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Sílvia Viana (FGV): "o inimigo verdadeiro está fora do campo de visão" (parte 2)
Vitória Camargo

Sílvia Viana é professora de Sociologia da FGV e doutora pela USP. Escreveu o livro "Rituais de Sofrimento", publicado pela Boitempo, em que trata do tema dos realities shows como uma via que revela sobre o mundo do trabalho e do uso das redes sociais, nesta segunda parte. Esta entrevista ao Ideias de Esquerda foi concedida a Vitória Camargo, mestranda em Sociologia na Unicamp.

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Ideias de Esquerda: Nos últimos anos, após significativa queda de popularidade, o Big Brother Brasil voltou a bater recordes de audiência. Você tem hipóteses para explicar não somente essa "revitalização" do programa, mas também mudanças em sua forma e conteúdo, relacionadas à realidade do Brasil?

Deixei de assistir a esses programas em primeiro lugar porque não gosto, em segundo lugar porque são produtos da indústria cultural, ou seja, repete-se uma mesma fórmula à náusea. E não apenas em realities, também filmes e séries às vezes aparentam crítica onde há o mesmo. Há alguns anos, falou-se dos filmes jogos vorazes, no ano passado foi a série round 6, entre um e outro fabricou-se inúmeras dessas mercadorias que inculcam a tal sobrevivência em situações adversas, mesmo quando inculcação já não é necessária – mas a pura repetição sim, como que para assegurar que o real é o isso aí mesmo e tudo bem estar tudo mal. Então no ano passado me falaram do caso Carol Konká como, enfim, uma novidade. Assisti: nada de novo no de sempre – por sinal, em termos de assédio inter-classe já vi coisa bem pior. A novidade não está no formato do espetáculo, mas naquilo o que, fora dele, se deslocou radicalmente de quando escrevi a tese até agora: o fazer político.

Não foram dez anos quaisquer, como sabemos 2013 acelerou nossa história, que nunca mais parou, ladeira abaixo, na banguela. Então um primeiro ponto a se notar a partir do meu trabalho é que, no momento anterior, a barbárie já estava lá. E eu não descrevia uma violência que os próprios produtores não afirmassem eles mesmos há pelo menos uma década. Tanto a estrutura dos realities, a eliminação inapelável, quanto o conteúdo, a guerra civil individualizada, não eram estranhos ao período que agora podemos chamar de interregno democrático. Aparentemente uma contradição, não? Afinal, tudo parecia transcorrer em normalidade institucional com avanços sociais, ainda que pontuais, com o fortalecimento do estado de direito etc. E, na TV, um show de horrores. Os programas eram explicados com facilidade por produtores, comentadores e também acadêmicos ora pela generalidade de uma humanidade por natureza má ora por seu oposto, igualmente genérico, pela perversidade particular de audiência e participantes. Tanto faz, era o que os programas buscavam comprovar em seus experimentos tautológicos. Vimos, então como há uma relação entre a violência que os reality shows mostram e o que tomamos por “normal” em nossa reprodução social. O ponto importante a se perceber é que algo da monstruosidade que veio à luz a partir de 2013 vinha sendo forjado em nosso subterrâneo, pois já não era estranho a ninguém assistir a cenas de tortura light na TV sem a menor justificativa senão a comprovação da “força” para sabe-se lá o que. Então não deveria soar tão estranho assim que em 2016 nada se tenha feito contra um capitão vomitado do exército que homenageou um torturador na votação pelo impeachment, tampouco que, dois anos depois, tenha sido eleito. É claro que há muitos outros fatores que envolvem o redemoinho político no qual nos metemos, mas é fundamental percebermos como a indiferença viril é o que há algumas décadas se cobra dos “batalhadores”, os trabalhadores submetidos ao controle e organização “flexíveis”. E ela veio cobrar a conta, não mais temendo, mas encarnando o fantasma da guerra e da eliminação, agora em sua literalidade armada ou ainda no desdém pelos que sucumbem à doença – como assisti algumas vezes em realities de profissões nas quais gripados não prestavam e deveriam ser eliminados. Chamo a atenção para isso pois a leitura corrente tende a enxergar na ascensão da extrema direita brasileira algo historicamente distante, proveniente da colonização e / ou da ditadura ou, de outro modo, algo totalmente novo, calculado, financiado, arquitetado artificialmente por golpistas munidos de fake news e por aí vai. Há um tanto de acerto e muito de falta de noção em ambas as perspectivas. Não pretendo enfiar a mão nesse ninhal agora, apenas indicar que devemos tomar cuidado com nosso recém adquirido restauracionismo pois a selvageria não arrefecerá a não ser que as condições que a produziram sejam, no mínimo, encaradas sem a nostalgia boca aberta do “estado de direito” perdido. E veja que estou falando aqui apenas do inferno em que se converteu o mundo do trabalho sob ameaça permanente do descarte, nem entrarei no assunto daqueles de fato tidos por descartáveis, cujo destino em cadeia ou na eliminação propriamente dita já estava posto em democracia.

