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ESPECIAL MEIO AMBIENTE
Ainda sobre as contribuições do marxismo para analisar e resolver a crise ecológica global
Maré
Professora designada na rede estadual de MG

O que o marxismo tem a contribuir na análise e elaboração de um programa, estratégia e política para enfrentar - e vencer - a destruição do planeta em larga escala? No dia do meio ambiente, reedito uma proposta.

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Imagem: Luíza Eineck

No dia do meio ambiente reedito uma contribuição para o início dos debates entre aquelxs que querem dar uma saída efetiva para a crise ecológica global; que odeiam Bolsonaro, Mourão, Salles e também cada governador, deputado e juíz que favorece os empresários da exploração ambiental; que não confiam em figuras Biden, Macron e Merkel, inimigos do meio ambiente, dos trabalhadores e dos povos oprimidos de todo o mundo; que são ou acompanham a juventude “Fridays For Future” para não esperar que os governos e as empresas ganhem “consciência ecológica”, do contrário: buscando ser sujeito ativo para arrancar das garras do capital o direito à vida para nossas gerações e as futuras.

Agora estamos sob uma crise sem precedentes, que tem colocado cotidianamente em sério risco a vida de milhões, seja pela pandemia causada pela exploração capitalista irracional sobre o meio ambiente, pelas mortes de refugiados por causas climáticas, pelos assassinatos no campo e nas florestas em conflitos como o que ocorre contra os Yanomami na Amazônia, etc. Se formos listar apenas os principais eventos de importância ecológica na história recente mundial faltariam caracteres para esboçar uma análise e uma resposta para tais problemas. Outros artigos desse especial se dedicam a elaborar especialmente sobre o panorama no Brasil, que enfrenta uma crise no Ministério do Meio Ambiente.

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Por aqui, retomo o que dizia há alguns meses: o sentimento de época de uma geração que vê no horizonte a possibilidade permanente de tudo acabar sem solução precisa ser substituído por uma caracterização científica da realidade. É nesse sentido que se faz essencial retomar o “modo marxista de ver” a relação entre a sociedade e o restante da natureza.

O “modo marxista de ver” a relação entre sociedade e o restante da natureza

Não só Marx, mas Engels e outros marxistas refletiram e escreveram sobre o meio ambiente (e, como é da tradição marxista, suas palavras serviram como base para que hoje tenhamos elaborações mais robustas sobre o tema). Mas nessas linhas me restrinjo ao fundador do socialismo. Em “O Capital”, livro I, Marx desenvolve o raciocínio de que existe um “metabolismo” entre a sociedade e o restante da natureza, partindo de reconhecer que os seres humanos são componentes orgânicos da natureza e, como qualquer outra espécie, vivem em trocas fisiológicas com o meio em que vive. Ou seja: o princípio “nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma” da ciência natural básica se aplica ao que compõe e não compõe os corpos dos organismos vivos, assim como o que é incorporado e rejeitado.

Se formos ao fim e ao cabo, esse princípio permite compreender que não apenas não existe “naturalmente” uma separação estanque entre seres humanos e natureza, mas que essa separação não se aplica a nada que é material e a natureza. A química, aliada à dialética, nos permite ver que, sim, ser humano é ser humano, vírus é vírus e rocha é rocha, ao mesmo tempo que entendemos que os limites entre cada um desses “componentes naturais” não os isolam hermeticamente uns dos outros.

Marx e os marxistas, diferente do que se acusou ao longo de décadas, reconhecem e partem desse princípio, reconhecendo o que há de comum entre seres humanos e outros animais, incorporando inclusive as revolucionárias contribuições de Charles Darwin. A questão está justamente no debate sobre o que os diferencia, e aí reside uma grande quebra de um paradigma filosófico: para Marx, a diferença entre humanos e demais animais está não na consciência, na linguagem, no polegar opositor ou no tamanho do crânio, e sim no trabalho.

