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Debatendo com Safatle: quais as armas para enfrentar as Forças Armadas do caos?
Simone Ishibashi
Rio de Janeiro
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A crise em torno da elevação das mortes pelo coronavírus, com epicentro na escandalosa situação em Manaus, já foi responsável pela morte de mais de 224 mil pessoas. Os dolorosos relatos dos filhos desolados, das mães inconformadas, dos que perderam seus entes queridos pela pandemia escancaram o viés capitalista cruel de suas perdas, garantido e levado aos extremos pelo odioso governo Bolsonaro. Enquanto as mortes são mostradas aos borbotões todos os dias, os relatos de que Bolsonaro e seu governo gastaram milhões em leite condensado, suas declarações energúmenas e cínicas sobre a pandemia aprofundaram a justa revolta contra seu governo. O fim do auxílio emergencial igualmente ajudou a derrubar parte de sua popularidade. Em carreatas tanto de setores progressistas, como de direita, a reivindicação de impeachment voltou à pauta.

É neste contexto, que sendo obrigado a descer do seu pedestal de soberba boçal, que mescla espontaneidade a cálculo político acenando à sua base, que Bolsonaro afirmou em tom de ameaça que “quem define o regime político do país são suas Forças Armadas”. Em artigo intitulado As Forças Armadas do Caos publicado no Jornal El País novamente o notório filósofo da USP, Vladimir Safatle oferece uma visão crítica de parte dos sensos, às vezes nem tão comuns assim, acerca da natureza das Forças Armadas brasileiras e seu papel histórico na política do país.

Corretamente, e como sempre de maneira muito bem articulada, Safatle parte da premissa de que “uma das maiores ilusões a respeito do Governo Bolsonaro é que seria composto por dois eixos em estado contínuo de antagonismo. De um lado haveria o núcleo ideológico, com suas pautas de regressão social e isolamento internacional, enquanto no outro lado encontraríamos o núcleo militar”. A ilusão seria justamente a de que enquanto o primeiro almejaria uma “revolução conservadora”, o segundo teria uma natureza completamente distinta, sendo “moderado” e “racional”.

Como bem assinala Safatle em seu artigo, essa narrativa foi muito útil para as Forças Armadas galgarem posições no atual governo, com membros da ativa e da reserva ocupando distintos cargos de proeminência. E mais, projetando a noção de que seria uma espécie de força de contenção aos desvarios criminosos do atual governante do país. Esse mito de que as Forças Armadas brasileiras seriam uma instituição zelosa pela democracia, moderna e racional não nasce a partir das sucessivas disputas intestinas do insuportável governo Bolsonaro. Safatle aponta como data da própria ditadura militar uma “pantomina do conflito entre o núcleo duro e os moderados”.

A própria expectativa de que haveria alas defensoras de um “projeto nacional soberano” consolidadas no interior das Forças Armadas, remonta a períodos prévios à ditadura militar. São uma expressão do embelezamento de experiências marcadas por aspirações bonapartistas, como o tenentismo, ou a Aliança Nacional Libertadora da década de 1930, considerados por distintos setores como antiimperialistas.

É em base a tal apreciação que personalidades de grande expressão intelectual, como Moniz Bandeira, morto em 2017, um ano após o golpe institucional de 2016 e um ano antes da eleição de Bolsonaro, declarou que apesar da prisão arbitrária de Lula com apoio dos efetivos militares, ainda acreditava que havia militares nacionalistas. Declaradamente saudoso de figuras como o general Teixeira Lott, Moniz Bandeira em carta publicada por Paulo Henrique Amorim ainda afirmava que frente à crise política no país só haveria uma saída: a intervenção militar, que deveria levar ao poder as pretensas alas nacionalistas.

