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"O debate gênero e classe se atualiza em um mundo em crise"
Cynthia Lub
Barcelona | @LubCynthia
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Em primeiro lugar, muito obrigada pelo convite para nós a esta importante Conferência Marxista Feminista e por ter considerado os horários de um painel no qual as conexões vêm de diferentes países com fusos horários muito diferentes.

Nosso painel é composto por militantes da Agrupação Internacional Pão e Rosas com presença na Argentina, Chile, Brasil, México, Bolivia, Uruguai, Perú, Costa Rica, Venezuela, Estados Unidos, Estado Espanhol, França, Alemanha e Itália. Em nossas agrupações é combinada a força das trabalhadoras, migrantes, racializadas, jovens estudantes, intelectuais, trans, lésbicas e da diversidade sexual.

Com esta sinergia, nos propomos humildemente a estar na primeira linha dos processos de organização e luta pelos direitos da maioria das mulheres, contra as múltiplas opressões e a exploração, em cada país. Assim como também aportar aos debates do movimento feminista a nível mundial, a partir da nossa perspectiva marxista revolucionária.

Este painel está composto por:

Da Argentina: Andrea D’Atri é dirigente do Partido de Trabalhadores Socialistas, assessora parlamentar da Frente de Esquerda, fundadora da Agrupação Pão e Rosas. Editora de Lutadoras - Histórias de Mulheres que fizeram História. Também é compiladora da antologia Flora Tristán: o martelo e a rosa. E autora de Pão e Rosas, pertencimento de gênero e antagonismo de classe no capitalismo, traduzido ao inglês, alemão, português, italiano e francês.

Do Chile: Alejandra Decap, feminista socialista, militante do Partido de Trabalhadores Revolucionários (PTR). Candidata a deputada pelo Distrito 10. Pesquisadora em Lingüística Hispánica da Universidade do Chile. Membro do conselho editorial da revista Ideias Socialistas.

Do Brasil: Diana Assunção, dirigente do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, historiadora, trabalhadora não-docente da Universidade de São Paulo, organizadora do livro A precarização tem rosto de mulher e apresentadora do Podcast Feminismo e Marxismo.

Do Estado Espanhol:
De Madrid: Josefina Martínez, militante da CRT (Corrente Revolucionária de Trabalhadores e Trabajadoras). Historiadora. Autora do livro Não somos escravas. Co-autora do livro Patriarcado e capitalismo, autora do livro Revolucionárias, co-autora de Cem anos de história operária na Argentina. Escreve no Izquierda Diario.es, comitê editorial do suplemento Contrapunto, CTXT e outras mídias.

Da Catalunha-Estado espanhol: falarei eu mesma, Cynthia Burgueño. Sou trabalhadora do setor precarizado da educação. Historiadora. Sou co-autora do livro Patriarcado e Capitalismo. Feminismo, classe e diversidade. Escrevo no EsquerraDiari.Cat e no ’Contrapunto’. E sou militante da CRT.

Neste painel, queremos colocar alguns debates dentro do feminismo anticapitalista, a partir de uma perspectiva marxista revolucionária.
Viemos de uma pandemia mundial que deixou aberta uma crise econômica, social, ecológica sem precedentes, que os capitalistas vão voltar a descarregar na classe trabalhadora, nas mulheres, nas pessoas migrantes e na juventude.

O debate sobre a relação entre gênero e classe/patriarcado e capitalismo se atualiza, questão fundamental para pensar estratégias de emancipação contra o capitalismo patriarcal.

Neste novo contexto, podemos ver como fica retratado o feminismo liberal ou neoliberal. Toda a ideia de que existe ou pode existir um sujeito “mulher” homogêneo, oposto aos homens, para além de sua condição de classe. Um sujeito “mulher” que gradualmente consegue direitos e avança de forma individual, nos marcos do sistema capitalista, mantendo as relações sociais tais como são hoje. O feminismo liberal quer fazer com que se acredite que a ideia de sororidade entre as mulheres está acima da luta de classes, quando isso está muito longe da realidade.

