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M-8: quando a morte socorre a vida e uma notícia de jornal
Gabriela Farrabrás
São Paulo | @gabriela_eagle

Corpos negros assassinados pela violência policial se tornam objetos de estudo em faculdades de medicina em filme, aqui no Brasil, e na vida real, na Nigéria.

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Uma notícia de jornal

No início do ano saiu nos jornais uma notícia sobre uma história que aconteceu há 7 anos atrás; Enya Egbe, de 26 anos, estava cursando medicina na Universidade de Calabar na Nigéria quando entrou no laboratório para dissecar um corpo e se assustou ao ver o corpo de seu amigo com quem ia a bares juntos, o corpo se encontrava com dois tiros no peito, e agora era material de estudo para estudantes de medicina.

Uma das amigas de Enya, que estava com ele no momento, se deu conta na hora, que a maioria dos corpos usados para estudo na faculdade tinham marcas de bala, e que eles poderiam ser vítimas da violência policial, que assim como no Brasil, assola os jovens negros. Ela ainda se lembrou da vez que viu uma van policial chegar à universidade lotada de corpos ensanguentados.

A família do amigo de Enya, que se chamava Divine, o procurou em diversas delegacias após ele ser preso junto com mais três amigos voltando à noite para casa. Através de investigações chegaram a um comerciante, chamado Cheta Nnamani, de 36 anos, que confessou ter sido obrigado pela polícia a se livrar de corpos de vítimas de violência policial e tortura sob ameaça de que ele poderia se tornar uma daquelas vítimas, e em uma das vezes ajudou a polícia a carregar três cadáveres que foram deixados na Universidade de Calabar.

Enya Egbe ficou por semanas traumatizado com o ocorrido e via o amigo em pé ao lado da porta do laboratório de anatomia, conseguiu terminar os seus estudos um ano depois de sua turma. A família de Divine conseguiu enterrar o corpo do jovem propriamente. Policiais envolvidos em sua morte foram apenas demitidos.

M-8: quando a morte socorre a vida

No momento que essa história se tornou notícia muitas pessoas nas redes sociais, logo viram as coincidências gritantes com o filme M8: quando a morte socorre a vida, filme brasileiro lançado em dezembro de 2020 do diretor Jeferson De.
O filme começa com Maurício (interpretado por Juan Paiva) se vendo como um corpo a ser dissecado na aula de anatomia da faculdade de medicina, deitado em formol, em um pesadelo. Ao acordar corre para o primeiro dia de aula na faculdade, na sala de aula o professor, um homem branco, fala sobre como na Europa Leonardo da Vinci já conhecia a anatomia humana enquanto no Brasil “índios andavam pelados”, destilando um preconceito profundo e ridículo.

Maurício é o único aluno preto da sua turma de faculdade, fora ele, os únicos negros na faculdade são trabalhadores, com quem Maurício é confundido por um outro aluno mesmo estando de jaleco branco, e, claro, os corpos a serem dissecados; o que leva Maurício a se questionar se ele não tem "mais a ver com esses corpos do que com (seus) colegas de turma."

O filme se passa na cidade do Rio de Janeiro, extremamente militarizada, que carrega em suas paredes o rosto de Marielle, essa ferida aberta do golpe institucional. Maurício é filho de uma mulher negra, Dona Cida (interpretada por Mariana Nunes), mãe solo, que trabalha como enfermeira para um homem branco rico que vê o filho da enfermeira como alguém da família - um retrato de como parte da sociedade brasileira se constitui.

Durante o início do filme, Maurício passa por mães, todas negras, que protestam bravamente e buscam seus filhos desaparecidos pela violência policial, lutando pelo seu fim. Não leva muito tempo para ele juntar uma coisa com a outra, e imaginar que o cadáver do qual ele deve tomar conta até o fim do semestre, que abriu o olho e o olhou, o M8 pode ser um dos filhos desaparecidos dessas mães.

Várias pequenas cenas de racismo ocorrem a Maurício durante toda a sua empreitada de querer descobrir quem era M8 antes de se tornar um corpo para estudo: o colega de classe que o confunde com um trabalhador, a atendente do hospital que atende de forma mais prestativa o seu amigo branco que pede pela mesma coisa que ele, o comentário do colega de turma, após Maurício ser elogiado pelo professor, que diz "leva jeito com a faca, já tem um emprego como açougueiro", até o enquadro policial por estar a noite em um bairro nobre e ser visto como o sujeito suspeito, e assim segue durante todo o filme.

Maurício descobre que M8 entrou no hospital no dia 14 de maio, morreu por hemorragia interna depois de sofrer vários traumas - uma forma mais branda de dizer agressões -, e foi encaminhado para a universidade no dia 15, por ser um indigente; bastou um dia sem que alguém o procurasse para que ele fosse declarado como indigente, e após o uso do seu corpo para estudo, ele será encaminhado para uma vala comum.

O encontro de Maurício com o cadáver M-8 foi uma revelação para Maurício, uma tomada de consciência, de que ele é a minoria dos negros que conseguem ter um estudo, entrar na faculdade, e mesmo assim nada disso o livrará de sofrer violência racial em todo o lugar que chegar, Maurício é a minoria que sobreviveu a violência policial, e que se depara com a realidade que assombra a imensa maioria dos jovens negros.

A violência policial tem nos tirado a vida dos nossos jovens, os seus nomes, e até o direito de enterrar nossos mortos. Quando Maurício decide "roubar" o corpo M-8 para entregar às mães que buscam seus filhos desaparecidos é uma forma de dar a elas o direito de viver um luto que foi negado, de poder se despedir de quem partiu, o mínimo de humanidade.

Essa e a cena do diálogo entre Cida e seu filho são as cenas mais bonitas do filme, quando Cida pede para o filho não abaixar a cabeça, lutar pelo seu lugar no mundo, como ela lutou para se tornar enfermeira e criar um filho sozinha é comovente e mobilizador.

O filme talvez peque por não se aprofundar um pouco mais em algumas questões como o relacionamento de Maurício com a religião, ou até mesmo seu relacionamento com Suzana (interpretada por Giulia Gayoso), uma colega de turma branca; a impressão que fica é que é pouco tempo de filme para uma história tão densa.

M-8: quando a vida socorre a morte é uma história que por mais fictícia que seja pode ser real aqui, como foi na Nigéria. A violência policial tem nos tirado a vida dos nossos jovens, os seus nomes, e até o direito de enterrar nossos mortos. Mas também não nos esqueçamos do levante por justiça por George Floyd, morto em frente a uma câmera pela polícia, que fez estremecer o centro do imperialismo, e se alastrou pelo mundo inteiro chegando ao Brasil e Nigéria; não nos esqueçamos de gritar "sem justiça, sem paz!" a plenos pulmões para que histórias como essas não se repitam mais.

 
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