é “condição para origem do valor”?

Bohm-Bawerk, o pecador

Adam Smith é economista burguês, mas é um economista da época revolucionária da burguesia, quando ainda interessava à essa classe provar cientificamente que a fonte da riqueza é o trabalho.

Hoje em dia, a burguesia não fala mais de “trabalho”, mas de “mérito”, pelo mesmo motivo que tenta nos convencer de que o valor depende da utilidade, e não do trabalho: porque a conclusão que se chega a partir das descobertas científicas da própria burguesia, naquela época em que a burguesia era uma classe revolucionária em luta contra o Antigo Regime feudal, é que a nova sociedade burguesa ainda é baseada na exploração do homem pelo homem tanto quanto aquela sociedade que lhe antecedeu, portanto, a burguesia é uma classe exploradora historicamente condenada, e que “cria seu próprio coveiro”: a classe trabalhadora, o proletariado.

Mas uma “caracterização sociológica” como essa da teoria de Bohm-Bawerk “não nos livra da responsabilidade de travar uma guerra contra ela mesmo no campo de uma crítica puramente lógica” (Preface to the Russian Edition) . Por isso, vamos supor que Bohm-Bawerk estivesse certo, ou seja, que o valor fosse uma relação entre os preços e as avaliações subjetivas dos consumidores, e não a produtividade do trabalho, como diziam Smith e Marx. Mesmo assim, Bohm-Bawerk estaria numa enrascada. Por quê?

Por exemplo – um exemplo do próprio Bohm-Bawerk – uma dona de casa fazendo as compras do mês:

Se, com a mesma quantia de dinheiro, nós pudermos comprar uma dúzia de bananas, ou meio quilo de feijão e três maçãs, ou meio quilo de feijão e duas garrafas de água sanitária, ou... etc., cada pessoa comprará aquelas mercadorias que tiverem a maior utilidade segundo suas avaliações individuais. Mas essas avaliações individuais pressupõem tanto os preços das mercadorias que vamos comprar no mercado quanto a quantia inicial de dinheiro com que vamos lá. Tanto os preços das mercadorias quanto a quantia de dinheiro inicial são “dadas”, ou seja, as duas coisas já estão pré-estabelecidas antes mesmo de irmos ao mercado, e é “somente dentro desses limites que uma certa avaliação baseada na utilidade pode ser praticada” (Idem).

Ora, o próprio Bohm-Bawerk (cit. Bukharin, C. 1-1 Objectivism and Subjectivism in Political Economy) diz que é um pecado capital de método ignorar, presumir, tomar por certo ou como “dado” aquilo que se deve explicar. Mas as avaliações individuais dos compradores dependem dos preços!

Segundo a teoria de Bohm-Bawerk, o valor é a relação entre os preços e as avaliações individuais dos consumidores. Mas, se as avaliações individuais dependem dos preços, será que, no final das contas, o valor é a relação entre os preços e os preços? Será que o padrão determinante dos preços é a relação entre preço e preço?

A teoria do valor é a teoria do padrão determinante dos preços. Ao tentar nos convencer que o valor depende da utilidade, e não do trabalho, a teoria do valor de Bohm-Bawerk se transforma num círculo vicioso: os preços dependem das avaliações individuais dos consumidores, mas as avaliações dos consumidores também dependem dos preços. Consequentemente, o próprio Bohm-Bawerk e o seu viajante no deserto cometem um pecado capital de método: tomam como dado aquilo que se deve explicar, ou seja, o próprio preço!

Cão que ladra não morde

Neste artigo, fizemos um resumo de só um dos cinco capítulos de Teoria econômica da classe rentista de Bukharin.

Além de um dos arquitetos da teoria da utilidade marginal, Bohm-Bawerk também criticou teoria de Marx da mais-valia a partir da teoria do valor subjetivo, ou seja, segundo Bohm-Bawerk, os trabalhadores não são explorados porque o valor excedente ao final do processo produtivo, simplificadamente, o lucro não é produzido por um tempo de trabalho não pago, mas por uma preferência subjetiva de bens presentes sob bens futuros – quem sabe, um tema para os próximos artigos – e também foi o inventor do “problema da transformação” dos valores em preços de produção, relacionado ao terceiro livro d’O Capital.

As “contribuições” de Bohm-Bawerk à economia foram quase todas feitas contra a teoria de Marx. Mas, no começo do século XX, o novo mainstream marginalista se dividiu. Nas universidades, as teorias de Bohm-Bawerk foram incorporadas, na medida em que eram úteis contra Marx, à um currículo cada vez mais “técnico” e matemático, muito influenciado pelo britânico Alfred Marshall (1842-1924). Essa teoria “acadêmica” que se estuda nas faculdades até hoje é chamada economia neoclássica, e foi nesse paradigma neoclássico burguês que tanto o “intervencionista” e “estatista” John Maynard Keynes quanto o neoliberal Milton Friedman se formaram.

Mas não dessa economia neoclássica que saem as bizarrices do MBL. A Escola Austríaca de economia de Bohm-Bawerk e Mises é tão absurda que nem mesmo a burguesia ousaria educar seus principais quadros – os funcionários do Ministério da Fazenda, do Banco Central, etc., e das grandes empresas e bancos privados que investem nas bolsas – nessa Escola. Por exemplo, os austríacos acham que não deveria existir Banco Central nem a moeda oficial, o Real, e que cada banco, cada empresa e até mesmo cada pessoa deveria emitir sua própria moeda, e “o mercado dirá” quanto cada uma vale! Dizem também que “neoliberalismo” é uma invenção da esquerda e que Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o Consenso de Washington são “neo-intervencionistas”!

Outra invenção dos austríacos incorporada à academia neoclássica foi o suposto “problema” do cálculo econômico no socialismo, simplificadamente, a ideia de que, se o Estado é proprietário de todos os meios de produção, não há como calcular os preços dos meios de produção, porque esses meios não são comprados e vendidos, mas só transferidos “internamente” de uma parte do Estado à outra. Que problema! Nem parece que a humanidade viveu à maior parte da sua existência SEM precisar calcular preços!

Os austríacos ficam bolados porque Margaret Thatcher andava com um caderninho de citações de Friedrich Hayek, mas supostamente nunca governou segundo a cartilha dos austríacos. A Escola Austríaca é especialista em criticar Marx, mas a burguesia só recorre à teoria austríaca... contra Marx! Quando se trata da “vida real”, de governar um país ou de administrar uma empresa, não tem Kim Kataguiri que dê conta do recado.

 
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