Acreditamos que o que estas concepções ocultam são as diferenças de classe, o racismo e a dominação imperialista que sustentam os próprios privilégios de um pequeno setor da sociedade, composto por muitos homens, mas também pelas mulheres das classes dominantes. Sob o neoliberalismo, uma elite de mulheres passou a ser parte do 1% mais rico do planeta, enquanto milhões de trabalhadoras e trabalhadores são condenados ao desemprego, às reduções salariais e à super exploração.

No livro Patriarcado e Capitalismo, Feminismo, classe e diversidade que escrevemos Josefina e eu falamos de um símbolo do feminismo neoliberal: Ana Botín, que em 2018 tinha sua fortuna pessoal estimada em 300 bilhões de euros. O que tem a ver a sua vida com a de milhões de mulheres precárias que não chegam ao fim do mês, que não conseguem pagar um aluguel ou que foram despejadas de suas casas e que frente à crise que se abre se verão jogadas em uma situação de maior pobreza e miséria? Como vemos, a questão de classe atravessa o gênero e delimita campos sociais opostos. E é a partir desta perspectiva que abordaremos os distintos debates.

***

Para começar nos perguntamos: Nesta etapa pós-pandemia: qual é a situação da maioria das mulheres: as trabalhadoras, as migrantes, as jovens….?

A pandemia deixou claro quem são os “essenciais”: a classe trabalhadora, hoje muito diversa, racializada e, sobretudo, altamente feminizada, ocupando as tarefas da produção e da reprodução.

Estas tarefas que durante a pandemia foram consideradas essenciais, o sistema capitalista e patriarcal as localizou historicamente nas últimas das categorias, subestimando-as, para impor maior exploração, todo tipo de brechas e dificuldades. E a crise do coronavírus visibilizou essas contradições, porque vimos aquelas que sofreram “na primeira linha” do desemprego, da pobreza e da precariedade, tem sido toda a classe trabalhadora. Uma classe que hoje, produto das transformações no capitalismo, não é homogênea, e conta com uma feminização do trabalho exponencial, tamanha que 40% do emprego global é composto por mulheres.
Mas esta feminização veio acompanhada da piora das condições de trabalho, assinadas pela fragmentação e divisão interna em múltiplas categorias.
E chegado o século XXI, apesar dos avanços em direitos políticos, civis e democráticos produto das lutas históricas do movimento de mulheres, é no terreno do trabalho onde mais foram se incrementando as desigualdades de gênero.

Estas desigualdades, como a brecha salarial que a nível mundial é de 19%, estão baseadas no aumento da exploração e precarização do trabalho nos setores mais feminizados.

Tudo isto foi visibilizado pela pandemia.

Vimos que a feminização dos cuidados e sua transferência dos lares ao trabalho assalariado se expressou sob uma crise exponencial, com o antecedente de décadas de cortes na saúde, educação, serviços sociais ou nas áreas de dependência.

Vimos a opressão trabalhista na sua expressão mais racista, como com as catadoras do campo.

Também se evidenciou ainda mais a situação das empregadas do lar, maioria imigrantes ou racializadas, foram expulsas para as ruas, ficaram desempregadas e sem direito a seguro, rachando a cadeia global de cuidados.

Esta questão, junto ao confinamento que isolou meninos e meninas nas suas casas, tornou insuportável a vida das famílias trabalhadoras, cuja dupla carga evidencia um problema estrutural dos cuidados, que é a falta da educação infantil gratuita e universal de 0 a 3 anos.

Definitivamente, o que evidenciou claramente esta crise é que a classe trabalhadora, metade feminina, ocupa todas as posições estratégicas de produção e reprodução da sociedade. E isso abre debates no movimento feminista que abordaremos de vários ângulos das companheiras.

***

Em segundo lugar, temos que dar conta de que as mulheres têm estado na linha de frente da luta de classes:

Antes da pandemia, setores de trabalhadoras, em todo o mundo, têm estado lutando e se auto-organizando contra a precariedade do trabalho, a exploração, as violências e o racismo. O movimento feminista e de mulheres retomou parcialmente os métodos da classe trabalhadora convocando greves no 8 de março. E ainda que em muitos países tiveram o limite de não se transformarem em verdadeiras greves gerais, em outros casos chegaram sim a impor greves trabalhistas, o que deu mais profundidade ao movimento.