Como explica o sociólogo Iuri Tonelo, Marx, que desenvolveu o conceito de materialismo histórico dialético em debate contra filósofos idealistas, "inverte a cronologia” entre pensar e fazer, constatando que antes de que as pessoas pensem e teorizem sobre quaisquer coisas, elas buscam comer, vestir, proteger e manter seu corpo material no mundo material. Ele diz, no clássico já citado:

“Antes de tudo o trabalho é um processo de que participam os homens e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana..” [1].

Enfatizo: “antes de tudo”.

O trabalho é a relação que os seres vivos estabelecem com a natureza para fins de sua própria sobrevivência, sempre buscando uma economia de sua energia para obter melhor sucesso evolutivo (um tema para se desenvolver em outro artigo). A questão é que, diferente de uma abelha que faz sua colmeia, o ser humano planeja seu prédio e o constrói, e depois planeja outro prédio de forma totalmente diferente e executa novamente. O trabalho humano é o pensamento em ação orientado para um fim, e aqui está uma pista, desenvolveremos adiante, sobre como enfrentar e vencer a destruição do planeta.

O que distingue humanos e outros animais – a sua forma de lidar com a natureza, a sua forma de trabalho – não muda o fato de que, assim como outros animais, os seres humanos são parte da natureza e a transformam na medida em que existem. A questão é que, dialética como a vida e a história da evolução das espécies é, na busca natural por “economizar energia” nesse processo de transformação a humanidade foi se tornando relativamente bem sucedida.

O que, a princípio, era confecção de lanças cortantes e descoberta do fogo, foi se aprimorando, ao longo da história evolutiva humana, até criarmos não só facas e isqueiros, mas máquinas, fábricas, etc. Se a priori uma lança economizou o trabalho de pessoas que tinham que caçar com as próprias mãos, hoje os tratores, as armas, os compressores, transportadores, etc, nos permitem colocar incomparavelmente menos nossos próprios braços e pernas no processo de trabalho.

Mas todos os avanços tecnológicos acumulados na história da humanidade servem, no capitalismo, para gerar desemprego e superexploração. Hoje seria possível trabalharmos muito menos horas por dia e dedicar o restante do tempo para explorar nossas potencialidades humanas, como a arte, a consciência corporal, a ciência, dentre tantas outras. Poderíamos estar em uma situação na qual a humanidade de conjunto soubesse que seus avanços se voltaram contra si mesma, que o “sucesso evolutivo” está se tornando o seu contrário, que o conservacionismo se trata, sobretudo, de buscar transformar menos o planeta para que as condições que permitem a nossa existência nele não sejam substituídas por outras que nos extinga. Poderíamos ter uma legião de “gênios” estudando de que forma manter a melhor relação possível da nossa espécie com a natureza.

Mas a amplíssima maioria da nossa espécie está ocupada, se dedicando a... sobreviver! Trabalhar para viver e viver para trabalhar, de forma alienada. Transformar a natureza para sobreviver e sobreviver para transformar a natureza, se traduzirmos. O capitalismo nos transformou numa máquina de transformar a natureza, em proporções inclusive geológicas, porque o trabalho humano é capaz de criar excedente. A concentração deste excedente não está em função de alimentar os milhões de famintos no mundo, nem de garantir que nossas crianças possam estudar sem precisar trabalhar para comer. Tampouco, como está escancarado, tem servido para produzir insumos básicos para combater uma doença, quando é necessário. Está, do contrário, em benefício de uns poucos seres humanos que exploram e oprimem o restante da humanidade – os capitalistas.

