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Crise
O ministro da Economia da Argentina renuncia: um símbolo do fracasso do acordo com o FMI
Pablo Anino

Guzmán deixa o cargo em um momento em que o programa com o FMI começa a dar errado e a organização começa a fazer maiores exigências. Em meio a uma crise crescente, o regime capitalista na Argentina está desesperadamente buscando alternativas para uma economia que não encontra saída há uma década. A classe trabalhadora do país vizinho, por meio de uma unidade de empregados e desempregados, tem o desafio de formular seu próprio programa para derrotar o ajuste do FMI, do governo, da oposição de direita e dos empresários.

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O agora ex-ministro da Economia, Martín Guzmán, renunciou no momento em que a vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner fazia um discurso em homenagem à morte do fundador do movimento peronista: Juan Domingo Perón. A vice-presidenta há um tempo tem feito da política econômica o foco de seus ataques. Guzmán deixa o cargo em um momento em que o programa com o FMI começa a dar errado e a organização começa a fazer maiores exigências. Semanas atrás, Guzmán também enfrentou uma corrida cambial e de títulos em pesos que levantou a possibilidade de um calote da dívida em moeda local. Além disso, não conseguiu conter a inflação. Em meio a uma crise crescente, o regime capitalista está desesperadamente buscando alternativas para uma economia que não encontra saída há uma década. A classe trabalhadora, por meio de uma unidade de empregados e desempregados, tem o desafio de formular seu próprio programa para derrotar o ajuste do FMI, do governo, da oposição de direita e dos empresários.

Na carta de renúncia, dirigida ao presidente argentino Alberto Fernández, Martín Guzmán formula uma defesa de sua gestão. Diz que "nosso principal objetivo foi tranquilizar a economia". O agora ex-ministro valoriza enormemente essa "epopeia" (nas palavras dele) de tranqüilizar a economia. O disparo parece ter sido direcionado aos kirchneristas (a ala da coalizão governista: Frente de Todos, comandada pela vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, que reúne peronistas e centro-esquerda). Quando a negociação com o FMI foi encerrada, todos aqueles que defendiam o acordo (desde Martín Guzmán até Sergio Massa ,presidente da Câmara dos Deputados, que representa a ala centro-direita da mesma coalizão), assim como muitos que não o fizeram, mas votou pela nova dívida no Congresso (a oposição de direita, Juntos pela Mudança), e mesmo aqueles que a criticaram no último minuto por acreditarem que um acordo melhor era possível, mas não tomaram nenhuma ação para impedi-lo de ir adiante (os kirchneristas), atribuiram a uma tese: era o mal menor. Não aceitar o acordo traria o caos econômico.

No início de março, no Congresso, em sua defesa do acordo, o agora ex-ministro da Economia afirmou que “é nossa responsabilidade destacar como é potencialmente desestabilizadora a situação que a Argentina enfrenta se não tiver condições de poder refinanciar a dívida do programa Stand-By de 2018. O acordo que é levado a debate no Congresso estabelece um caminho transitável diante de um problema realmente gravíssimo. A alternativa é um crescimento da incerteza que irá gerar uma situação de profundo estresse cambial com consequências negativas sobre a atividade econômica, inflação, emprego e pobreza”.

O ex-ministro expressou uma fé quase cega na capacidade estabilizadora da varinha mágica do FMI. É interessante ver esta longa citação com os argumentos de Guzmán porque ele expõe uma a uma as pragas que prometeu exorcizar. Apenas três meses após a assinatura do novo acordo neocolonial com o Fundo, todas as pragas voltaram a atingir a Argentina. O acordo foi articulado em torno de três objetivos: o primeiro é a redução do déficit fiscal com base na liquidação de itens orçamentários devido à inflação e na redução dos subsídios à energia; a segunda é a redução do financiamento do déficit por meio da emissão do Banco Central em benefício de seu financiamento pelo mercado financeiro; o terceiro é o acúmulo de reservas no Banco Central.

