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Céu noturno crivado de balas: ver o amor e a guerra do Vietnã pelos olhos de Ocean Vuong
Gabriela Farrabrás
São Paulo | @gabriela_eagle

Ocean Vuong é um poeta homossexual vietnamita, nascido em 1988. Seu livro de poesia Céu noturno crivado de balas foi lançado no Brasil em edição bilingue em 2019. Aqui analisarei desde a introdução escrita por seu tradutor Rogerio W. Galindo, passando pela contextualização do que foi a guerra do Vietnã, e uma breve análise dos poemas de Ocean.

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O livro de poesia do poeta vietnamita Ocean Vuong já estava na minha lista de desejos de leitura há mais de 1 ano, quando encontrei ele na livraria no penúltimo fim de semana corri para casa para começar a lê-lo. Todo livro que leio começo pela introdução, muitas vezes elas nos trazem informações e um olhar desde onde enxergar e interpretar a obra, e me assustei com essa introdução.

Todas as pessoas que vi nas redes sociais, que leram o mesmo livro de Ocean Vuong, elogiaram muito o livro, e ninguém falou de um anticomunismo presente nessa obra. Mas a introdução escrita por Rogerio W. Galindo, tradutor da obra no Brasil, tem ¼ de seu texto dedicado ao anticomunismo.

Seria essa introdução uma sinopse dos poemas de Ocean? era a pergunta que me atormentou logo de cara. Deixo aqui um spoiler desse texto: o anticomunismo de Rogerio W. Galindo não corresponde em nada ao conteúdo da poesia de Ocean Vuong.

Uma introducão anticomunista

No segundo capítulo de sua introdução Galindo escreve:

"Vietnamita, Ocean passou seus dois primeiros anos de vida num campo para refugiados nas Filipinas. Nascido em 1988, portanto treze anos depois da guerra com os americanos, o menino foi levado com a família para fugir do comunismo. Muita gente precisou ir embora, e o destino normalmente eram outros países do sudeste da Ásia, a que os vietnamitas chegavam em botes."

E segue:

"Com a queda de Saigon, o presidente americano Gerald Ford determinou a evacuação dos americanos e dos vietnamitas que tivessem ficado marcados por ajudarem na guerra contra os vietcongues. Muitos foram levados para fora do país com os soldados estrangeiros; muitos tiveram de fugir de qualquer maneira, já que ficar seria morrer nas mãos dos comunistas."

A essa altura o leitor pensa que a família de Ocean esteve ao lado do imperialismo ianque e por isso migrou do Vietnã, mas isso não corresponde ao que o poeta irá narrar em sua obra - entendendo a obra como uma auto-ficção onde nem tudo corresponde a realidade de fato - muito pelo contrário, o poeta com seu eu-lírico conta que sua mãe é filha de um estupro de um soldado norte-americano a uma camponesa, sua vó; narra sobre como os soldados matavam bebês segurando cada um em uma perna da criança e a puxando para lados opostos; fala sobre o uso criminoso de bombas de napalm, primeiro pela invasão francesa, depois pelo exército estadunidense, que deixa seus rastros de destruição pelo país até hoje. Tudo isso indicarei mais à frente verso por verso em alguns poemas de Vuong. Antes considero importante que o leitor entenda o contexto do que foi a guerra do Vietnã.

Mas antes disso, gostaria de ressaltar que na introdução que Galindo faz o peso que ele dará as condições de vida que a família de Ocean encontrará nos EUA, o exemplo de país capitalista, inimigo dos comunistas malvados, na visão do tradutor, é quase irrelevante; como se uma família de 7 pessoas vivendo apenas em um cômodo, sem acesso a televisão, rádio, ou a alfabetização fosse algo aceitável.

Que comunismo existiu no Vietnã

Para termos esse contexto usarei principalmente o texto de Gabriela Lizst traduzido para o Esquerda Diário, o qual recomendo fortemente a leitura, pois ele apresenta um resumo bem sucinto de todo o processo, sem deixar de lado as posições trotskistas sobre todo o conflito.

Em 1935, o que seria o que conhecemos hoje por Vietnã ainda era parte do território conhecido como Indochina, uma colônia do imperialismo francês, onde o Partido Comunista da Indochina (PCI), sob o comando de Ho Chi MInh, começava "a crescer entre os camponeses". Mas é preciso salientar que "desde sua criacão o PCI seguiu a política do stalinismo russo, passando do ultra-esquerdismo à colaboração de classes em 1935."

Com a derrota japonesa em 1945, marcando o fim da segunda guerra mundial, houve na Indochina "uma insurreição de massas, com o estabelecimento de comitês populares e sindicatos, revoltas camponesas, milícias armadas e manifestações massivas em Saigon", que significou a primeira vitória contra o imperialismo francês. Mesmo com a tentativa dos japoneses de atrasar sua retirada, ocorreu um vácuo de poder, que levou Ho Chi Minh ao poder.
No ano seguinte, com a ajuda do imperialismo britânico, e também com a ajuda do PCI, agora denominado Viet Minh, e seu líder Ho, a França volta a ocupar a Indochina através de um governo de colaboração de classes junto à nova União Francesa. Aqui fica claro o quanto o seguidismo da política stalinista de colaboração com a burguesia é traidora dos desejos das massas que lutaram contra a invasão francesa apenas 1 ano antes: "O custo desta política foi pago pelo povo indochino, o qual teve que iniciar uma nova guerra de libertação em 1946, que se desenvolveu em uma guerra de guerrilha com milhares de mortos."

"Em 1949, Mao triunfou na China." Em 1951 o exército comunista foi derrotado pela França com o uso de bombas Napalm (a isso o poeta fará referência ao relatar que a palavra "bomba" em vietnamita se origina da palavra em francês "pomme"). Em 1953 o Vietnã é dividido após a Conferência de Genebra em República Democrática do Vietnã do Norte, uma região comunista comandada por Viet Minh, e em Vietnã do Sul, uma região capitalista sob o domínio francês e comandada por um imperador.

Em 1954 a França é derrotada de vez pelas forças do campesinato e pelo exército guerrilheiro sob o comando de "Nguyen Giap, o ministro do interior do governo de Ho e futuro general na guerra contra os EUA, (que) dirigiu as manobras militares, cercando os franceses e construindo uma estrada através de 150 quilômetros de selva para levar 24 canhões fornecidos pela China. As tropas fizeram esconderijos nas áreas elevadas do vale e, escondidos ali, bombardearam a base militar francesa. Em seguida eles cavaram túneis, os quais os transformaram em um inimigo invisível, capaz de atacar a qualquer momento e em qualquer lugar. Giap, considerado um grande estrategista, não teria conseguido esta vitória sem a força moral do povo por sua libertação." Apesar disso, o Partido Comunista na França ’apoiava o "seu" imperialismo contra o povo indochino.’ Ao contrário dos grupos trotskistas que tanto na Indochina quanto na França lutavam pela libertação do povo indochino, e contra o colonialismo francês.

O Acordo de Genebra previa que dois anos após a divisão do território seriam realizadas eleições democráticas para reunificar o país, porém os EUA, que não tinham assinado o acordo, temia que essa reunificação significasse o domínio comunista; se inicia, então, em 1959 uma guerra "entre a Frente de Libertação Nacional, ou Viet Cong (de quem Ocean tomará o lado) e o exército do Vietnã do Norte contra a ofensiva estadunidense."

Mesmo sofrendo uma derrota em 1968, os vietnamitas derrotaram os EUA militar e politicamente após anos de guerra mesmo com a "inegável superioridade militar dos EUA, apesar das migalhas de apoio que lhes deram a China e a União Soviética, (e) apesar de sua direção não ser revolucionária."

Em 1973 nos acordos de paz de Paris, os EUA admitem sua derrota e reconhecem a independência do Vietnã, porém, apenas em 1975 se retiram do país com suas tropas, no que ficou popularmente conhecido como A Queda de Saigon.

Como afirma Gabriela Lizst em seu texto:

"O maior custo foi pago pelos vietnamitas: 3 milhões de mortos (e cerca de 300 mil feridos, mutilados e vítimas de suicídio) contra 58 mil do Exército dos EUA. Ainda hoje existem pessoas que nascem com deformidades físicas resultantes das armas químicas lançadas pelos estadunidenses sobre a população. Mas seu poderio militar não pôde vencer a moral do povo vietnamita e as manifestações contra a guerra (em outros países), principalmente nos EUA, as quais aumentaram com a chegada dos soldados mortos.

Se firma como um Estado operário em 1975; foram 45 anos de luta por libertação, reforma agrária e reunificação. E é preciso dizer, que foram tantos anos devido ao atraso para a luta que significou a política do stalinismo, maoísmo e de Ho Chi Minh: ’Todos eles colocaram os trabalhadores e o povo por trás de blocos de colaboração de classes. Uma concepção contrária à independência de classes e à estratégia revolucionária que Lênin e Trotsky aplicaram durante a Revolução Russa. O Exército Vermelho dirigido por Trotsky conseguiu derrotar 14 exércitos imperialistas em três anos (apesar da situação calamitosa da população).

A política stalinista de "construir o socialismo num só país" impediu que tal triunfo estivesse a serviço da revolução mundial [...] Como previu Trotsky, se não fossem realizadas revoluções contra as castas burocráticas que dirigiam esses Estados, estes retrocederiam, de uma forma ou de outra, à restauração do capitalismo. Infelizmente hoje o Vietnã segue o caminho da China, com sua restauração capitalista sob a liderança do Partido Comunista’"

Peço perdão por tão longa contextualização do processo vietnamita, mas considerei necessário, pois se é preciso nos enfrentar com o anticomunismo, que existe e se faz presente nesse livro na introdução de Galindo, não podemos nos furtar da crítica necessária ao que significou a política traidora do stalinismo, maoísmo e ao comunismo de Ho Chi Minh, que não representam em nada o comunismo que nós trotskistas defendemos e pelo qual lutamos. É preciso acreditar na força do povo russo que tomou o céu de assalto e fez a maior revolução de nossa história; acreditar nas massas vietnamitas que conseguiram impor uma derrota ao imperialismo ianque, e defender essas histórias contra pessoas como Galindo, prontos a deturpar o comunismo e histórias de luta da qual temos muitos exemplos a tirar.

Um poeta que toma o lado dos vietcongues, que fala da guerra e do amor

Agora, finalmente, vamos a essa obra prima - com todas as palavras - de Ocean Vuong, o jovem vietnamita, filho de uma família analfabeta, homossexual, tem por volta dos seus trinta anos; e como idade não é sinônimo de nada, Ocean já é gigante.

Céu noturno crivado de balas, a obra em questão, parece se dividir em torno de dois assuntos: a guerra do Vietnã e o amor, e como a guerra e o amor podem ser tão parecidos. De primeira o que nos salta aos olhos é a questão da guerra, em específico, a guerra do Vietnã, com a qual ele entra em contato a partir dos relatos de sua avó, mãe e pai.

Mas de início o eu-lírico do poeta não se coloca na cena, ou toma um lado, ele é um mero espectador; não tão mero assim, pois se ele não dá pistas de que lado da guerra ele está, em troca dá pistas do que pensa sobre o "way of life" prometido pelo imperialismo ianque, os maiores defensores do sistema capitalista, contrários ao comunismo.

HAIBUN DO IMIGRANTE

A estrada que me leva a você é segura
mesmo ao passar por oceanos.

Edmond Jabès

*
Então como se respirando, o mar inchou sob os nossos pés. Se for para saber apenas uma coisa, saiba que a tarefa mais difícil é viver só uma vez. Que uma mulher num navio naufragando se transforma em salva-vidas - pouco importa quão macia seja sua pele. Enquanto eu dormia, ele queimou seu derradeiro violino para manter meus pés quentes. Ele se deitou ao meu lado e depôs uma palavra em minha nuca, que derreteu e virou uma gota de uísque. Ferrugem dourada descendo as minhas costas. Navegávamos há meses. Sal em nossas frases. Navegávamos - mas a beira do mundo ainda não estava à vista.
*
Quando partimos, a cidade ainda ardia. Fora isso era uma perfeita manhã de primavera. Jacintos brancos ofegavam no gramado da embaixada. O céu era azul de setembro e os pombos bicavam farelos de pão espalhados pela bomba na panificadora. Baguetes partidas. Croissants esmagados. Carros estripados. Um carrossel girando seus cavalos emagrecidos. Ele disse que a sombra dos mísseis crescendo na calçada parecia deus tocando um piano imaginário sobre nossas cabeças Ele disse Tem tanta coisa que eu preciso te contar.
*
Estrelas. Ou melhor, os ralos celestes - à espera. Pequenos orifícios. Pequenos séculos se abrindo brevemente só para passarmos. Um facão posto para secar no convés. Minhas costas voltadas para ele. Meus pés no turbilhão. Ele se agacha a meu lado, seu hálito é um clima fora de lugar. Deixo que ele jogue um punhado de água do mar nos meus cabelos e depois que os torça. As menores pérolas - e todas para você. Abro os olhos. Seu rosto em minhas mãos, molhado como um corte. Se chegarmos à praia, vou dar a nosso filho o nome dessa água. Vou aprender a amar um monstro. Ele sorri. Um hífen branco onde deviam ser seus lábios. Há gaivotas sobre nós. Há mãos tremendo entre as constelações, tentando persistir.
*
A cerração sobe. E nós vemos. O horizonte - sumiu de repente. Um brilho d’água leva à dura queda. Simples e sem dor - do jeito que ele queria. O jeito dos contos de fada. Aquele em que o livro se fecha e vira riso em nosso colo. Encho as velas do mastro. Ele lança meu nome no ar. Vejo as sílabas se desmanchando em pedrinhas no convés.
*
Rugido furioso. O mar se divide na proa. Ele olha a água abrir como um ladrão que vê seu próprio coração: só ossos e madeira lascada. Ondas sobem dos dois lados. O barco encaixotado em duas líquidas paredes. Veja!, ele diz, agora eu vejo! Ele está saltitando. Ele beija as costas da minha mão enquanto agarra o leme. Ele ri mas seus olhos o traem. Ele ri embora saiba que arruinou tudo que é belo só pra provar que a beleza não tem o poder de transformá-lo. E eis a ironia: no lugar onde o pôr do sol devia estar há uma rolha. Ela sempre esteve lá. Há um navio feito de palitos de dentes e supercola. Há um navio em uma garrafa de vinho sobre a lareira em meio a uma festa de Natal - gemada com álcool espirrando de copos vermelhos gigantes. Mas navegamos mesmo assim. Insistimos em ficar de pé na proa. Casal de bolo de noiva numa cripta de vidro. A água agora tão calma. A água como o ar, como as horas. Todos gritam ou cantam e ele não sabe se a canção é para ele - ou para os quartos em chamas que ele confundiu com infância. Todos dançam enquanto um diminuto casal preso numa garrafa verde acha que alguém os aguarda ao fim de suas vidas para dizer Ei! Vocês não precisavam vir tão longe. Por que foram tão longe? Bem na hora que um taco de beisebol estilhaça o planeta.
*
Se for para saber só uma coisa, saiba que nasceu porque não havia ninguém a caminho. O barco balançava enquanto você inchava dentro de mim: o eco do amor se consolidando em um menino. Às vezes me sinto como um &. Acordo esperando ser destroçada. Talvez o corpo seja a única pergunta que não pode ser extinta por uma resposta. Quantos beijos trituramos em nossos lábios em oração - só pra catar os pedaços? Se você tiver que saber, o melhor modo de compreender um homem é com teus dentes. Uma vez, engoli a chuva durante toda uma tempestade verde. Horas deitada de costas, minha feminilidade aberta. O campo em toda parte sob mim. Que doce. Aquela chuva. Como só pode ser doce algo que vive apenas para cair. A água se amainou em intenção. A intenção se amainou em alimento. Todo mundo pode esquecer a gente - desde que você se lembre.
*
Verão na cabeça.
Deus descerra o outro olho:
luar duplo no lago.


Esse é, talvez, o segundo poema em que Ocean deixa que espiem o lado que ele toma, nesse poema em que o eu-lírico é uma mãe narrando sua fuga de uma cidade bombardeada, que Rogério W. Galindo dirá que é uma alusão a Queda de Saigon, vários assuntos serão abordados num fluxo de pensamento e narração de cenas que se sobrepõem.

"Que uma mulher num navio naufragando se transforma em salva-vidas - pouco importa quão macia seja sua pele." O eu-lírico é uma mãe gerando seu filho, uma mulher, e a sua volta vem um homem com quem ela segue, mas o amor entre um homem e uma mulher, nunca é simples ou sem nenhuma hierarquia posta, nessa sociedade patriarcal que oprime a mulher; então, é fato, que em meio a uma fuga - um naufrágio - a mulher se torne para o homem um "salva-vidas", não importando quem seja essa mulher, ou "(...) quão macia seja sua pele."