Tudo o que a humanidade desenvolveu em sua história de existência para obter da natureza de forma mais econômica o necessário para viver, desde as lanças até as máquinas – o que chamamos de meios de produção –, está arbitrariamente nas mãos dos capitalistas, protegidos pelo Estado, com seus políticos, juízes, altos funcionários e forças de repressão armadas até os dentes. A classe trabalhadora, parcela da humanidade responsável por operar os meios de produção e produzir tudo o que todas as pessoas usam para sobreviver, precisa da permissão dos capitalistas para acessar esses meios e produzir suas condições de existência. O capitalista permite, sob a condição de que o trabalhador produza muitíssimo além do necessário para garantir sua própria condição de existência e usufrua, muitas vezes, de menos do que o mínimo necessário para sobreviver.

Sim, isso quer dizer que além do consumo irracional e desnecessário, que é parte da ideologia burguesa para criar necessidades de consumo e garantir lucros aos empresários ao mesmo tempo que existe uma privação aos mais pobres de consumir até o básico, o capitalismo é responsável por uma produção também irracional e desnecessária. No capitalismo transformamos a natureza muito mais do que seria necessário, e segundo as necessidades do capital, não da humanidade.

O capitalismo promove o que o marxista John Bellamy Foster, em 2005, chamou de “fratura metabólica”: interrompe o “metabolismo” entre o ser humano e a natureza, aquele processo fisiológico de troca do qual falávamos no início, pelas necessidades do capital. Para e por isso aliena a classe trabalhadora do fruto de seu trabalho – não só o produto que é usado, mas também o que é descartado.

Os lixões, o sistema de esgoto urbano, a separação entre cidade e campo, a saturação do solo usado e os venenos usados na agricultura e pecuária, até mesmo a medicina e farmacologia no capitalismo... tudo isso reflete um isolamento forçado do ser humano com relação ao restante da natureza, como se não fosse parte dela, e sim seu explorador absoluto, porque esse isolamento é mais produtivo, mais lucrativo. Mas também assassino, como Marx já alertava em 1867: “A produção capitalista, portanto, só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador.” [2]

A proposta marxista para a resolução da crise ecológica global

As perspectivas já abordadas nos levam a uma conclusão: a resolução da crise ecológica global passa pela humanidade. Se o trabalho humano é o pensamento em ação orientado para um fim, a relação entre ser humano e natureza também pode ser um pensamento conservacionista em ação orientado para o fim de que vivamos em harmonia no planeta. Para esse fim, nosso principal "programa", temos que traçar um caminho - nossa "estratégia" - e, nele, organizar cada um dos nossos passos - nossas "táticas" - para que, ao caminhar, mesmo ainda no capitalismo, avancemos.

Com isso, devemos responder "o que fazer então?". E essa resposta não pode se limitar a “um trabalho de formiguinha” para convencer cada indivíduo a desenvolver uma consciência ecológica conservacionista e mudar individualmente os seus hábitos. O problema não é o ser humano, é o capitalismo, portanto, ainda que seja importante algumas mudanças de hábitos, elas são inofensivas ao motor da crise, que a impulsiona em velocidade e dimensão que simplesmente anulam o resultado de medidas individuais.

Por isso, a chave está em nos apropriar não apenas da visão marxista sobre o meio ambiente, mas da estratégia marxista de derrubada do capitalismo. Nesse campo, de como lutar, está uma diferença entre nós e os “ecossocialistas”. Em primeiro lugar é preciso “limpar um campo” do debate com os ecossocialistas: o de que o socialismo, apenas, não responde ao problema da crise ambiental.

“Ecossocialismo” poderia ser uma redundância se parte da esquerda, após a burocratização da Revolução Russa de 1917, não tivesse se alinhado, ou se adaptado às ideias e à orientação da burocracia stalinista para o meio ambiente, que enxergava “atentado contra a revolução” quando se levantava a voz dos mais importantes ecólogos do mundo alertando sobre os perigos do desenvolvimento a todo custo. Se, no início da revolução, algumas das primeiras áreas de conservação do mundo, demarcadas e monitoradas, estavam em território soviético e a ecologia, na década de 1920, era provavelmente mais avançada na URSS que em qualquer outro país, após sua burocratização, foram cometidos crimes ambientais como a seca do Mar de Aral e o acidente nuclear de Chernobyl, além de que cientistas foram perseguidos, deportados e mortos. Os partidos socialistas que, após esses grandes acontecimentos históricos, negligenciaram a batalha contra a devastação ambiental enquanto uma tarefa dos revolucionários, romperam com a tradição marxista.

