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Imperialismo
Um Biden “trumpista” ou a real face do imperialismo?
Gabriel Girão

Frente à semelhança na política externa de Biden em relação a Trump, crescem as análises que veriam um Biden “trumpista” na política externa. No entanto, é preciso ver que na raiz dessa política estão as necessidades mais profundas do imperialismo americano em sua crise de hegemonia.

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Na última quinta-feira, o analista político da Folha de São Paulo Igor Gielow escreveu um artigo chamado “Afeganistão, China e vacinas mostram um Biden mais Trump do que Trump”.. Nesse artigo, o jornalista se dá conta que, no que tange a política exterior, Biden está conseguindo, na prática, levar vários aspectos da política de Trump de forma mais eficiente que o antigo mandatário. Contando com mais apoio interno e externo, além de um comportamento menos errático, o Democrata está conseguindo tal feito.

Para quem acompanha o Esquerda Diário, isso talvez não seja uma novidade. Como viemos falando desde as eleições, a tarefa de Biden é relegitimar as instituições imperialistas. No entanto, essa relegitimação é para que as instituições possam fazer o que sempre fizeram: explorar e oprimir povos no mundo inteiro.

E é exatamente isso que ele tem feito. Se aproveitando do prestígio por ter derrotado Trump, somado a políticas demagógicas internas, tais como alguns pacotes de investimentos estatais e acenos à movimentos sociais, em especial ao movimento negro – acenos que podem envolver inclusive jorrar dinheiro estatal em algumas organizações como forma de cooptar suas direções – Biden está tendo uma política externa mais agressiva que seu antecessor em muitos pontos. Além dos três pontos listados pela Folha, poderíamos citar mais alguns: a manutenção do embargo sobre Cuba (aumentando a pressão sobre o governo) e as sanções à Irã e Venezuela, o bombardeio à Síria, a manutenção da política imigratória de por crianças em jaulas, o apoio à Israel em seus ataques à Gaza e o reforço a OTAN.

Para finalizar, o analista diz: “Ele está errado? Se você for um apoiador que o via como uma espécie de cavaleiro reluzente a tirar os EUA das trevas do isolacionismo e jogar o país numa era renovada de multilateralismo, sim. É nesse dilema que aliados e liberais americanos se veem hoje.”

Bom, foi exatamente assim que Biden se vendia e era vendido por grande parte da grande mídia internacional e por vários setores da esquerda tanto nos EUA quanto em vários países. Bernie Sanders pulou de cabeça na campanha de Biden. Luciana Genro, do MES-PSOL disse exatamente que era vitória da luz contra as trevas. O Esquerda Diário e seu diário irmão nos EUA Left Voice foram uma das poucas vozes contracorrentes. No entanto, longe de uma análise personalista que veria apenas um “giro trumpista” em Biden, é preciso analisar de fundo a crise na hegemonia do imperialismo norte-americano.

A crise de hegemonia no imperialismo norte-americano

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA assumiram a hegemonia dentro do mundo capitalista, submetendo a Europa e o Jápão que saíam destruídos da Guerra e com 1/3 do mundo vivendo baixo Estados-Operários (ainda que deformados). As décadas subsequentes são marcados pelo boom do pós Guerra. A partir da década de 70, esse cenário começa a mudar, com o crescimento do Japão e de países europeus (principalmente a Alemanha) que começam a competir com os EUA em alguns ramos (sem que consigam contrapor a hegemonia americana). A crise de 1973 e a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã são marcos importantes do início do declive da hegemonia estado-unidense.

A ofensiva neoliberal e a restauração capitalista nos antigos Estados-operários marca um certo triunfo americano, mas deixa um mundo capitalista ainda mais fragmentado e já no final dos 90 início dos 2000 o neoliberalismo já começa a escancarar seus limites. O 11 de Setembro também é um marco importante pois mostra as imensas limitações dos EUA em exercer o papel de “polícia do mundo”, não conseguindo nem mesmo evitar um ataque de tamanha magnitude em seu próprio território. A Guerra ao Terror de Bush é uma tentativa de resposta ultra-reacionária a essa questão. Vinte anos após a invasão do Afeganistão, essa política hoje escancara seu fracasso.

A crise de 2008 é uma inflexão bem importante na situação. Além das consequências diretas da crise, como o aumento do desemprego e a queda nos padrões de vida, a resposta à crise também foi extremamente questionada: enquanto o Estado jorrava rios de dinheiro nos bancos, os trabalhadores sofriam com medidas de austeridade. Para complementar, havia um forte rechaço às intervenções imperialistas no Oriente Médio, as chamadas “guerras intermináveis”.

Criticando os planos de resgate de Bush e prometendo acabar com as “guerras intermináveis”, Obama se elege em 2008 (e também fazendo demagogia por ser o primeiro presidente negro dos EUA). No entanto, o que vimos foi o exatamente o oposto. Em 2009 Obama aprova um novo plano de resgate, maior que o de Bush. Se o valor era maior, os principais destinatários eram os mesmos: os bancos e as grandes empresas. Grande parte desse valor acabou sendo embolsado pelos banqueiros ou investidos no mercado financeiro. Como resultado, a criação de emprego ficou bem abaixo do esperado e os índices de pobreza atingiram recordes. No tangente às guerras, Obama ficou conhecido como “senhor dos drones” por ter sido o presidente que mais jogou bomba no Oriente Médio. Em sua gestão vimos a intervenção imperialista na Líbia (o que deixou o país destruído e com várias denúncias de trabalho escravo) e o financiamento de grupos radicais islâmicos na Síria. E ainda ocorreram vários casos de violência policial que fizeram estourar o primeiro Black Lives Matter.