Mas essa fuga, nesse navio, de uma cidade bombardeada, mesmo em meio a uma paisagem linda - quando a beleza não corresponde a realidade -, não é uma fuga possível, pois essa fuga não existe, o lugar para onde se foge não representará uma saída: "E eis a ironia: no lugar onde o pôr do sol devia estar há uma rolha. Ela sempre esteve lá."

O navio que navegava em mar aberto, de repente se converte em um navio dentro de uma garrafa de vidro de vinho, um relicário vendido como mercadoria: "Há um navio em uma garrafa de vinho sobre a lareira em meio a uma festa de Natal - gemada com álcool espirrando de copos vermelhos gigantes."E esse navio leva o casal aos EUA, presente na alusão aos copos vermelhos, que vemos nas festas dos filmes hollywoodianos. A imagem dessa festa, não é uma imagem feliz, é uma imagem melancólica. "Mas navegamos mesmo assim." Pois mesmo com tudo isso se segue, seguimos, em busca de algo, sem saber, muitas vezes, o que.

"Bem na hora que um taco de beisebol estilhaça o planeta." Aqui novamente uma alusão aos EUA, com o taco de beisebol como símbolo do imperialismo ianque que destrói aquilo que os personagens desse poema conheciam por planeta. Novamente Vuong deixa que espiemos qual a sua posição sobre o capitalismo, na crítica aos seu maior expoente.

Em uma das últimas frases do texto o poeta coloca também qual o poder da escrita para ele, o poder de contar a história dos seus, para que eles não sejam esquecidos: "Todo mundo pode esquecer a gente - desde que você se lembre."

AUTORRETRATO COMO FERIMENTOS DE SAÍDA

Deixe, ao invés, que seja ele o eco de cada passada
afogada na chuva, que aleije o ar como um nome

jogado num barco que afunda, e respingue na casca da paina
após passar pelo podre & pelo ferro de uma cidade que tenta esquecer

os ossários que há sob as calçadas, depois vá e atravesse
o campo de refugiados, enfermo de fumaça e hinos cantados

até a metade, um barracão enegrecido de ferrugem & onde queima
a última vela de Bà Ngai’’s, as faces dos sapos que temos nas mãos

& confundimos com irmãos, que entre num salão iluminado
pela neve, cuja única mobília é o som do riso, lá onde pão

& maionese são içados a lábios rachados como prova
de um triunfo de que ninguém se lembra mais, que limpe o rosto corado

do recém-nascido enquanto o pai o pega nos braços, todo enrolado
em vísceras de peixe & Marlboros, todos torcendo enquanto

mais um moreninho é abatido pelo M-16 de John Wayne, o Vietnã
em chamas na tela, que passe por seus ouvidos,

límpido, como uma promessa, antes de pegar o pôster
de Michael Jackson cintilante sobre o sofá, no

supermercado onde uma mulher miscigenada se
dispões a acreditar que cada branco com nariz igual ao dela

é seu pai, que cante, brevemente, em sua boca,
e só depois a deite entre latinhas de tomate

& o macarrão, enquanto rola da sua mão
a vermelhíssima maçã, depois na cela onde o marido

fica olhando para a lua, ali sentado,
até se convencer de que deus não vai mais

recusar nenhuma hóstia, que acerte o queixo dele como um beijio
que esquecemos como dar um no outro, voando

de volta a 1968, na Baía de Ha Long: o céu
substituído pelo fogo, o céu para onde só olham os mortos,

que alcance o avô que agora trepa com
a camponesa grávida na traseira do seu jipe militar,

o seu cabelo tremulando ao vento de uma bomba de napalm, que
o prenda ao pó onde as suas filhas vão crescer,

com seus dedos em bolhas & Agente Laranja, que elas
rompam as fileiras verde-oliva, agarrem o nome pendurado

em seu pescoço, o nome que elas põem sobre as línguas
para aprender mais uma vez a dizer viva, viva, viva - mas se

não for possível nada mais, que eu possa criar esse raio da morte
como uma cega que costura de novo um pedaço de pele

no corpo da filha. Sim - que eu acredite que nasci
para rearmar este rifle, brilhante e bem lubrificado, como um verdadeiro

vietcongue, como as pegadas de fantasmas toldadas na chuva
enquanto me agacho entre os alvos - & rezo

para que nada se mova.


