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Revolução cultural? (parte 1): as tarefas para a construção da cultura revolucionária
Afonso Machado
Campinas
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No último dia 4 de julho, por ocasião das celebrações da Revolução Americana de 1776, o presidente dos EUA Donald Trump atacou os manifestantes que tomaram recentemente as ruas daquele país após o assassinato de George Floyd. Segundo o presidente americano, os manifestantes representam uma Revolução cultural de esquerda que visa destruir a Revolução americana do século XVIII. Mas o que as pessoas ideologicamente afinadas a Trump entendem por Revolução cultural? A “nova“ extrema direita é confusa, é portadora de ideias lunáticas que tendem a confundir globalismo com internacionalismo, multiculturalismo com cultura revolucionária. Precisamos compreender no que poderia consistir de fato uma Revolução cultural.

É comum associar o conceito de Revolução cultural com os turbulentos acontecimentos que se passaram na China durante os anos de 1960/70. As demonstrações de intolerância e autoritarismo praticados pela Guarda Vermelha, guiada pelos pensamentos de Mao Tsé Tung, estão longe de representarem as necessidades políticas e culturais libertadoras do proletariado. As críticas á burocracia e o projeto de uma Educação socialista “purista“ durante a Revolução Cultural Chinesa, ocultavam as manobras políticas de Mao, num sentido manipulador muito próximo do stalinismo. Talvez as agitações contraculturais no Ocidente durante aquele mesmo período histórico, embora não ultrapassassem em muitos casos o ambiente de classe média, estivessem mais próximas daquilo que poderia ser uma Revolução cultural. Herbert Marcuse, filósofo alemão considerado pela extrema direita atual como um dos bichos papões do “marxismo cultural“, procurou definir no texto Arte e Revolução(1972) o que seria Revolução cultural:

(...) “A frase, no Ocidente, sugere primeiro que os desenvolvimentos ideológicos se antecipam aos desenvolvimentos na base da sociedade; revolução cultural mas(ainda) não revolução política e econômica. Enquanto que nas artes, na literatura e na música, na comunicação, nos costumes e modas, ocorrem mudanças que sugerem uma nova experiência, uma transformação radial de valores, a estrutura social e suas expressões políticas parecem permanecer basicamente inalteradas ou, pelo menos, atrasadas em relação ás mudanças culturais. Mas a Revolução cultural também sugere que a oposição radical envolve, hoje, em novo sentido, todo o domínio situado além do das necessidades materiais – melhor ainda , que visa a transformação total da cultura tradicional“(...).

Marcuse sintetiza a partir da atmosfera contestadora dos anos de 1960/70, as lutas pela transformação da cultura, revelando uma nova experiência fundada na rebelião, na crítica, na recusa em sermos administrados pelos valores e padrões dominantes. Os movimentos libertários da atualidade, sem dúvida herdeiros políticos de 1968, assumem segundo suas formas plurais o desejo de negar a opressão expressa no racismo, na violência policial, na homofobia, nas agressões contra as mulheres etc Considerando a cultura em seu sentido mais amplo observa-se, conscientemente e inconscientemente entre muitos manifestantes, a necessidade de revolver todos os padrões de uma civilização fundada na opressão.

Se tomarmos esses conflitos que marcaram este ano de 2020 como uma espécie de “Revolução cultural“, será que a palavra “Revolução“ é utilizada de modo historicamente consequente? Poderiam os desenvolvimentos ideológicos obter terreno político revolucionário sem um nítido conteúdo de classe? Seria possível lutar contra a cultura dominante(racista, machista, homofóbica) desconsiderando que o proletariado é o personagem central na luta anticapitalista? Evidentemente que não se pode dissociar gênero de classe, ou seja, pensar a condição do trabalhador negro ou da mulher operária, levanta a necessidade de uma linguagem contestadora que dê conta de expressar politicamente todas as particularidades étnicas e sexuais dos oprimidos. Porém, sem um projeto político de classe para a superação histórica desta realidade opressora, existe a tendência para as ilusórias tentativas de emancipação das minorias dentro do modo de produção capitalista.