Mas se no passado inclusive intelectuais proeminentes do pensamento crítico ao imperialismo, como é Moniz Bandeira apesar de sua perspectiva circunscrita aos limites do nacionalismo-burguês, tiveram espaço para defender tais interpretações, após a ascensão de Bolsonaro tais teses mostram-se absurdas. O caráter bonapartista das Forças Armadas nunca esteve tão evidência. Se durante o governo do PT já demonstravam seu incômodo frente à inofensiva Comissão da Verdade, agora os militares são caudatários da reconstrução da narrativa histórica nacional embaçada em falácias tipicamente formadas pela ultradireita. A justificação da ditadura militar, cujo golpe é negado a plenos pulmões sob a justificativa de que seria uma resposta salvacionista contra a “ameaça comunista” ecoa nos tuítes, inicialmente bolsonaristas, cuja contaminação já alcança setores do senso comum.

Evidentemente que com isso não se pode afirmar que todos os militares no interior do governo Bolsonaro tenham desde sempre adotado as mesmas posturas. No início o general Villas Bôas tomava uma distância em relação à Bolsonaro, inclusive chegando a delimitar-se. O próprio Mourão sempre apresenta rusgas com Bolsonaro, sendo a última às desventuras em torno do igualmente odioso ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Mesmo que sempre termine se disciplinando. E há os setores como o general Augusto Heleno, que representa uma linhagem de linha de frente do bolsonarismo.

No entanto, todos esses nomes foram assumindo paulatinamente mais destaque no comando do governo, sendo uma base de sua sustentação em meio à pandemia. Primeiro com Braga Netto assumindo o comitê responsável por tratar a pandemia. E agora com Pazuello, um militar da ativa, nomeado como ministro da Saúde, à frente do desastre criminoso que presenciamos em Manaus, e que já começa a se espalhar pelo resto do país. Mais que nunca, oferecer uma saída para a crise que nos assola passa por superar o mito da existência de alas “soberanistas” das Forças Armadas, e colocar na ordem do dia o combate à militarização da política em todas as suas formas e âmbitos.

Porém, isso exige uma saída de fundo.

Voltando a Safatle. O artigo ao qual nos referimos novamente acerta quando aponta qual é modus operandi das Forças Armadas. Desde a clássica repressão aos movimentos dos trabalhadores e sociais, até o pouco divulgado episódio em que campos de concentração impediam pessoas impelidas pela fome no Ceará de chegarem à capital no período entre 1915 e 1932, culminando no assassinato de dezenas de milhares de pessoas. A milícia, que atualmente aterroriza a política e saiu da baixada fluminense para se apoderar do foco de poder mais concentrado do país, tem igualmente sua origem nos grupos de extermínio atuantes durante a ditadura militar.

Mas, mesmo tecendo todos esses apontamentos em relação ao sentido de existência das Forças Armadas brasileiras eis que o próprio Safatle conclui sua análise com a definição de que frente a revolta da sociedade com a forma como o governo Bolsonaro lida com a pandemia, a única saída possível seria o impeachment. É chamativa a ausência de coerência interna no até aí muito bem argumentado questionamento aos que avaliam o papel das Forças Armadas como algo distinto da máquina repressiva que escreveu com sangue algumas das páginas mais dramáticas da nossa história, Safatle defende que a única saída seria o impeachment, que levaria ao poder ninguém menos que um general.

Como resposta a esse flagrante problema, Safatle afirma que Mourão por assumir um governo que seria produto da “pressão popular, já nasceria natimorto”. Perigoso e duvidoso argumento que não resolve um problema que está na raiz da ascensão de Bolsonaro, a saber, do processo aberto de degradação do regime político nascido pelo golpe institucional de 2016. Dessa forma, abrir caminho para Mourão em nada resolve as demandas do povo e dos trabalhadores primeiro porque se trata de colocar no lugar de Bolsonaro alguém tão reacionário como ele, igualmente defensor da ditadura militar e de todos os ataques aos trabalhadores. Caso viesse a se dar um processo institucional como o impeachment, o que ocorreria seria que a burguesia buscaria cerrar fileiras ao seu redor para fechar quaisquer crises. A velha prática de “mudar para não mudar nada” seria a tônica de uma situação como essa. As saídas precisam ter mais profundidade. Não à toa que o impeachment é alentado por setores do golpismo, e atores tão autoritários quanto os que hoje ocupam o primeiro escalão do governo. Ninguém pode acreditar que estejam preocupados com o bem-estar da população.

Ademais, não é menor notar a demanda por impeachment cresce na esteira da mais que problemática noção de que seria não apenas desejável, mas uma condição, a unidade dos trabalhadores, setores populares e da esquerda com a classe detentora e suas representações políticas. As frentes amplas que marcam presença na política nacional congregando partidos e figuras abertamente golpistas, não levam a derrotar Bolsonaro, mas a cerrar fileiras em torno do golpismo institucional, como se vê nas eleições da Câmara em torno de Baleia Rossi.

Portanto, uma resolução de fundo não pode ser encontrada na retirada de Bolsonaro por vias institucionais, o que abriria lugar para Mourão. É preciso não apenas mudar os jogadores, como as próprias regras do jogo que determinam o regime político. E isso inclui a necessidade de derrubar não apenas Bolsonaro, mas Mourão e todos os golpistas, como o STF e os que habitam o Congresso. Mas não apenas isso. É preciso instituir uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, que não seja a farsa da Constituinte de 1988 tutelada pelos militares e sob o comando de um político biônico da ditadura como José Sarney, como bem lembrou o próprio Safatle em outros artigos. É preciso de uma Constituinte que seja efetivamente livre e soberana, que acabem com todos os ataques aos trabalhadores e ao povo, minando as vias de subordinação ao imperialismo e a dívida pública, revogando o teto de gastos, e as privatizações. Com isso se poderia garantir a Saúde para todos os trabalhadores e o povo, garantindo os leitos necessários, testes, e avançar contra os monopólios que hoje lucram à custa da morte em escala cada vez maior mantendo as patentes das vacinas inexistentes para a amplíssima maioria da população.

Em outras palavras trata-se de uma Constituinte imposta pela luta, que deve abordar os grandes problemas nacionais, as demandas dos trabalhadores e do povo, e colocando em vigência as medidas de emergência necessárias para lidar com a atual crise, fazendo com que ela seja paga pelos capitalistas. Esta seria a verdadeira forma de fazer com que as vidas sejam priorizadas em detrimento dos lucros. Dessa maneira, a Constituinte Livre e Soberana tem como objetivo não apenas derrubar Bolsonaro, e impedir que Mourão assuma derrotando as aspirações populares. Ou qualquer um dos atores autoritários do regime atual, inclusive das Forças Armadas. Mas subverter a lógica dessas instituições absolutamente decadentes e antipopulares.

Evidentemente que para que essa saída de fundo se colocasse seria necessário preparar os trabalhadores e o povo para o aprofundamento do choque entre as classes. Quanto maior as aspirações e radicalidade das medidas tomadas, maior seria a resistência dos capitalistas. Evidentemente não se pode esperar que a classe dominante aceite passivamente qualquer decisão que enfrente os capitalistas e a posse da propriedade privada dos meios de produção.

A pandemia, e a forma escandalosa como o governo Bolsonaro tem se portado frente a ela, aprofunda a dinâmica de crise aberta nacionalmente. Neste contexto é que um caminho para a superação das mortes, do enorme desemprego, e da miséria que cada vez mais se coloca para setores amplos da população precisa partir de superar a noção de que é possível resolver problemas estruturais com reformas, ou mudanças superficiais. Encarar um impeachment como um “primeiro passo” no caminho da superação da atual crise é um erro. O que se poderia obter disso, ao contrário de um processo de avanços nas demandas dos trabalhadores e do povo, e na presença das Forças Armadas na política seria justamente um general tão reacionário quanto seu antecessor no poder. E a ilusão de que se obteve alguma conquista, enquanto os demais poderes autoritários do regime, como o STF ou o Congresso, tramariam como nunca para recompor seu domínio.

Parte da superação da presente crise é compreender que existem momentos em que é preciso fazer o que deve ser feito, e não apenas o que é imediatamente possível. Dentre outras questões, porque rapidamente se descobre que o possível termina desembocando em saídas regressivas. Safatle afirma que para realizar o impeachment seria uma condição a existência da “pressão popular”. Mas então porque ao invés de canalizar a raiva popular contra Bolsonaro para uma saída estéril como impeachment, não começar desde já a defender a necessidade da construção das forças materiais necessárias para efetuar uma real transformação, como a que aqui descrevemos?

 
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