Acho que esse poema é auto explicativo e deixa claro de que lado o poeta está: "(...). Sim - que eu acredite que nasci/ para rearmar este rifle, brilhante e bem lubrificado, como um verdadeiro/ /vietcongue, como as pegadas de fantasmas toldadas na chuva/ enquanto me agacho entre os alvos - & rezo/ /para que nada se mova." Fica claro também quando ele narra os estupros a camponesas vietnamitas, o uso criminoso e assassino das bombas de napalm, que deixam lesões ao povo vietnamita até os dias de hoje.

Nesse poema ele também fala sobre a espetacularização e banalização da guerra do Vietnã pela indústria cinematográfica hollywoodiana, onde os vietcongues são interpretados por qualquer figurante não-branco para ser morto pelo herói, norte-americano, interpretado por um ator famoso: "mais um moreninho é abatido pelo M-16 de John Wayne, o Vietnã".

É preciso também falar do amor entre filho e mãe, e avó - essas figuras maternas -, do amor entre dois homens, do amor de um filho pelo pai; e é disso que o poeta se ocupará na segunda parte de seu livro. Em especial aparecerá o amor entre dois homens, onde Ocean coloca sobre a necessidade de se esconder esse amor, dentro de carros, em campos, nos escuros, não importa onde, é preciso que esse amor se esconda para que seja vivido. E muitas vezes o amor e a guerra se parecem e se misturam.

FRAGMENTOS DE UM CADERNO DE NOTAS

A extensão aquecida pela cicatriz no pescoço de um homem exausto.
Era só o que eu queria ser.

Às vezes eu peco demais só para sentir transbordar minha boca.

Descoberta: meu pentelho mais longo tem 3 centímetros.

Bom ou ruim?

7h18 da manhã. Kevin teve uma overdose ontem à noite. A irmã dele deixou uma mensagem. [Não consegui
ouvir inteira. Já são três este ano.

Prometo parar logo.

Derramei suco de laranja na mesa toda hoje cedo. Súbita luz do sol
não tive como limpar.
Minhas mãos foram luz do dia a noite inteira.

Acordei à 1 da manhã e, sem motivo, corri pelo milharal do Duffy. Só de cueca.

O milho estava seco. Eu soava como um incêndio.
sem motivo.

Minha avó disse Na guerra eles pegavam um bebê, um soldado em cada perna, e puxavam
Como se não fosse nada.

Chegou a primavera finalmente! Narcisos para todo lado.
Como se não fosse nada.

Há mais de 13.000 partes de corpos não identificados do World Trade Center
armazenadas em um depósito subterrâneo em Nova York.

Bom ou ruim?

A essa altura o céu não devia estar superpesado?

Talvez a chuva seja <> por atravessar
tanto mundo na queda.

O que é doce também pode arranhar a garganta, então misture bem o acúcar. - Minha vó.
4h37 da manhã. Por que será que a depressão faz eu me sentir tão vivo?

A vida é engraçada.

Nota mental: Se Orfeu fosse mulher eu não estaria preso aqui embaixo.

Por que todos os meus livros me deixam de mãos abanando?

Em vietnamita, a palavra para granada é <>, do francês <>,
que significa <>.

Ou será da palavra americana para <>?

Acordei gritando em silêncio. O quarto inundado de uma água azulada chamada aurora.
Fui dar um beijo na testa da minha vó

só por precaução.

Um soldado americano comeu uma camponesa vietnamita. Por isso minha mãe existe.
Por isso eu existo. Por isso nada de bombas = nada de família = nada de mim.

Que bosta.

9h47 da manhã. Já bati quatro punhetas. Meu braço está me matando.

Berinjela = cà pháo = <>. Eis a alimentação definida
pela extinção.

Conheci um homem hoje. Professor de inglês numa escola
na cidade vizinha. Uma cidade pequena. Talvez

eu não devesse, mas ele tinha mãos
como as de alguém que eu conhecia. Alguém a quem estava acostumado.

O modo como elas formavam breves templos
sobre a mesa enquanto ele procurava as palavras exatas.

Conheci um cara, não era você. Na sua sala Bíblias sacudiam nas prateleiras
pela luz de velas. Seus testículos duas frutas machucadas. Eu os beijei

de leve, como alguém pode beijar uma granada
antes de arremessá-la na boca da noite.

Talvez minha língua também seja uma chave.

Que bosta.

Eu podia devorar você ele disse, passando o nó dos dedos na minha bochecha.

Acho que amo muito a minha mãe.

Há granadas que explodem com uma visão de flores brancas.

Florindo num céu cinzento, atravessando
meu peito.

Talvez a língua também seja um alfinete.

Eu vou ficar maluco quando a Whitney Houston morrer.

Conheci um homem. Prometo parar.

Deporto os mortos é um belo exemplo de uma rima perfeita. Foi ele quem disse isso.

Ele era branco. Ou talvez, eu só estivesse fora de mim, perto dele.

Seja como for, esqueci de cor o nome dele.

Fico imaginando qual deve ser a sensação de se mover à velocidade da sede - se seria tão
[rápido quanto deitar
no chão da cozinha com as luzes apagadas.

(Kristopher)

6h24 da manhã. Terminal de ônibus. Passagem só de ida para Nova York: US$ 36,75.

6h57 da manhã. Te amo, mãe.

Quando os guardas da cadeia queimaram os manuscritos dele, Nguyen Chí Thién não
[conseguia parar
de rir - os 283 poemas já estavam dentro dele.

Sonhei que andava descalço na neve até a tua casa. Tudo
estava de um azul de tinta borrada

e você ainda vivia. Havia até uma luz do tom da aurora
dentro da tua janela.

Deus deve ser uma estacão, minha avó disse, olhando para a nevasca que afogava
seu jardim.

Minhas pegadas na calçada eram os menores voos.

Caro deus, caso você seja uma estação, que seja a que eu atravessei
para chegar aqui.

Aqui. Era só o que eu queria ser.

Prometo.


Esse poema é um exemplo perfeito de como o amor e a guerra se sobrepõem na escrita de Ocean. O amor pela avó e pela mãe retornam algumas vezes ao longo do texto como no verso: "Fui dar um beijo na testa da minha vó/ /só por precaução." ou no verso: "6h57 da manhã. Te amo, mãe."

Essa avó, a matriarca da família que conta cenas da guerra do Vietnã, que descrevem descaradamente os crimes cometidos pelos exércitos imperialistas, primeiro francês, e depois ianque: "Minha avó disse Na guerra eles pegavam um bebê, um soldado em cada perna, e puxavam/ Como se não fosse nada.". Essa avó que foi estuprada por um soldado, do qual a mãe do poeta é fruto, infeliz e dolorosamente: "Um soldado americano comeu uma camponesa vietnamita. Por isso minha mãe existe./ Por isso eu existo. Por isso nada de bombas = nada de família = nada de mim./ /Que bosta."

Em seguida, em cenas sobrepostas, ele narra sobre os encontros afetivos dele, um homem, com outros homens, relações furtivas, que acontecem e logo passam, não se aprofundam, mas estão sempre lá perpassando esse eu-lírico tão rico que Ocean constrói: "Conheci um homem hoje. Professor de inglês numa escola/ na cidade vizinha. Uma cidade pequena. Talvez/ /eu não devesse, mas ele tinha mãos/ como as de alguém que eu conhecia. Alguém a quem estava acostumado./ (...)/ Conheci um cara, não era você. Na sua sala Bíblias sacudiam nas prateleiras/ pela luz de velas. Seus testículos duas frutas machucadas. Eu os beijei/ /de leve, como alguém pode beijar uma granada/ antes de arremessá-la na boca da noite."

Retomando o verso, citado no início desse artigo: "Em vietnamita, a palavra para granada é <>, do francês <>,/ que significa <>./ / Ou será da palavra americana para <>?" para deixar claro que a guerra foi importada pelo imperialismo francês e ianque para colonizar um país.
Escrever para Ocean é uma maneira de recontar, guardar e memorizar a história de sua família, de não deixar que eles sejam esquecidos, não deixar que seja esquecida a história da qual eles fazem parte. E, talvez, seja realmente esse o poder da literatura.

Agradeço ao leitor que chegou até aqui nessa não tão breve incursão por essa obra de Ocean Vuong e deixo o pedido: LEIAM OCEAN VUONG!

 
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