Embora rebeliões mobilizem de forma extraordinária energias libertárias, sem um projeto político revolucionário elas tendem a ser neutralizadas. O mesmo podemos dizer em relação á arte que se coloca como expressão de revoltas sociais: uma das grandes contribuições políticas da arte na era contemporânea, é a capacidade da experiência estética revelar o choque, o escândalo, exprimindo a violência da vida no contexto capitalista. Porém, se o artista rebelde não se articular politicamente com a classe trabalhadora, suas obras e manifestações são facilmente absorvidas/neutralizadas pela indústria cultural(e nem vale a pena aqui elencar a longa lista de exemplos históricos disso). Outrossim, não devemos limitar as tarefas históricas de uma Revolução cultural segundo as formas e os conteúdos da luta proletária: embora o movimento dos trabalhadores seja o conteúdo histórico central do nosso tempo, existem outros elementos políticos/culturais indispensáveis tais como as referidas questões de gênero, as questões do desejo, do sonho, do amor, as necessidades expressivas(e esteticamente transgressoras) dos movimentos de juventude etc. Existe uma importante relação dialética entre estes elementos históricos e a luta dos trabalhadores, de modo que ambos se complementam nos combates pela emancipação humana.

Existem razões históricas profundas para a “ nova “ extrema direita personificada em Trump, ser hostil a qualquer bandeira libertária ou reivindicações de minorias precisamente porque estas colocam em carne viva as contradições da sociedade burguesa. Trump opõe a Revolução americana ao que ele chamada de Revolução cultural de esquerda: a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, redigida por Thomas Jeferson e com a colaboração de outros líderes revolucionários, expressa uma Revolução burguesa. A Guerra de Independência cumpriu um importante papel histórico ao cortar laços de submissão com a Inglaterra e estabelecer uma República moderna em pleno continente americano. Mas quem eram os líderes desta Revolução? George Washington, que preparou um exército para enfrentar a reação metropolitana, era um homem pra lá de rico. Thomas Jeferson, senhor de escravos, aplicou os princípios políticos iluministas e mostrou ao mundo que a liberdade para os liberais é a liberdade dos grandes proprietários brancos, daqueles que possuem poder econômico. Aquela revolução atendeu aos interesses de ricos comerciantes e latifundiários, sendo que negros e indígenas permaneceram como alvos da opressão.

A extrema direita celebrou 4 de julho considerando seus inimigos aqueles que visam promover uma Revolução cultural. Qualquer pessoa de esquerda deseja que todo este movimento contestador, esta “ Revolução cultural “ que eclodiu neste ano, tenha longa vida, adquira novos fôlegos contestadores. Mas para que tudo isso seja duradouro, se faz necessário reunir todas as bandeiras libertárias, questões de gênero e manifestações culturais contestadoras em torno de um proletariado que , ainda, não assumiu nos dias que correm a sua liderança política. A classe trabalhadora, hoje em boa parte desmemoriada e divorciada das experiências revolucionárias do passado, necessita além de uma Educação política de uma Revolução cultural em seu interior.

O proletariado, apartado da produção cultural acumulada historicamente pela humanidade, necessita mais do que nunca da organização e produção de uma tradição cultural revolucionária. Adiantamos aqui que em nossa época o proletariado deverá passar por 2 fases de acumulação cultural primitiva. Na segunda parte deste artigo, frisaremos que na primeira fase deste processo de acumulação cultural, a classe trabalhadora deverá condicionar as formas e os conteúdos das suas atividades culturais a partir da luta de classes. Benjamin resume aquilo que iremos considerar essencial nesta fase:

A luta de classes, que um historiador formado em Marx tem sempre diante dos olhos, é uma luta pelas coisas duras e materiais, sem as quais não podem existir as requintadas e espirituais. E, apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de classes de modo diverso da ideia dos despojos que cabem ao vencedor depois do saque. Elas estão vivas nessa luta sob a forma de confiança, coragem, humor, astúcia, constância, e atuam retroativamente sobre os tempos mais distantes

 
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