Agora voltando à sua questão: eu não sei, pois não acompanho, mas você não é a primeira a me informar que o Big Brother havia saído de moda e de um ou dois anos para cá voltou. Nem sempre esses movimentos de oferta e demanda têm alguma relevância para a análise do valor ideológico dessas mercadorias, importa o formato em torno do qual oscila o gosto, ou a ausência dele. Nesse sentido pode-se dizer que mais que sucesso, a forma reality show tornou-se a forma da própria indústria cultural, independentemente e muito além das idas e vindas de sua mercadoria principal, o BBB. E não digo isso apenas porque de dez anos para cá outros programas do gênero se revezaram no top ten televisivo, ou porque a estrutura sobreviventista apareceu com ainda mais evidência em programas novos, como os realizados na selva, ou ainda porque a fórmula se replicou em outras mercadorias audiovisuais. Afirmo, isso sim, que o coração da nova indústria cultural, as redes sociais, funcionam como reality shows. Ok, a analogia não é nova: assim como se imprimia em realities o exibicionismo e voyeurismo dos concernidos, o mesmo se supunha ocorrer com os ingênuos posts no facebook do almoço dominical ou do gatinho embaixo do sofá. E assim como se acusava sadomasoquismo nos programas televisivos também se passou, de um tempo para cá, a temer a perversão dos internautas jorrando caps locks em comentários. E, assim como antes, não se leva em consideração a lógica subjacente, essa sim, perversa. Os realities foram uma espécie de caminho do meio das antigas para as novas mídias. Mais uma vez falo em termos da economia política do fenômeno, principalmente no que tange à passagem da comunicação de massa para sua pulverização em rede. O participante dos reality shows, colhido na multidão para a breve fama ou aquele que, de casa, escolhia o emparedado era o embrião do participante das redes sociais, leia-se: todos nós, independentemente do grau da mania. A mídia tradicional conseguiu se livrar de inúmeros trabalhadores formais explorando a mão de obra flexível, barata e polivalente das estrelas voláteis e voluntárias que realizam a produção, cuidam da alimentação e manutenção do cenário, fazem sua própria maquiagem e o principal, formulam o enredo. Bem, brincadeira de amadores perto das big techs que tem todo o seu conteúdo fabricado e posto em circulação pelo trabalho gratuito dos internautas. Mas o principal para a questão aqui em foco é que tanto os realities quanto as redes sociais bebem da mesma fonte, o mecanismo de dominação próprio ao capitalismo contemporâneo, organizando-se como máquinas de seleção negativa para a concorrência universal. Soaria exagero meu não fosse a própria dinâmica das redes ter nomeado seu paredão como “cancelamento”. Contudo não são os casos (nem tão) excepcionais que sustentam a hipótese e sim a norma da quantificação eletiva em likes e coraçõezinhos e carinhas tristes e pontinhos em Lattes... Contabilidades sem esteio que passam a traduzir todas as dimensões do eu, na busca incessante do mais-de-si necessário ao bom desempenho de um bom capital humano. Minha única dúvida quanto a nomear as novas mídias como indústria cultural deve-se apenas ao fato de seus produtos estarem tão profundamente amalgamados e subsumidos à troca de equivalente que o termo “cultural” talvez não faça o menor sentido – ou ao menos não leve ao choque pretendido por Horkheimer e Adorno quando formularam o conceito.

Pois bem, eis uma grande novidade nesse volteio de uma década que estou dando: agora não é mais a mídia tradicional e suas mercadorias enjoadas que alimentam o tititi das redes, pelo contrário, é aquela que tende a se tornar apêndice dessas, ora como uma entre incontáveis criadores de conteúdo ora correndo atrás do assunto do minuto. E é por aí que entendo a mais recente “alta” da commodity BBB – que parece ter desvalorizado novamente... –: pesquisas de opinião pública demonstram que as “guerras culturais” são o principal componente da principal mercadoria das redes, a polêmica. Então pronto: Globo corre atrás e emplaca alguns sucessos. Estou brincando, mas a coisa toda deve ser levada muito a sério pois, sim, o caso Carol Konká apresenta a novidade da linguagem política emaranhada naquela forma social que descrevi em minha pesquisa. Como um troço desses é possível? Para além da crítica mais óbvia e bem moralista que condena a venda da força de trabalho de militantes a empresas capitalistas – é o que é a participação nesses programas, ora essa! -, devemos entender como esse trabalho é realizado, mais que isso, justificado como se fosse uma atuação política. O que deveria gerar um mínimo de estranhamento é que não estamos falando de um programa de entrevistas, por exemplo, no qual se pode argumentar politicamente, e sim de um formato que implica necessariamente uma dupla negação do que se deveria entender por política. Em primeiro lugar a atuação coletiva, e não estou falando aqui do diálogo empático bom-mocista não violento etc e tal; seja como pacto, contraposição ou embate aberto não se faz política individualmente. Acho que não preciso ir muito longe para demonstrar a impossibilidade objetiva dessa atuação em meio à lógica do “resta um” de BBB e congêneres. Contudo, mais importante, pois ainda menos contornável é o problema de a política ser o âmbito da ampliação dos horizontes das expectativas humanas. Eis o núcleo da crítica de Adorno e Horkheimer à indústria cultural: ela é ideologia por assimilar a promessa de superação contida na cultura ao mundo tal como posto. E se naquele momento tratava-se da conciliação entre classes pela via do bem-estar, portanto, algo que visava a alguma melhoria nas condições de vida dos explorados, o que significa entender como política a assimilação a um universo no qual luta equivale a nada mais (e aqui inexiste nada menos) que não perecer? Quero crer que a forma reality show não traduza a totalidade dos movimentos que se contrapõem à opressão, ao mundo inominável que está aí, caso contrário estamos em péssimos lençóis. Certamente é o que prepondera como grita autista nas redes sociais sob a alcunha de identitarismo. É o que prepondera também fora delas? Quero crer que não, pois com essa configuração a luta é intestina, o inimigo verdadeiro está fora do campo de visão e seus cães de guarda, como vimos acima, estão muito mais preparados.

 
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