www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
INTERNACIONAL
Um trotskista na Coreia do Norte
Wladek Flakin

Nosso autor visitou a República Popular Democrática da Coreia como um turista. Suas perguntas eram: como essa sociedade funciona? É a Idade da Pedra? Ou um culto? Ou arte dadaísta? Uma pesquisa de campo histórico-materialista.

Ver online

Flickr/wildirishman37

No 70º aniversário de fundação do Partido dos Trabalhadores da Coreia foi realizada uma parada militar em Pyongyang. Imagens do evento rodaram o mundo: (supostos) mísseis nucleares atravessaram o púlpito. O jovem ditador em seu traje escuro de Mao fez seu primeiro discurso público em dois anos. Milhares de espectadores agitavam, em perfeita sincronia, buquês coloridos de flores de plástico. Surpreendentemente, no meio da multidão também se encontravam turistas vindos do ocidente.

Eu sei disso porque eu também fui um turista em Pyongyang nessa primavera. Consigo lembrar exatamente a cena: um grupo que incluía muitos estudantes americanos. Eles tinham sido orientados a se vestir de forma respeitosa, mas pelo menos um deles estava usando jeans rasgados e uma gravata emprestada com uma camiseta. Eles se seguravam para ficar sérios enquanto os soldados passavam, mas de vez em quando acabavam soltando risadas.

Como isso é possível? Todo ano, menos de 5000 turistas que não têm origem chinesa visitam a República Popular Democrática da Coreia (RPDC). Impressões de primeira mão são praticamente impossíveis de se conseguir. Finalmente, temos fotos de uma viagem que todo mundo quer ver!

Nosso grupo de excursão conduziu uma busca longa e acalorada por uma teoria que explique esse país: quem sabe as pessoas nas ruas sejam apenas atores? Por que os guias turísticos não nos falaram nada sobre os campos de concentração? Bem, em uma excursão oficial de Washington, eles também não falariam de primeira que a população negra é jogada em presídios e assassinada pela polícia. Não, todo país quer apresentar seu lado agradável primeiro. Mas nós ainda precisamos de um esclarecimento: o que é esse país, um dos únicos cantos do planeta que não está sujeito às leis de ferro da economia de mercado?

Seria a Idade da Pedra?

“Comunismo da Idade da Pedra” - essa é a frase preferida da imprensa burguesa para a RPDC. Mas o que isso significa? Entre os caçadores e coletores da Idade da Pedra, não existiam diferenças materiais entre as pessoas. Sob esse “comunismo primitivo”, todos eram pobres mas todos eram iguais.

Na área rural da Coreia do Norte, podemos encontrar formas de produção muito primitivas. Porém, até mesmo o fazendeiro que trabalha com um burro e um arado de madeira ainda vai usar botas de borracha e se comunicar por celular. Na capital, muitos também tem smartphones.

Na Idade da Pedra, o líder tinha o “respeito não forçado e nem questionado” (nas palavras de Friedrich Engels). Em contraste, o respeito pelos Kims - ou nas palavras de nosso guia turístico, “a divinização” - requer um nível de coerção.

Logo isso não é a “Idade da Pedra”. Mas então que tipo de sistema é esse?
Socialismo? Um martelo, uma foice e um pincel, essa é a auto-representação do “Partido de Trabalhadores da Coreia” na forma de um monumento enorme. O regime se vê como socialista, mas, desde os anos 90, todas as representações de Marx e Lênin desapareceram.

O fundador do estado, Kim Il-Sung, avô do atual governante, Kim Jong-Un, foi capaz de substituir o marxismo-leninismo por sua própria ideologia. “Juche” significa algo como “auto-suficiência” e estipula que a montanhosa metade norte da península coreana é uma autarquia.

Seu filho, Kim Jong-Il, expandiu essa teoria com a “Política Songun”: em todos os aspectos, o exército tem total prioridade. Nos dez princípios sob os quais os cidadãos devem viver, todos envolvem a obediência ao líder.

Isso é quase tão distante do socialismo marxista - a auto-emancipação da classe trabalhadora - quanto da Idade da Pedra.

Um culto?