Os três eixos do programa convergem em torno de um objetivo maior: arrecadar dólares para pagar a dívida fraudulenta deixada pelo governo do ex-presidente Mauricio Macri, tanto com credores privados quanto com o próprio FMI. Mas logo depois, o Governo enfrenta dificuldades nos três objetivos fundamentais estabelecidos no acordo.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia afetou os preços da energia e, portanto, há a possibilidade de reduzir os subsídios à energia apesar dos aumentos nas tarifas de eletricidade e gás que estão sendo implementados. Além disso, o partido no poder não consegue definir a política energética. Como noticiou a jornalista María O’Donnell no Twitter: "A demora na publicação do formulário para segmentar tarifas e remover subsídios de eletricidade e gás foi um dos últimos problemas internos que precipitaram a renúncia de Guzmán (o secretário de Energia introduziu sem aviso prévio um regime diferente para a Patagônia, na região sul do país)”.

Os relatórios indicam que o ex-ministro teria solicitado ter todo o painel de controle da economia sob seu comando, mas o presidente, que governa com o método da procrastinação, não lhe teria dado uma resposta. Na nota que dirigiu a Alberto Fernández, esta afirmação fica clara: “Considero que será essencial que seja trabalhado um acordo político dentro da coalizão governante para que quem me substituir, que terá uma grande responsabilidade pela frente, centralize a gestão dos instrumentos de política macroeconômica”, diz Guzmán.

Sobre os problemas para reduzir os subsídios à energia, somam-se outros fatores, como os desembolsos imprevistos que atrapalharam relativamente a equação fiscal. É o que está acontecendo com a nova rodada de um IFE (Renda Familiar Emergencial), que o governo teve que acionar para fazer o controle de danos em uma situação social gravíssima açoitada pela espiral do processo inflacionário. Dessa forma, as contas públicas começam a apresentar desvios em relação ao que dita o acordo do FMI.

O fantasma do default

Como um dominó, o problema fiscal vem dificultando outro objetivo do acordo com o FMI: o Ministério da Economia não tem conseguido colocar dívidas em pesos no mercado interno. Para tentar superar esse empecilho, Guzmán fez uma oferta aos mercados: elevou os juros. Em um país onde toda a renda da classe trabalhadora e dos pobres tem muita liquidez, os especuladores financeiros são os únicos que têm uma garantia para vencer a inflação. Isso tudo está no acordo com o FMI, pois indica que a taxa real de juros (inflação descontada) deve ser positiva.

Mesmo assim, a economia enfrentou dificuldades na obtenção de financiamento. Na semana que terminou, a carteira liderada por Guzmán conseguiu passar por um teste crítico de renovação da dívida (roll over), mas ao custo de aumentar a dívida em pesos. Além disso, a renovação da dívida foi alcançada graças à compra de títulos realizada por órgãos públicos (como o FGS da ANSES, entre outros). É uma espécie de troca de dívida sui generis. Os especuladores financeiros se livram dos títulos e vão comprar dólares, em alguns casos, para tirá-los do país. Outros testes como o da semana passada terão que ser enfrentados todos os meses por quem substituir Guzmán. A economia está sujeita ao humor dos mercados por causa do acordo com o FMI: aí se estabelecem limites para recorrer a financiamentos pelo Banco Central. Não é que esse financiamento seja bom, mas se render à boa vontade do financiamento de quem vive da especulação é pior ainda.

No entanto, para evitar o colapso do preço dos títulos locais em pesos, o Banco Central está intervindo comprando um volume significativo desses títulos. Mas faz isso despejando mais pesos na rua. Nesse contexto, os mercados especulam sobre uma possível reestruturação da dívida pública em moeda local e muitos dos pesos que o Banco Central deu na compra de títulos também foram para a compra de dólares. Outros foram absorvidos com letras de liquidez do Banco Central (Leliq), o que aumenta a dívida do Banco Central. Ou seja, um buraco é tapado e abrem-se vários outros.

Os economistas da oposição do Juntos por el Cambio também incentivam a ideia de uma reestruturação: dizem que o endividamento em pesos é insustentável. Essa ideia toma forma diante de uma eventual mudança de governo em 2023 com base na experiência prática. O último ministro da Fazenda de Mauricio Macri cometeu uma heresia para o mercado: ele impôs um calote da dívida em pesos. Por que um governo do mesmo campo político não o faria novamente? Entre outros fatores, essa possível reestruturação da dívida em pesos que se avizinha é o que está por trás da atual corrida cambial, que desencadeou a cotação do dólar paralelo.

