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DOSSIÊ 20 DE NOVEMBRO
Mais uma vez, o exemplo vem da África
Letícia Parks

A luta que começou na África do Sul como uma tentativa de retirada da estátua do colonialista Cecil Rhodes da Universidade de Cape Town (UCT) descambou nos últimos meses em uma forte luta contra a terceirização e o pagamento de mensalidades, unindo trabalhadores e estudantes numa jornada exemplar de aliança operária-estudantil.

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A Universidade de Cape Town (UCT) não é qualquer universidade na África do Sul. É a primeira universidade do país e a mais alta no ranking internacional de qualidade da África do Sul. Sem querer exagerar nos paralelos, a UCT é para a África o que a USP é para a América. Na USP, os bandeirantes são homenageados na entrada principal, e a UCT não poderia ficar para trás no objetivo de homenagear a história de violência e morte que marca a colonização africana, e por isso lá estava Cecil Rhodes. Desde o início do ano, os estudantes dessa universidade vinham se organizando pela retirada dessa estátua da entrada do campus.

Essa estátua significa muito para a história sulafricana. Responsável pela efetivação de um plano capitalista mais sólido no país, Rhodes liderou a fundação da empresa De Beers a partir da ocupação em poucos anos de um território no continente negro superior a soma de 5 Franças. A De Beers, naquele momento, detinha cerca de 90% dos royalties de diamante do mercado mundial (como não se lembrar o hollywoodiano “Diamante de Sangue”?), hoje 40%. Mas, afinal de contas, como “não há capitalismo sem racismo”, em seu testamento Rhodes afirma:

"Considerei a existência de Deus e decidi que há uma boa chance de que ele exista. Se ele realmente existir, deve estar trabalhando em um plano. Portanto, se devo servir a Deus, preciso descobrir o plano e fazer o melhor possível para ajudá-lo em sua execução. Como descobrir o plano? Primeiramente, procurar a raça que Deus escolheu para ser o instrumento divino da futura evolução. Inquestionavelmente, é a raça branca… Devotarei o restante de minha vida ao propósito de Deus e a ajudá-lo a tornar o mundo inglês."

Rapidamente, os estudantes que lutavam pela retirada do busto de Cecil Rhodes perceberam que a razão de sua homenagem reside na manutenção de um status quo no país de um profundo fosso entre os espaços ocupados pela população branca e aqueles dedicados à população negra. A UCT, maior Universidade do país, tem apenas 33% de seu corpo estudantil composto por estudantes negros, enquanto a população negra ocupa incríveis 85,3% das estatísticas raciais do país. Enquanto isso, no trabalho precário, a maioria ainda são negros, que recebem cerca de R4.700 (o equivalente a R$900).

A luta iniciada contra a imagem da colonização respingou a uma luta para destruir os resquícios dessa mesma colonização, dando origem à palavra de ordem #EndOutsourcing (#AcabeComATerceirização), que como uma avalanche ocupou as mentes de milhares de jovens estudantes e trabalhadores terceirizados, que durante o mês de outubro e o início de novembro saíram às ruas exigindo a efetivação de todos os terceirizados. A trabalhadora Audrey Groenewaldt declarou ao jornal Equal Times que “Levaram muitos anos para que lutássemos por melhorias. Com essa companhia nós usamos produtos baratos, não temos plano de saúde, e se você se atrasa, eles diminuem o seu salário. Não tem proteção para os trabalhadores” (tradução minha), o que comprova que o problema da terceirização não está apenas na diferença salarial, mas também na humilhação e nas péssimas condições de trabalho, que juntas compõe um cenário em que o trabalhador terceirizado se sente um intruso dentro da Universidade, onde nenhum recurso pode ser seu, desde o salário até o ensino. Uma outra trabalhadora declara: “me somei ao protesto porque a pobreza dói. Me sinto descartada. Como posso trabalhar por tantos anos e não receber um salário decente? Minha filha se formou em 2010, ela tem 23 anos mas ela trabalha apenas meio período. Eu gostaria que ela pudesse ir à universidade, mas não posso custear isso. Tem muitas coisas que não consigo pagar com esse nível de vida.”