A crise econômica e política nos EUA, uma crise orgânica como classificou Gramsci, gerou como expressão de extrema direita Donald Trump. Prometendo tornar os EUA “grande de novo”, retornar os empregos e o auge americano com uma política isolacionista, o republicano se elege. No entanto, apesar do desemprego ter diminuído nos EUA (tendo atingidos níveis mais baixos em décadas logo antes da pandemia) eram empregos muito mais precários, algo muito longe dos tempos dourados do capitalismo americano que Trump dizia querer restaurar. A sua política anti-China é considerada um fracasso, pois essa vem cada vez mais aumentando sua presença internacional. A péssima gestão da pandemia e o levante negro debilitam bastante o governo. No entanto, longe de debilitar apenas o governo Trump, o Black Lives Matter ano passado se constituiu na maior mobilização da história dos EUA e pôs em cheque a legitimidade das instituições políticas americanas, que já vinham de desgaste anterior como tratado aqui. Com a intenção de desviar esse movimento para dentro do Partido Democrata e relegitimar as instituições é que se elege Biden.

Para a entender a agressividade da política externa americana, temos que olhar o pano de fundo da situação internacional. O boom do pós guerra, realizado sobre a base da reconstrução da Europa e da hegemonia americana inconteste sob o mundo capitalista, permite taxas de crescimento econômico e da taxa de lucro dentro do mundo desenvolvido que não vão se repetir na história. Foi também a época de auge dos welffare states. A crise desse modelo é respondida pelo imperialismo americano com a ofensiva neoliberal, que além de um ataque às conquistas dos trabalhadores no mundo todo, significou uma imensa financeirização da economia, com uma desregulamentação imensa dos mercados financeiros. Uma das principais bases de crescimento econômico mundial desse modelo foi a penetração do capital nos antigos Estados Operários, principalmente a relação entre China e EUA, que durante muito tempo foi harmônica. Ainda assim, as taxas de crescimento econômico e de lucro não se comparavam ao período anterior. A crise de 2008 põe em cheque esse modelo. O mundo entra no que muitos economistas chamam de estancamento secular chamado onde as taxas de crescimento anuais são muito baixas. A produtividade também estanca e a taxa de lucro média cai ainda mais.

Gráfico ilustrando a queda da taxa de lucro. Fonte: https://thenextrecession.wordpress.com/

A impossibilidade de manter o padrão de crescimento anterior baseada na cooperação China e Estados Unidos gera como resposta chinesa um giro ao mercado interno com uma tentativa de aumentar seu desenvolvimento tecnológico e sua influência regional, como o projeto da Roda e Cinturão da Seda. Assim, a relação antes de cooperação com os EUA passa a ser de competição até o chegar em 2017 a ser considerada a principal ameaça estratégica dos EUA.

E não apenas com a China que a competição aumenta. Os atritos com a Europa também se tornam cada vez mais frequentes. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, num mundo onde o crescimento é cada vez menor, as potências farão de tudo para garantir seus interesses antes. Além disso, muitas vezes os países Europeus se veem numa sinuca de bico nas disputas dos EUA com a China e a Rússia. A crise da pandemia só fez agravar ainda mais essas contradições.

Portanto, a maior agressividade do imperialismo americano que está sendo agora tratada como um “trumpismo” de Biden não está ligada meramente com a personalidade do seu mandatário de turno. Pelo contrário, está ligada com os interesses materiais do capitalismo imperialista estadounidense em sua crise de hegemonia. Com as perspectivas cada vez piores para a economia mundial, a tendência são esses traços se amplificarem. Além disso, não está claro ainda nenhuma saída capaz de superar o estado de crise atual. Diferente da crise de 29, que foi resolvida com a segunda guerra mundial ou da crise dos 70 cuja a resposta foi o neoliberalismo – ambas saídas que só conseguiram ser impostas após grandes derrotas da classe trabalhadora na luta de classes – as perspectivas são cada vez menos animadoras e muitos economistas burgueses já estão jogando a toalha.

O que sim está claro, após poucos meses de governo Biden é que nenhuma resposta positiva virá do imperialismo americano. O apoio da China ao Talibã é também mais uma amostra que a solução também não virá da burocracia stalinista governante.

Ao mesmo tempo, um período mais convulsivo também significará maior choque entre as classes. Batalhar por uma política revolucionária a escala internacional que busque em cada conflito desses impulsionar a independência da classe trabalhadora em relação às frações burguesas e imperialistas em disputa rumo a uma saída que rompa com o capitalismo e o imperialismo é a única solução de fato progressista para a situação. Enquanto o mundo estiver sob o julgo do imperialismo e do capitalismo, apenas mais “trevas” virão.

 
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