O estresse cambial que Guzmán procurou evitar com o acordo do Fundo Monetário agora é inevitável. O programa econômico acordado começa a quebrar em todas as frentes. O partido no poder superou com alguma “contabilidade criativa” a primeira revisão do Fundo, que corresponde às metas para o primeiro trimestre (janeiro-março) do ano, ou seja, um trimestre que estava praticamente terminado quando o acordo foi assinado. Mas agora se começa a sentir o rigor da organização que diz que as metas anuais são mantidas, no entanto, as metas trimestrais são flexibilizadas. Parece um Fundo mais benevolente, mas não é.

Na verdade, o que o Fundo está pedindo é que, para o segundo semestre do ano, seja feito um ajuste mais profundo para corrigir os desvios ocorridos durante o segundo trimestre (abril-junho). A “flexibilidade” do Fundo é não aceitar que se repita o que aconteceu no segundo trimestre. O último documento do corpo técnico indica que, para atingir a meta deste ano, “políticas fiscais mais rígidas serão necessárias no segundo semestre”: mais precisamente, prevê que os gastos reais diminuam para 7,8% ao ano no segundo semestre. Não só isso. Começa a falar mais alto sobre reformas estruturais nas áreas previdenciária e energética.

A reestruturação da dívida que Guzmán fez em 2020 em benefício dos lobos de Wall Street adiantou a maior parte dos pagamentos da dívida em dólares: os vencimentos mais difíceis começam em 2025. A priori parecia que esse capítulo do endividamento não traria problemas até então. No entanto, os grandes fundos de investimento observam que os títulos reestruturados são desvalorizados no calor dos desequilíbrios econômicos. É por isso que eles exigem que o Fundo monitore e castigue com maior dureza as contas da Argentina.

A interna da Frente de Todos, sem dúvida, afetou a continuidade de Martín Guzmán no governo. Mas reduzir sua renúncia a esse fator é ignorar os profundos desequilíbrios que afetam a economia argentina, que atravessa uma década de estagnação e cujo declínio deve ser rastreado há pelo menos quatro décadas. O discípulo do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz e especialista em reestruturação de dívidas está se retirando do governo assediado por abutres internacionais, os abutres locais e o FMI que lucram com a especulação financeira.

O estrondoso ajuste inflacionário

Há três meses, Guzmán apresentou uma trajetória de desinflação no programa do FMI. Mas, na realidade, esse acordo exige que a inflação seja alta. Para qual propósito? A fim de erodir as rubricas orçamentais para a saúde, educação, aposentadorias, a remuneração das e dos trabalhadores públicos e, de forma mais geral, todas as rendas da população. O contrato original contempla o aumento das tarifas de energia elétrica e gás. Mais combustível para o fogo inflacionário.

O último relatório do corpo técnico do Fundo deixa as intenções mais claras: fala de uma “gestão salarial prudente para manter inalterada a massa salarial do governo em porcentagem do PIB”, pede que o orçamento previdenciário caia em porcentagem do PIB (mais ajuste); que os subsídios de transporte sejam reduzidos (aumento de tarifas), entre outros "detalhes".

O acordo também inclui o aumento do dólar oficial que, embora gradual, movimenta todo o esquema de preços para cima. Com o desenrolar da crise, não está descartado um salto cambial que desvaloriza ainda mais os salários. É uma política para frear a atividade econômica, mas também pode elevar os preços.

Desde que o acordo foi aprovado, a inflação não caiu abaixo de 5% ao mês: 6,7% em março; 6% em abril; 5,1% em maio. Um número acima de 5% está previsto para junho. Nesse contexto, Guzmán havia reestimado pela enésima vez a projeção de inflação deste ano para 62%. É muito provável que tenha ficado aquém. Um 5% anualizado coloca a inflação anual em 80%, enquanto um 6% anualizado a leva para 101%. É claro que o partido no poder não se beneficia de um estouro inflacionário, mas joga com aquela arma de fogo que é útil para um ajuste generalizado. Este joguinho, certamente, também deve ser incluído entre os fatores que deixaram Guzmán fora do jogo.