Às vezes as pessoas falam sobre uma “monarquia hereditária”. E os Kims governaram a península por quase tanto tempo quando a Casa de Saud na Arábia Saudita. Algumas comparações com o absolutismo aparecem, como as figuras onipresentes dos governantes, que supostamente têm habilidades mágicas. Mas a RPDC é estritamente ateísta e todos entendem que o “presidente eterno” (que morreu em 1994) não está olhando para eles do paraíso, mas sim morto e mumificado em seu caixão de vidro.

O país lembra um pouco um culto religioso - fico me lembrando sempre da Cientologia. Os guias turísticos forçosamente alegres parecem ter saído de um vídeo promocional de alguma igreja um tanto quanto agressiva. Em Pyongyang, todos portam sorrisos congelados junto da convicção de que suas condições de vida miseráveis estão entre as melhores no mundo.

Ou seria alguma outra coisa? É provável que Kim Jong-Un tenha passado parte da sua juventude em um colégio interno na Suíça. Nesse verão, a banda eslovena de provocação “Laibach”, que gosta de usar estéticas nazistas, viajou para a Coreia do Norte para um concerto. Metade no mundo ficou especulando sobre esse estranho tour musical. Talvez os norte coreanos simplesmente não entendam o humor da Laibach? Afinal de contas, apenas algumas centenas de pessoas no país têm acesso à Wikipedia. Mas e se o jovem ditador fosse um fã de arte dadaista? Será possível que a Coreia do Norte seja uma “obra de arte total” (gesamtkunstwerk) dadaista? Não. Nós provavelmente precisamos de alguma outra teoria.

Economia planificada

Vamos começar, no espírito do materialismo histórico, com as relações de produção. A República Popular tem, em geral, uma economia planificada. A maior parte do povo trabalha para o estado, e a maioria dos produtos não é vendida no mercado, mas sim distribuída pelas autoridades do governo. Essa planificação possibilitou o “milagre econômico coreano” no pós guerra - esse termo na verdade se refere à industrialização do norte. Só em 1975 o sul rural superou o norte industrial, economicamente falando.

Contudo, a economia planificada não funciona como pensado por Marx e Engels, ou seja, pela tomada de decisões democrática pelos produtores. “Kim Jong-Un olhando para coisas” (Kim Jong-Un Looking At Things) é o título de um site popular com fotos das constantes visitas do jovem ditador a fábricas e locais de construção. Essas “orientações ao vivo” já faziam parte do dia-a-dia de seu pai e seu avô. Um Kim pode emitir uma ordem que vira a produção de cabeça pra baixo de uma hora para outra. Contradizê-lo não é permitido.

Por exemplo, quando Kim Jong-Un decide que a capital precisa de um parque aquático de referência mundial, o poder de toda a economia deve ser focado nesse único projeto. Isso alcançou proporções absurdas quando seu pai, Kim Jong-Il, comandou centenas de milhares de pessoas para seus eventos massivos de dança, que duraram semanas seguidas.

O governante (Un) sem dúvidas vive uma vida confortável, mas ele não é o único que usufrui de benefícios materiais. Ao chegar no aeroporto, temos mais um exemplo: muitos oficiais norte coreanos voltando do exterior para buscar seus tacos de golfe da esteira de bagagens. A desigualdade social aqui não é nem de perto tão grande quanto sob o capitalismo, mas mesmo assim funcionários do partido podem dirigir carros e visitar restaurantes, o que é inconcebível para a maior parte do povo.

Restauração capitalista

A economia planificada na Coreia durou mais tempo que na Rússia ou na China. Porém, como nos anos 90 em Cuba, os primeiros nichos do mercado estão sendo abertos. Fazendeiros e fazendas coletivas agora podem semear alguns campos para si mesmos e vender os proveitos no mercado. Graças às importações chinesas, muitos apartamentos têm painéis solares, e as crianças usam roupas do Mickey Mouse.

O turismo é para trazer moeda estrangeira para o país - mas o interesse é notavelmente limitado em comparação às praias do Caribe. O jovem Kim abriu um grande resort de esqui em 2014, com sonhos de dois milhões de turistas estrangeiros por ano.

