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Debatendo com Safatle: as forças armadas não são homogêneas
Thiago Flamé
São Paulo

Com esta nota queremos seguir o debate com o artigo “As forças armadas do caos”, que toca em algumas questões fundamentais na hora de pensar as coordenadas da luta contra o governo Bolsonaro.

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Na última edição desta revista Ideias de Esquerda, Simone Ishibasshi já desenvolveu a crítica ao elemento norteador das conclusões políticas de Safatle, que aparentemente apresentariam uma contradição formal na própria argumentação. Contra as forças armadas do caos, o impeachment, que levaria a posse diretamente um general. Não vamos aqui desenvolver os mesmo argumentos, deixaremos somente uma citação do artigo, indicando fortemente sua leitura. Frente a essa contradição, Simone argumenta:

“Como resposta a esse flagrante problema, Safatle afirma que Mourão por assumir um governo que seria produto da “pressão popular, já nasceria natimorto”. Perigoso e duvidoso argumento que não resolve um problema que está na raiz da ascensão de Bolsonaro, a saber, do processo aberto de degradação do regime político nascido pelo golpe institucional de 2016. Dessa forma, abrir caminho para Mourão em nada resolve as demandas do povo e dos trabalhadores primeiro porque se trata de colocar no lugar de Bolsonaro alguém tão reacionário como ele, igualmente defensor da ditadura militar e de todos os ataques aos trabalhadores. Caso viesse a se dar um processo institucional como o impeachment, o que ocorreria seria que a burguesia buscaria cerrar fileiras ao seu redor para fechar quaisquer crises. A velha prática de “mudar para não mudar nada” seria a tônica de uma situação como essa. As saídas precisam ter mais profundidade. Não à toa que o impeachment é alentado por setores do golpismo, e atores tão autoritários quanto os que hoje ocupam o primeiro escalão do governo. Ninguém pode acreditar que estejam preocupados com o bem-estar da população.”

Leia também: Debatendo com Safatle: quais as armas para enfrentar as Forças Armadas do caos?

O sentido que queremos aprofundar a partir dessa crítica a política do impeachment é a caracterização das forças armadas que oferece Safatle e a possível ligação desta visão, imprecisa na nossa visão, ao erro de levantar a política de impeachment. Safatle, partindo de uma denúncia correta do papel histórico das FAB, parece subestimar a possibilidade de divisões e fraturas reais nas suas cúpulas. Essa visão é metodologicamente arbitrária. Na medida em que os militares passam a atuar abertamente na vida política, as contradições e as disputas fracionais penetram também profundamente nas forças armadas, provocando tanto divisões no interior das cúpulas e da oficialidade, como também divisões que opõe as altas patentes e os soldados, cabos e sargentos. A história do exército no século XX mostra como as crises políticas atravessaram sempre as fileiras de um exército altamente politizado.

Dizer isso não significa buscar setores progressistas, nacionalistas, moderados ou racionais no exército. Neste ponto não temos o que objetar a essa precisa definição histórica que Safatle faz de nossos militares: “A história das Forças Armadas brasileiras é a história de uma guerra interna, de uma guerra civil não declarada que vai de Canudos e Contestado até o uso do Exército como “força de pacificação” nas comunidades do Rio de Janeiro”. Uma guerra contra a natureza, contra as oposições e o fantasma do comunismo e uma guerra para o sileciamento da miséria e suas consequências. Safatle retoma várias exemplos do século XX, nós poderíamos citar um dos eventos fundadores das nossas forças armadas, as repressões contra as rebeliões da primeira regência, em especial a repressão à Cabanagem, que levou a uma guerra de extermínio que massacrou 40% da população do Pará na época, uma antecipação da política depois aplicada no Paraguai à serviço da Inglaterra.

Esse é o DNA das nossas forças armadas. O que não significa que as divisões que ocorreram ao longo da história nas suas cúpulas não passaram de uma pantomima, de um jogo de cena para manter sua dominação.

Em geral vemos uma confusão nas organizações de esquerda entre o papel de poder moderador das forças armadas com algum tipo de moderação política. Nada mais falso. O poder moderador das FAB não se refere a nenhum caráter moderado dos seus generais, mas ao seu papel de arbitro das disputas sociais, seu papel de poder burguês onde se apoia, em última instância, o poder da burguesia. Os conflitos entre os generais ao longo da Ditadura foram reais, muito mais reais do que a ilusão das esquerdas no projeto de abertura lenta, gradual e segura do governo Geisel. A dinâmica deste conflito interno não é nenhum segredo e esteve presente em outros regimes autoritários.

A criação do SNI, o Sistema Nacional de Informações foi obra do mesmo grupo de militares como Golbery e os irmãos Geisel, que depois foram tidos como os moderados em oposição aos duros. Acontece que a partir do golpe dentro do golpe, esse aparato de inteligência e repressão política se fortalece enormemente, desenvolve a tendência a se autonomizar em torno de seus próprios interesses.

Isso nos permite entender melhor as pressões a que estavam submetidos os governos Geisel e Figueiredo. O governo Carter, que tomou posse em 1977 nos EUA pressionava Geisel para acelerar o processo de abertura, de transição conservadora. Enquanto o aparato interno de repressão pressionava pelo recrudescimento da Ditadura. O aparecimento do sujeito proletário na arena política a partir de 1978 torna ainda mais complexa à aplicação deste projeto de abertura conservadora. A tentativa de golpe palaciano dado pelo general Frota, ministro do exército em 1977 não foi uma encenação, como não foram encenações os atentados terroristas contra livrarias e bancas de jornais no início da década de oitenta. Um processo parecido se deu, por exemplo, na Espanha, com militares franquistas tentando, por meio da força, implodir o Pacto de Moncloa em que as direções do movimento de massas se comprometeram com a aplicação do neoliberalismo.

Voltando ao momento atual também não se pode exagerar a homogeneidade do conjunto do estado maior das FAB, como também não se pode exagerar as suas divisões internas. Vale lembrar que um dos primeiros atos da operação Lava Jato foi a desarticulação do programa nuclear brasileiro e a prisão do Almirante Othon, chefe deste programa. Não se trata de uma ala nacionalista, posto que o programa nuclear de Lula era um programa de subordinação ao imperialismo francês. No entanto, análise detida destes processos revela uma divergência entre as armas. Com a política de expansão da fronteira marítima, a definição de Amazônia Azul e outras, a Marinha ia ganhando muito destaque e sobrepujando o exército, em investimentos e compra de equipamentos. Ao exército interessava e interessa muito mais a concentração na fronteira terrestre, na Amazônia e uma aliança muito mais estreita com os EUA, portanto.

Um momento de tensão interna muito forte entre os generais se deu na tentativa frustrada de golpe na Venezuela, pela via de forçar a entrada da ajuda humanitária via Brasil, no momento em que Trump elevava uma retórica guerreirista. Numa tensa reunião, o general Heleno se colocou contra a ação de ajuda humanitária, ficando em minoria contra a posição do ministro da defesa, Fernando Azevedo e do próprio Bolsonaro. Isso mostra como as linhas de divergência no Alto Comando passam longe da mística de “ideológicos” e “pragmáticos”. Heleno em momentos anteriores foi o general da cruzada inicial contra o centrão, se opôs timidamente contra o abalo que linha dos EUA (naquele momento uma linha supra-partidária, que contou com o apoio até de Bernie Sanders) poderia provocar na fronteira amazônica, ao passo que os generais “moderados” e racionais foram a ala mais pró-norteamericana.

Outros momentos de divergências na cúpula poderiam ser apontados, como as entrevistas em que a esposa de Mourão se coloca como fã de Michele Obama. É toda uma caracterização o silêncio do general Heleno desde setembro do ano passado, quando passam ao primeiro plano os generais favoráveis a articulação com o centrão.

Como conclusão poderíamos dizer que apoiamos integralmente o combate do professor Vladimir Safatle contra o embelezamento de alas do exército como mal menor frente a outras. Mas tratar um exército como um bloco homogêneo nos leva a erros também. O mais grave deles é ver Bolsonaro como parte deste bloco homogêneo, e que o seu impeachment enfraqueceria o conjunto deste bloco, mesmo com Mourão presidente. Agora, se vemos que existem essas divisões internas, podemos levantar a hipótese de que um agravamento da crise social, ou uma maior pressão do novo governo Biden, poderiam levar o Alto Comando a se desfazer de Bolsonaro e assumir a cabeça do governo federal, não necessariamente numa posição de fragilidade maior que Bolsonaro.

 
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