Mas o futuro do ex-ministro é muito menos importante do que o que a maioria sofre. Os dados do Índice Salarial de abril, divulgados na semana passada, ilustram a situação. Os salários no setor privado formalizado aumentaram 5,6%, os do setor público 2,7% e no setor informal estranhos 7,1%. Tirando a média de todos os salários, o aumento foi de 5%, razão pela qual ficaram aquém da inflação do mês de abril, que foi de 6%. Comparando o poder de compra de abril com o que existia quando o Governo de Alberto Fernández começou (dezembro de 2019), o resultado é o seguinte: no setor privado, o poder de compra está estagnado; no setor público, caiu quase 3%; no setor informal caiu quase 7%. A isso devemos acrescentar o golpe de 20% a 30% (aproximadamente) que Macri lhes deu e que Alberto Fernández prometeu devolver. Falsas promessas.

As centrais sindicais estão em trégua infinita, subordinadas à interna do governo. É tarefa da classe trabalhadora se organizar desde baixo para lutar para recuperar o roubo salarial dos últimos anos, exigir que as centrais convoquem imediatamente uma greve nacional e um plano de luta pelas demandas mais urgentes, na perspectiva da greve geral. É urgente recuperar tudo o que foi perdido desde o governo Macri até o presente e estabelecer a atualização automática dos salários de acordo com a inflação. Ao mesmo tempo, é preciso que ninguém receba um salário menor do que o valor de uma cesta básica de pobreza ($100 mil para o mês de maio), no caminho para conquistar um mínimo equivalente ao custo de uma cesta básica familiar ($161 para o mês de maio, segundo a comissão interna do Instituto de Estatísticas e Censo). A mesma reivindicação se aplica aos valores de aposentadoria.

Os donos da caneta marca-texto

É verdade que alguns aumentos de preços são influenciados por fatores internacionais, como o aumento das matérias-primas. Isso fica claro, por exemplo, com o aumento do preço do trigo que impacta o aumento do pão, macarrão e outros produtos alimentícios. Mas a rota de transmissão desses aumentos de preços internacionais para o mercado interno se dá pelo fato de o comércio exterior de grãos ser dominado por um punhado de empresas, em sua maioria multinacionais, mas também algumas nacionais. Eles são Cofco-Nidera-Noble (China), Cargill (EUA), ADM-Toepfer (EUA), AGD (Argentina), Moreno (Glencore, Suíça), LDC (França), ACA (Argentina), Molinos (Argentina).

Essas empresas, fundamentalmente as multinacionais, dominam as cadeias de valor agroindustriais globais: estabelecem diretrizes financeiras, produtivas e tecnológicas. Na Argentina fazem o que querem graças ao fato de que praticamente gozam de um oligopólio privado do comércio de grãos. Por isso, a partir da esquerda, se propõe o monopólio estatal do comércio exterior: para que as vendas externas (e também as importações) sejam realizadas de acordo com as necessidades da população; para que, num país onde existam condições para reorientar a produção para fins sociais, a alimentação seja acessível a todos; para que não haja níveis de pobreza e indigência sem precedentes para os parâmetros históricos do país.

A estrutura oligopólica (ou seja, dominada por poucos grandes jogadores) do comércio exterior se repete no nível da produção. Alguns exemplos ilustram isso. Segundo o CEPA (Centro de Economia Política Argentina), três quartos do faturamento dos produtos das gôndolas são explicados por vinte empresas. Entre 2016 e 2019, três empresas (Mastellone, Sancor e Danone) representaram quase 75% do faturamento do setor lácteo. Três outras empresas (Coca-Cola, ADA e Pepsico) concentram 85% do faturamento de bebidas não alcoólicas. Em azeites, as empresas Molinos Ríos de la Plata, Molinos Cañuelas e Aceitera General Deheza (AGD), concentraram 90% do faturamento. O mesmo ocorre com a concentração nas grandes redes de supermercados, que são o elo final pelo qual os produtos chegam ao consumidor.

Neste quadro está a chave para o porquê os "Preços Cuidadosos" e outras regulamentações estatais tímidas são medidas impotentes para impedir os aumentos de preços. É que, se essa estrutura onde poucos são os donos de quase todos os alimentos que são produzidos não for afetada, as armas para vencer a guerra da inflação estão com aqueles que aumentam os preços, aqueles que têm a caneta para remarcar. A classe trabalhadora tem potencial para garantir o abastecimento a preços acessíveis para toda a população. Para isso, é preciso acabar com os segredos comerciais e abrir toda a contabilidade das empresas para revelar o verdadeiro custo dos produtos e colocar todas as informações a serviço das comissões de trabalhadores e setores populares.