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Os adeptos dessa tradição, que reconhecem que não há perspectiva de resolução da crise ecológica por fora da superação do capitalismo, não devem esperar sentados a revolução, e aqui há mais um campo para limpar em debate com os ecossocialistas. Concordamos que não há tempo hábil para esperar a vitória da revolução para buscar conquistas parciais contra o avanço da destruição do planeta. Mas isso não pode significar cair em armadilhas plantadas por demagogos “verdes” como Joe Biden, que se postula como quem se preocupa com a catástrofe aumentada pelo governo de Jair Bolsonaro (e, vale lembrar, o regime do golpe institucional).

Cabe a nós pensar cada bandeira que levantamos hoje, em cada local de estudo e trabalho, em torno das quais precisamos organizar um movimento real. Essas bandeiras, ou, em outras palavras, o nosso programa, precisam se levantar de modo que cada conquista parcial que possamos ter nesse sistema seja usada como um degrau para conquistar mais.

Um dos mais brilhantes dirigentes da Revolução Russa, Leon Trótski, elaborou um documento (de fundação de um partido internacional da revolução socialista!) no qual discute a relação entre as reivindicações imediatas das massas exploradas e oprimidas pelo capitalismo e a necessidade de que depositem seus esforços em uma luta que, em seu conjunto, precisa ser anticapitalista, sob pena de não conquistarmos nem mesmo as demandas mínimas. Ele diz que “É necessário ajudar as massas no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista.” [3]

É preciso ajudar as massas para que a necessidade de não morrer por uma infecção quando isso pode ser evitado não se transforme em apoio aos que sempre foram nossos inimigos golpistas no Brasil. Para que a defesa do direito de respirar um ar que não seja adoecedor não se transforme em um apoio a que países imperialistas imponham taxas sobre a emissão de gases poluentes de países subdesenvolvidos ou atrasados, para que os mais pobres paguem por essas taxas com seus impostos. É preciso ajudar as massas para que a preocupação com a proteção de áreas com grande importância ambiental não se transforme em reivindicar que as empresas financiem projetos, para depois mentirem para a população em comerciais onde fingem que são minimamente responsáveis com o meio ambiente. É preciso ajudar as massas para que, em defesa de sua saúde e das condições de existência das próximas gerações e das demais espécies de seres vivos, batalhemos pela expropriação das grandes empresas poluentes, porque esses meios de produção estão nas mãos de quem exige uma produção poluente.

É preciso firmar aliança estratégica com a classe trabalhadora, que pelo papel que cumpre na produção é a única classe capaz de protagonizar a superação do capitalismo pelo socialismo, abrindo espaço para caminhar rumo a um sistema de produtores livremente associados, onde cada um contribua com o que pode e receba conforme precisa – o comunismo. Os movimentos não só ambientalistas, mas de mulheres, negros, indígenas, LGBTs e estudantis, precisam declarar que seus inimigos são os donos desse sistema, e em cada manifestação, greve, piquetes, ou qualquer momento de luta, levantar a bandeira do socialismo pelo fim da destruição do planeta: destruamos o capitalismo!

Sobre nosso programa e nossa estratégia, leia a declaração da Fração Trotskista - Quarta Internacional: O capitalismo destrói o planeta, destruamos o capitalismo

Referências:

[1] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Crítica da Economia Política. 27. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3 v. (1). p.211

[2] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Crítica da Economia Política. 27. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3 v. (1). p.703

[3] LUÍS SIEBEL (ed.). O Programa de Transição: Documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2008. p.20

 
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