Como na China nos anos 90, há zonas econômicas especiais, onde empresas estrangeiras podem investir. Os salários vão para o estado, que repassa uma pequena fração para os trabalhadores. Uma dessas zonas fica em Rason, perto da fronteira com a Rússia; outra fica em Kaesong, perto da Zona Desmilitarizada. Turistas podem visitar as instalações em Rason com uma condição - nada de fotografar as marcas! Muitas empresas multinacionais relutam em admitir que têm tecidos costurados na República Popular. Semelhantemente, o estado exporta 50.000 ou mais trabalhadores para a China, Rússia e até mesmo Qatar - a maior parte de seus salários também vai diretamente para o estado.

Mas no geral existe uma falta de investidores capitalistas que queiram financiar uma restauração do capitalismo no norte. Então o regime Kim é dependente de certos nichos do mercado que são evitados por outros produtores. De acordo com rumores não confirmados, a indústria química altamente desenvolvida, que não encontra compradores para seus produtos, agora se especializa em anfetaminas. Todo o mercado da droga na China é supostamente vindo da Coreia - um pouco como o seriado de TV “Breaking Bad” mas no nível de todo um país! Da mesma forma, dólares falsificados da mais alta qualidade aparecem na região, e provavelmente também vêm da RPDC.

Degeneração

No grupo de excursão, o questionamento continua sem respostas: o que é a Coreia do Norte? É uma economia planificada sem democracia. Todas as decisões são tomadas por uma casta privilegiada, e liderando essa casta está um líder infalível. Então poderíamos dizer: a Coreia do Norte é stalinismo. Sim, mas isso apenas levanta a pergunta: o que é o stalinismo?

Uma economia planificada democrática requer um certo nível de produtividade: apenas trabalhadores que não estão perto de morrer de fome podem participar ativamente do gerenciamento da sociedade na forma de conselhos. Mas na Coreia, que foi bombardeada até ruínas na guerra, a pobreza extrema era a norma (assim como na União Soviética após a guerra civil). Nessa situação, uma burocracia privilegiada pôde emergir. Marx já tinha previsto isso indiretamente em 1845: uma revolução sem o desenvolvimento das forças produtivas não pode triunfar porque “com a miséria também teria de recomeçar a luta pelo necessário e de se produzir de novo toda a velha porcaria”.

O revolucionário russo Trotsky, que foi uma figura dirigente da Revolução de Outubro antes de se tornar crítico da burocracia, descreveu a situação com uma analogia: “A autoridade burocrática baseia-se na pobreza em artigos de consumo e na luta contra todos que daí resulta. Quando os armazéns se encontram bem fornecidos de mercadorias, os clientes poderão aparecer a todo o momento. Quando as mercadorias escasseiam, os compradores são obrigados a esperar à porta. Logo que a fila de pessoas se torna muito longa, impõe-se a presença dum agente da polícia para manter a ordem. Este é o ponto de partida da burocracia soviética. Ela ‘sabe’ a quem dar e quem deve esperar.”

Poderíamos adicionar: se a fila for especialmente longa, você precisa de um Kim.

Trotsky chamou esse sistema de “estado operário degenerado”. Seu programa contra isso era uma “revolução política”: a estatização dos meios de produção deve ser defendida, mas a casta que lidera precisa ser derrubada.

Por mais pobre que a população da Coreia do Norte seja hoje, não podemos dizer que sua situação necessariamente melhoraria com o estabelecimento de um regime aliado aos Estados Unidos. O mercado capitalista e os direitos democráticos nem sempre andam de mãos dadas. Até hoje, a Coreia do Sul, que é relativamente rica, tem leis ditatoriais. A filha do último ditador militar está sentada no palácio presidencial, e se alguém elogiar uma cerveja norte coreana nas mídias sociais, a pessoa pode ser presa.

Turistas na Coreia do Norte têm a permissão de trazer livros, com uma exceção: a Bíblia e outros escritos religiosos. Isso porque missionários de seitas cristãs sempre tentam avançar no país. Então os escritos de Trotsky, em que ele defende a derrubada da burocracia, seriam em teoria presentes legalizados para nossos anfitriões coreanos. Depois dessa viagem, estou ansioso para viajar de novo para a RPDC. Às vezes se parece com um programa de TV nos anos 50, mas isso pode mudar rápido. Da próxima vez levarei Trotsky em minha bagagem.

Tradução: Arthemis Lyrae

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui