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LITERATURA
Conto: "Tonho do Abacaxi"
Afonso Machado
Campinas

O texto abaixo é mais um conto que tenta promover uma reflexão política e social sobre o atual contexto histórico do Brasil.

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Imagem: Ilustração do Diabo no Codex Gigas

As estrelas do céu retiravam seus vestidos prateados. Nuas, desapareceram diante do olhar castrador do sol. Pelas avenidas da grande cidade o caminhão carregado de caixas de frutas vinha saltitando. Por entre lombadas morangos e peras sacudiam em suas caixas até as cascas ficarem partidas num louco strip-tease, mostrando seus doces corpos. Uvas eram amassadas em freadas bruscas, enquanto maçãs caiam da carroceria, sendo punidas enquanto fruto do conhecimento e objeto das dentadas de Adão e Eva. Os abacaxis conseguiam segurar aquela barra. Sacudindo na carroceria estava Tonho, mais conhecido como Tonho do Abacaxi: um rapaz de dezenove anos que largou a escola para trabalhar vendendo frutas. Ele gritava para o motorista, Zé do Basquete:

Tonho: - Esse trânsito tá de matá !

Zé do Basquete: - Tem muita gente imprudente, muito barbeiro!

Tonho olhava o trânsito. Ele via motoristas em automóveis importados fechando bruscamente a frente de outros automóveis. Garotos de classe média colocavam agressivamente as cabeças para fora da janela, xingavam e promoviam com as mãos desfiles de gestos obscenos. Preso naquela avenida que trajava a forma de um ringue, Tonho concluía:

Tonho : - A culpa é do Diabo!

Chegando num bairro popular, Tonho observava as crianças brincando, saltando o esgoto a céu aberto. Um garotinho mexia na terra e colocava a mão na boca. Tonho pensava:

Tonho: - Isso é culpa do Diabo!

O caminhão percorreu todo o bairro. Nenhuma fruta foi vendida, nenhuma senhora com vestidos floridos e vassoura na mão pediu que o caminhão parasse para olhar as mercadorias. Tonho, com seu gigantesco chapelão de palha, a camiseta furada e a surrada bermuda jeans, levantava o facão numa mão e o abacaxi na outra, dizendo:

Tonho: - Oh minha senhora: o abacaxi tá docinho que nem mel!

A mulher fez com as mãos um gesto de quem não tinha dinheiro: o polegar e o indicador mexiam-se um sobre o outro para dizer que naquela mão não existiam notas de dinheiro. Olhando aquela penúria toda, o bairro sem asfalto e sem esgoto, Tonho exclamava:

Tonho: - É culpa do Diabo!

Quando o caminhão retornou para a parte central da cidade, ouviam-se carros de som : eram as propagandas eleitorais! Candidatos á Prefeitura! A campanha municipal estava a todo vapor. Tonho, que não se interessava por política, lembrou da avó que morreu em frente ao hospital por falta de leito. Na época a prefeitura não fez nada. Tonho também se recordou do abandono do seu bairro, do esquecimento que sua família e amigos estavam relegados. Quase todas as pessoas que ele conhecia estavam na pior. Zé do Basquete, motorista do caminhão de frutas, que era vizinho de Tonho, teve que deixar o pequeno filho aos cuidados da sogra que morava em Pernambuco: o velho fruteiro, que ficou viúvo, não tinha condições para criar o menino.

De onde vinha tanto sofrimento? Será que algum prefeito poderia solucionar esses problemas? Tonho pensava então que todos os homens e mulheres eram pecadores natos, que todo sofrimento do povo na terra era culpa do demônio. Porém, uma estranha intuição agarrava-se ao cérebro de Tonho, uma intuição sobre a pobreza de muitos homens e as riquezas da terra. Por que tanta riqueza produzida nos campos do Brasil não chegava até o estômago do povo? Tonho olhava a cidade devastada pela fome, pelo desespero e pela loucura. Por que será que ao lado de possantes automóveis importados( cujo interior abrigava gente cheirosa e de boca suja) existiam pessoas descalças, largadas, famintas e sem acesso ás condições mínimas de higiene? Tonho se esforçava para entender mas não conseguia nomear, explicar as situações econômicas e políticas internas e externas que se apropriavam das riquezas do país. Tonho chegava a desconfiar que tinha alguma coisa errada com o trabalho dos homens: aqueles que trabalham são explorados e vivem mal, e aqueles que não podem vender o seu trabalho são escarrados na rua e atirados na miséria. Mas quando essas intuições provocavam uma agitação interna, Tonho era tomado por visões em que arpas flutuantes e nuvens douradas dividiam o espaço com labaredas de fogo, tridentes e bodes mal humorados. No centro das visões de Tonho estavam anjos e demônios que agarravam os corpos das pessoas, puxando o povo de um lado para o outro. Perante este espetáculo cósmico Tonho concluía:

Tonho: - A culpa é do Diabo!

O calor da noite estava infernal. Deitado no velho colchão, que de tão rasgado deixava transparecer a espuma que assemelhava-se á polpa de uma fruta, Tonho não conseguia dormir. Ele pensava em como derrotar o Diabo, como afasta-lo da vida do povo da sua cidade. O rapaz se levantou: sua fisionomia estava transtornada, a testa suada, os olhos cheio de ódio. Pegou o facão e saiu para fora da pequena casinha. Ele gritava em direção á escuridão:

Tonho: - Aparece desgraçado!

Nada ocorria: apenas o som de um grilo e de uma distante buzina de moto.

Tonho: - Apareça Diabo! Eu te desafio! Eu te enfrento com o meu facão!

Nada... nem sequer a sombra de um bode. Tonho começou a pensar na palavra “ Diabo “ e nas figuras chifrudas que vinham na sua mente quando relacionava o nome á imagem. Logo em seguida, uma sensação esquisita começou a domina-lo: ele sentia o cabo do facão na sua mão, sabia que aquela lâmina cortava. Ele sentia o vento da madrugada no rosto, o cheiro das frutas impregnadas na sua pele. Ele via o vagalume passeando na noite. Ele pensava que aquelas crianças daquele bairro que viu no dia anterior, brincavam num esgoto tão real quanto elas próprias. Ele sabia que aquela senhora realmente não tinha dinheiro para comprar frutas. Tonho, meio sonso, voltou para o colchão. Agora ele pensava:

Tonho: - Será que a culpa é do Diabo?

Observação: esta é uma pequena obra de ficção. Embora o pano de fundo seja inevitavelmente histórico, personagens e situações foram inventados.

 
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