Entrevista com Deliwe, trabalhadora terceirizada da UCT

A imagem dos atos é de arrepiar. Trabalhadores terceirizados da faxina, cozinha e jardinagem lado a lado com estudantes exigem que a terceirização acabe, e depois de alguma pressão a burocracia da universidade e o governo são obrigados a admitir que os trabalhadores sejam incorporados ao quadro de efetivos, sem a necessidade de concurso público. Essa luta não está terminada, pois após o pontapé na UCT, outros 16 campi de importantes universidades do país também foram ocupados, e ainda que haja uma promessa de efetivação também na Wits University, existe luta na Fort Hare e na Rhodes and Stellenbosch, que lutam pela mesma reivindicação lado a lado com os trabalhadores.

Do direito ao trabalho ao direito ao estudo: #FeesMustFall

A princípio, o discurso de todas as universidades era o mesmo: não há verba para contratar funcionários efetivos. A luta dos estudantes provou que o medo de perder os dedos faz com que a elite nos entregue os anéis, mas infelizmente, é prática da burguesia a nível mundial querer nos fazer pagar pelos nossos direitos e assim recompor seus anéis. No caso das universidades sulafricanas, o discurso da falta de verba para financiar a efetivação dos terceirizados levou a burguesia nacional a ameaçar aumentar os valores das tarifas pagas pelos universitários para a retirada do diploma.

Opa! Peraí! Sim, apesar de serem universidades públicas, tanto a UCT, quanto a Wits e a Fort Hare cobram tarifas abusivas para que os estudantes possam retirar o diploma, o que impede que o trabalhador terceirizado, como já mencionado pela voz de uma trabalhadora anteriormente, consiga colocar um filho dentro da universidade. No caso da UCT, os alunos de direito deveriam pagar a quantia de R 46 500 no primeiro ano, R 53 500 no segundo ano, R 53 000 no terceiro ano e R 55 500 no quarto ano, totalizando R208 mil, ou cerca de R$56 mil.

A luta que começou contra a estátua de Cecil Rhodes chegou, portanto, em dois pontos chaves do racismo: o trabalho precário e a elitização do ensino superior. A manutenção de um sistema de divisão da classe operária entre negros e brancos, que serve para enfraquecê-la, foi uma fórmula inventada pelo capitalismo para subsistir em um sistema que mais do que nunca, para nossa geração, se prova completamente carcomido e incapaz de realizar seus próprios ideias de “liberdade, igualdade e fraternidade”.

A luta dos estudantes sulafricanos não acabou. O direito a educação pública, profundamente ligado ao direito ao trabalho igual, com igual salário, segue em curso e precisa se fortalecer não apenas com apoios internacionais, como se pretende neste artigo, mas também com ações práticas dentro das universidades brasileiras, como prova de que reconhecemos nosso atraso social na manutenção do mesmo sistema de divisão racial em nosso país, em muito alimentado tanto pelas alas mais racistas de nossa burguesia (afinal, também temos nossos Cecil Rhodes) mas também pelos setores que se dizem “amigos dos negros”, como o PT, que há 11 anos assassina pelas mãos da Minustah nossos irmãos de classe no Haiti.

A conquista dos estudantes da UCT e da Wits provam a fortaleza da luta. O método de aliança com os trabalhadores, o reconhecimento de que somos uma mesma classe com um inimigo incomum: a burguesia herdeira da escravidão, do colonialismo e do apartheid. Se a nação que se diz “arco-iris” foi obrigada a reconhecer seu racismo inerente, também somos capazes aqui de apontar o racismo intrínseco desse país que se diz “democracia racial”.

cenas e declarações de estudantes e trabalhadores que protestaram no mês de outubro e seguem em luta

i Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cecil_Rhodes#Rhodes_e_o_racismo
ii http://africasacountry.com/2015/10/the-student-uprisings-in-south-africa-and-wider-political-economic-change/
iii lista de taxas cobradas pela UCT: http://www.uct.ac.za/usr/finance/fees/fees2015.pdf

 
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