Hoje, neste momentum pós-pandemia, a maioria das mulheres trabalhadoras, conscientes do seu potencial como “essenciais” também começam a recompor as suas forças, se organizando contra as consequências da crise.

Em plena pandemia, temos visto as trabalhadoras da saúde, enfermeiras e auxiliares que sofreram brutalmente a exploração e hoje seguem em luta em muitos países, como as enfermeiras dos hospitais em Nova Iorque, onde nossas companheiras trabalhadoras participaram. Também as trabalhadoras da limpeza dos hospitais, ou as cuidadoras de idosos e dependentes sendo uma grande maioria de coletivos migrantes nos países imperialistas, como nossas companheiras migrantes do Pão e Rosas Madrid ou Barcelona. As e os trabalhadores da Amazon. Na França, nossas companheiras acompanharam as greves das trabalhadoras da limpeza ferroviária. Hoje aqui no Estado Espanhol, de onde está sendo organizada esta Conferência Marxista Feminista, as trabalhadoras do Museu Bilbao Guggenheim completam 154 dias de greve contra a brecha salarial e as condições de exploração trabalhista. As trabalhadoras precárias da educação também estamos nos organizando pelas nossas condições de trabalho. No Brasil, temos sido parte da luta das trabalhadoras terceirizadas de limpeza das universidades, da saúde e das professoras. No Chile, acompanhamos a greve das trabalhadoras da saúde de Antofagasta, maioria migrantes, que deram uma batalha contra uma multinacional espanhola não somente pelas suas condições de trabalho, mas pelos direitos das pessoas migrantes. Ou junto às trabalhadoras da saúde na sua luta pelo direito ao aborto. E na Argentina temos sido parte de processos muito importantes que Andrea D’Atri explicará.

Isso nos leva a pensar que se potencializam as condições para seguir construindo um feminismo anticapitalista, antirracista, antipatriarcal e antiimperialista, oposto ao feminismo neoliberal e suas versões, pela direita até a "progressista" neorreformista. É por isso que as militantes da agrupação internacional Pão e Rosas, queremos contribuir com uma reflexão estratégica. Porque não se trata de limitar-nos a visibilizar as trabalhadoras, as mulheres imigrantes. E aplaudir. Trata-se de atuar junto delas, o valor da prática de suas experiências, e tirar conclusões profundas do que está acontecendo. Porque a crise para a classe trabalhadora NÃO é uma "ideia" para analisar dentro das luxuosas paredes das universidades. A crise para as mulheres da classe trabalhadora é uma questão de vida ou morte. Por isso, trata-se de traçar as melhores estratégias para vencer.

Frente a isso nos perguntamos: é possível apostar que as mulheres possam cumprir um papel de vanguarda na luta de classes? Está colocado que possam romper a divisão das fileiras da classe trabalhadora atual, garantidas pelas mãos das direções sindicais burocratizadas, e assim contribuir para revolucionar e recuperar os sindicatos ou criar novas organizações democráticas?

E contra o pensamento estalinista de que "o gênero divide a classe": não está colocado que as trabalhadoras possam contribuir com suas demandas e ir mais adiante do que o sindicalismo e o corporativismo, integrando as lutas contra o machismo e o racismo, contra a opressão imperialista, somando as ao conjunto dos setores oprimidos por uma causa anticapitalista? Muito longe daquelas ideias que tergiversaram o marxismo considerando que a perspectiva de classe anula a luta contra as opressões de gênero, contra o racismo, ou contra a transfobia ou a homofobia que está tendo consequências terríveis e até mortais para as pessoas diversas sexualmente.

Está colocado, a partir das importantes experiências de luta e auto organização das trabalhadoras junto a outros setores, a construção de alianças com o conjunto da classe trabalhadora, e assim criar hegemonia operária e popular. Alianças junto a todos os setores de trabalhadores e trabalhadoras estratégicos da produção como os agrícolas, os da logística, das fábricas alimentícias, dos supermercados, os caminhoneiros que levam os alimentos aos mercados, de todo o sistema sanitário, educacional e dos serviços sociais.

Acreditamos que, em um mundo em crise, estas hipóteses se atualizam.

***

E por último nos perguntamos: o que significa um feminismo anticapitalista?

Pensamos que há condições para seguir construindo um feminismo anticapitalista, antiimperialista e antipatriarcal, oposto ao feminismo liberal como o de Ana Botín, essa "mulher da linha de frente" para salvar os bancos e os negócios capitalistas.

Trata-se então de refletir sobre como e abrir um debate sobre o que significa um “feminismo anticapitalista”, pois para lutar contra o 1% mais rico do mundo é preciso enfrentar muitos inimigos. Este é um debate com o feminismo dos 99%.

Em primeiro lugar, devemos perceber que há uma grande diversidade no restante dos 99%, não há homogeneidade para ir "todos" contra o 1%, há aqueles que administram grandes empresas e recebem parte de seus lucros extraordinários como recompensa, há as classes médias altas, a pequena burguesia comercial e profissional, a casta política dos regimes democráticos capitalistas que administram e garantem seus negócios.

E por outro lado, um feminismo anticapitalista deve enfrentar outra parte do 1%: os governos e instituições capitalistas, sejam eles de direita, ou que se autodenominam "progressistas", as lideranças traiçoeiras do movimento operário, as burocracias dos movimentos sociais e os partidos políticos, que servem de engodo para os setores populares.

Essa ideia de que “o capitalismo não dá mais” está começando a ser assimilada por muitos setores. Mas o sistema capitalista patriarcal não cairá por si mesmo e apresentará sua violenta resistência diante de qualquer desafio. Para isso, conta com Estados, presídios, polícia e exército, instituições políticas e educacionais e meios de comunicação.

Hoje estamos em um momento político com grandes incertezas adiante.

Por um lado, a crise capitalista iniciada há mais de uma década gerou um desastre nos partidos do "centro extremo", conservadores e social-democratas que dirigiram os governos, por exemplo na Europa, durante as décadas do neoliberalismo.

Num contexto de crise de representação e de grandes polarizações políticas, não só na Europa mas também na América Latina, como as camaradas vão exprimir nas suas apresentações, emergiram dois novos fenômenos: por um lado, os populismos de direita, (do VOX no Estado Espanhol, Milei na Argentina ou Bolsonaro no Brasil, antes deles o Trump) exibindo um discurso agressivo contra as mulheres, os migrantes, a ofensiva contra a “ideologia de gênero”. Por outro lado, as formações neo-reformistas, como Podemos no Estado espanhol, com a promessa de uma gestão mais “humana” ou “decente” do capitalismo.

No momento atual, frente ao crescimento das forças de direita e extrema direita, surge a pergunta de como vamos enfrentá-los. E são muitos os que sustentam que é preciso seguir optando pelo “mal menor”. Hoje vemos esse “mal menor” no governo imperialista espanhol que se apresenta como o mais progressista da história, mesmo quando seguem sustentando políticas neoliberais.

O capitalismo - seja nas suas versões mais conservadoras ou com aparência progressista - prometia o reina da “livre escolha” para todas as mulheres, mas só entregou a chave a uma ínfima minoria. A maioria das trabalhadoras, camponesas e das habitantes dos países mais pobres do mundo nunca tiveram essa opção.

E porque não se trata de se conformar com uma cota de igualdade para um pequeno grupo de mulheres dentro das estruturas capitalistas patriarcais, o que queremos é explodi-las. Por isso o debate sobre estratégias é tão necessário em um mundo em crise. E nos propomos a construir uma força militante, organizações revolucionárias e internacionalistas. Porque queremos o Pão, mas também as Rosas e não nos contentamos com as migalhas deste sistema.

Passo a palavra para minhas companheiras, que irão aprofundando esses debates no calor de suas diferentes experiências.

 
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