Os trabalhadores das diferentes empresas poderiam contar com a colaboração de contabilistas e técnicos para esta tarefa. Esses mesmos comitês seriam capazes de detectar as manobras e armadilhas dos capitalistas em todas as etapas da cadeia produtiva e de comercialização e impedir que fossem realizadas. As empresas que se recusem a dar todas as informações, que continuem especulando sobre preços e suprimentos, devem ser nacionalizadas e colocadas sob a gestão de seus trabalhadores em colaboração com profissionais de universidades públicas, como parte de um planejamento racional para acabar com a fome e garantir uma alimentação de qualidade.

Os donos dos dólares

O Banco Central tem dificuldades em atingir as metas de acumulação de reservas acordadas com o FMI. Só nesta semana conseguiu comprar US$ 1,3 bilhão após aplicar algumas restrições ao acesso ao dólar, por exemplo, para importações. Há quem indique que Miguel Pesce, presidente da entidade monetária, chegou tarde, com a crise em fase avançada de desenvolvimento.

Na segunda-feira 20/06 na plenária da Central de Trabalhadores da Argentina em Avellaneda, a vice-presidente havia afirmado que havia um festival de importação. O que a vice-presidente pediu? Que Daniel Scioli (ex-embaixador no Brasil, amigo de Bolsonaro, agora encarregado do Ministério do Desenvolvimento Produtivo, área onde as importações são "regulamentadas") e a administração aduaneira se dediquem a "redirecionar" a situação. Esse capítulo das disputas internas incluiu a resposta da porta-voz da Presidência, Gabriela Cerruti: ela rejeitou a existência de um “festival de importação” e afirmou que as maiores compras no exterior se devem ao crescimento industrial, embora admita algum tipo de “tensão” com o setor industrial.

A favor do argumento de Cerruti, é verdade que, por ora, há uma recuperação industrial relativamente forte (embora a crise prenuncia pelo menos uma desaceleração) e que, dada a estrutura industrial, atrasada em relação às potências econômicas, essa recuperação exige dólares para a compra de bens intermediários e de capital (por exemplo, máquinas). Mas, também a favor de Cerruti, o que acontece é que os preços internacionais subiram. Isto afeta particularmente as importações de combustíveis e lubrificantes, que aumentaram 205% ao ano no acumulado entre janeiro e maio deste ano.

Por outro lado, a favor do diagnóstico de Cristina Kirchner (CFK), quando observado o resultado agregado do comércio exterior, destaca-se que as importações acumuladas nos cinco primeiros meses do ano atingiram o maior patamar da série que se inicia em 2012: quase US$33 bilhões foram importados, o que implica um aumento de 44% em relação a 2021.

Por isso, não são poucos os que veem aí importações especulativas: são empresas que adiantam as importações ou cobram a mais nas compras externas para obter dólares baratos do Banco Central. Ou mesmo, em um país com quase 40% da população pobre, as importações de bens de luxo provavelmente aumentarão: por exemplo, carros de luxo, barcos ou outros bens de luxo. Por isso, o Governo anunciou na semana passada restrições à importação de bens considerados de luxo.

Embora a verdade esteja provavelmente a meio caminho entre o que CFK denunciou e o que disse Gabriela Cerruti, o interessante desse debate é que o comportamento dos donos do país é exposto a um público mais em geral. CFK falou de 600 empresas que respondem por 75% do total das importações nacionais. Essas empresas, presumivelmente, são as que cobram a mais nas importações ou antecipam compras no exterior para conseguir dólares baratos do Banco Central.

Mas, do lado dos exportadores, observa-se uma maior concentração. Como observado acima, o comércio exterior de grãos é dominado por uma dúzia de empresas. Sabe-se que essas empresas subfaturam as exportações para evitar a entrada de dólares no país ou triangulam diretamente as operações para não só não entrarem os dólares, mas também para evitar o pagamento de impostos.

Mesmo com todas as manobras das empresas importadoras e exportadoras, a escassez de dólares não se explica por esse único fator. Entre os anos de 2000 e 2021, o país acumulou uma receita líquida de US$184 bilhões em comércio exterior: essa é a diferença entre exportações e importações. Mais recentemente, desde 2019, o comércio exterior apresenta números positivos muito elevados. Mesmo assim, os dólares são escassos no país. Por quê? Porque há uma fabulosa e sistemática fuga de capitais para paraísos fiscais. Além disso, existem empresas que simulam pagamentos de dívidas no exterior para tirar dólares baratos do país, dólares fornecidos pelo Banco Central. A isso se soma que o pagamento de dívidas consome grande quantidade de moeda estrangeira e o mesmo ocorre com a remessa de lucros de empresas estrangeiras que operam nessas terras.

Ou seja, assim como a saída de Guzmán não pode ser reduzida à interna, a escassez de dólares não pode ser reduzida a manobras (que obviamente existem), mas se explica por um saque sistemático e estrutural do país pelo empresariado local. e estrangeiro. E ninguém quer se envolver nesse debate profundo e estrutural. Para acabar com essa pilhagem é que a esquerda propõe, como observado, o monopólio estatal do comércio exterior sob o controle dos trabalhadores.

Mas esta medida por si só não é suficiente. O sistema bancário em mãos privadas é o que organiza a evasão fiscal e a fuga de capitais dos donos do país para o exterior por todos os canais possíveis. Para evitar esse saque, é necessária a nacionalização do sistema bancário, com a expropriação dos bancos privados (não para apropriar-se da poupança dos setores populares, mas para preservá-la) e a formação de um único banco público, sob a gestão de suas trabalhadoras e trabalhadores.

Saídas de classes distintas

Este fim de semana as formações políticas que defendem o regime capitalista vão preparar suas saídas frente à crise. Eles vão querer trocar os fusíveis, mas com o Fundo no comando da economia, a fome e a miséria vão continuar. Há quem especule que CFK pactue com Alberto Fernández em um novo gabinete que implemente um plano de estabilização como o Plano Austral, seguindo a experiência de Raúl Alfonsín sob a tutela do FMI (nos anos 1980). Todo plano de estabilização se fundamenta em atacar a classe trabalhadora, os pobres.

A vice-presidente deu sinais na última semana de uma virada à direita com o ataque aos movimentos sociais e seu encontro simbólico com Carlos Melconian, responsável pelo centro de estudos da Fundação Mediterrâneo, um "think tank" neoliberal que presenteou o país com quem nacionalizou a dívida do privado, Domingo Cavallo. Tampouco se pode descartar um salto maior na crise com maiores desentendimentos entre Alberto e Cristina. Os próximos dias revelarão para onde o governo está se movendo. Na oposição do Cambiemos, com suas próprias internas acontecendo, talvez se iludam com outra saída alfonsinista: a do caos de 1989. A mesa estaria servida para seu sonho eterno: um ajuste de choque que reconfigure a relação de forças entre as classes sociais.

Não bastou o endividamento fraudulento do macrismo com os lobos de Wall Street que financiaram a “bicicleta financeira” e uma fuga escandalosa de capitais. Uma razão para não reconhecer essa dívida. Não bastou que o FMI, sob a benção de Donald Trump, apostasse na continuidade de Mauricio Macri no poder e também financiasse a fuga de capitais da burguesia nacional e internacional que atua no país. Outra razão para não reconhecer a dívida. Não basta que, três meses após a assinatura do acordo, a crise econômica tenha devorado o ministro que foi o engenheiro do acordo? Em um país com quatro em cada dez habitantes pobres, com mais da metade das meninas, meninos e adolescentes vivendo na miséria e com a inflação atingindo todas e todos, o Governo da Frente de Todos, além das disputas internas, não tem em sua agenda outra alternativa a não ser seguir subordinado ao capital financeiro internacional, que saqueia tudo que encontra em seu caminho.

A unidade dos trabalhadores empregados e desempregados, em pé de luta, é a única maneira de derrotar o ajuste do FMI, do governo, da oposição de direita e dos empresários. É urgente o não-reconhecimento soberano da dívida nas mãos dos especuladores e o rompimento com o Fundo. Libertar-se da dependência do capital financeiro internacional é a única forma de reorganizar a economia e utilizar todos os recursos disponíveis para o desenvolvimento económico e para a satisfação das necessidades sociais mais urgentes. É nesta perspectiva que a Frente de Esquerda Unidade, junto com as organizações sociais, políticas e operárias, convoca uma mobilização massiva para este 9 de julho.

 
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