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LUTA PELA LIBERDADE
Tempos de desejos: sexo e capitalismo
Andrea D’Atri
@andreadatri

Viver sozinha, exercer o amor livre, manter uma vida sexual ativa e satisfatória deixaram de ser pecados para converter-se praticamente em privilégios de classe.

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Fragmento de "Summer interior" (1909) de Edward Hopper

Tradução: Barbara Nicodemos

Caso fosse necessário demonstrar que a evolução - gradual e progressiva - não é o movimento da História, na nossa época se sobrepõe de maneira diversificada e complexa os fundamentalismos religiosos com a exibição e oferta de corpos, práticas e produtos sexuais nas redes sociais. A colagem pós-moderna nos oferece uma oferta variada de estilos de vida e de consumo, onde o Vox [partido de extrema direita no Estado Espanhol] pode aparecer nas primeiras páginas propondo proibir a educação sexual nas escolas e, a um clique de distância, você pode obter uma live streaming pornográfica com Camboja.

Por um lado, temos uma direita que parece ter saído das abadias medievais, embora envolta nas linguagens e estratégias de marketing mais próprias da publicidade do que da política conservadora tradicional. Por outro, uma liberdade infinita de consumo; uma sociedade em que tudo pode ser oferecido e obtido no mercado, inclusive o intangível prazer erótico, por meios também tão imateriais como o pagamento eletrônico. Obscurantismo e uma extrema mercantilização da vida que se retroalimentam, em nome da Liberdade com maiúscula, mas limitando nossas liberdades cotidianas.

Os pais devem ter liberdade para decidir o que seus filhos aprendem na escola. E insultos, discursos de ódio e discriminações são amparados pela liberdade de opinião. Se você tem dinheiro suficiente, é livre para consumir - e portanto, ser - como quiser. É assim que chegamos à liberdade nas democracias neoliberais.

Economia, política e direitos

Como aponta a feminista norte-americana Nancy Fraser, enquanto o Estado de bem-estar social combinou consumismo com proteção social - contra a radicalização das massas do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, vista como uma ameaça pelo sistema capitalista -, o capitalismo financeiro mais recente modificou a equação, estabelecendo uma aliança entre mercantilização e emancipação em detrimento da proteção social. E isso produziu um resultado muito particular que caracteriza o neoliberalismo: o crescimento exponencial da desigualdade econômica ao mesmo tempo em se ampliaram direitos democráticos, importantes cotas de reconhecimento cultural e simbólico de setores socialmente oprimidos.

Recentemente, um relatório da Oxfam mostrou que o 1% mais rico da população tem mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas. Vivemos, por mais de uma década, uma crise econômica prolongada sem solução à vista e no entanto, que paradoxo, no mesmo período o número de multimilionários duplicou! No mesmo período, o sistema que descarregou a crise nas costas de milhões de assalariadas, assalariados e pessoas pobres sem salário, reconheceu o casamento igualitário de casais em trinta países, conseguiu que o aborto seja legal e sem restrições em mais de cinquenta, levou ao poder do Estado a dez presidentas e posicionou a Europa como o continente com o maior número de países que permitem a mudança de sexo / gênero que seja estabelecido institucionalmente no nascimento.

Todas as faces do neoliberalismo

E, com um peculiar sentido de causalidade, as direitas encabeçam uma cruzada anti-feminista, homofóbica, transfóbica, racista e xenofóbica, que busca desviar a raiva contra os verdadeiros responsáveis da pobreza, o desemprego e o enriquecimento astronômico das elites financeiras, para descarregá-la contra as mulheres, a dissidência sexual e migrantes. Se estamos mal, é porque há outras (mulheres, trans, gays, migrantes, pessoas racializadas) que vivem às custas do Estado, que tiram nosso trabalho, que tem benefícios sem esforço e um longo repertório de preconceitos que, como sempre sucede durante as crises capitalistas, enfrentam aos perdedores e perdedoras, enquanto isentam a responsabilidade daqueles que seguem de festa.

Mas o fortalecimento da direita não é a única consequência do "progressismo" neoliberal. Mesmo com as contradições que a conquista de direitos relacionados a gêneros e sexualidades implicam, se há uma coisa que define a contra-ofensiva restauradora do capitalismo, é sua capacidade de rentabilizar toda necessidade ou desejo humano. Enorme desenvolvimento do que passou a ser chamado de indústria do sexo; liberalização das fronteiras que permite, juntamente com o fluxo de capitais, o tráfico de pessoas para exploração laboral e sexual; e uma imensa transformação das relações sexo-afetivas, submetidas à lógica do lucro, da rentabilidade e da eficiência. Se compra um brinquedo erótico ou uma esposa; se vende um preservativo musical, com sabor ou tachas, como realização da fantasia menos pensada.

E, como disse em O desejo sob suspeita: “E enquanto nossas almas naufragam no vertiginoso deserto da hiperconectividade, nossos corpos se enfrentam com a fadiga crônica. O controle de nossos corpos e efeitos da força de trabalho é vital para as classes dominantes; porém, nunca como na atualidade se viveu um profundo paradoxo de maiores liberdades sexuais, culto ao hedonismo e deserotização e medicalização da sexualidade. Paradoxalmente, enquanto a sexualidade se mede em rendimento (quantidade de orgasmos, de ereções, de pares sexuais, de encontros eróticos, etc.), a falta de desejo ameaça se tornar um hit dos consultórios. As revistas estão cheias de conselhos sobre como manter viva a chama da paixão no casamento ou porque ter três orgasmos por semana estimula uma pele saudável; mas a vida de milhões de seres humanos submetida a turnos rotativos, às jornadas extenuantes e aos acelerados ritmos de produção desnudam uma sexualidade precarizada.” Porque não podemos esquecer que esses novos direitos e liberdades democráticas se sobrepõem à aceleração extenuante dos processos produtivos, aos ritmos enlouquecedores de turnos rotativos e a exploração aumentada pela precarização das condições de trabalho e de vida. O resultado é o escasso tempo livre, a discordância dos horários destinados ao ócio, à socialização e ao prazer (também sexual!) e uma exaustão generalizada que se arrasta até a cama, enchendo-a de frustrantes desencontros.

O capitalismo provoca uma contradição irresolúvel entre o que, corretamente, Tamara Tenembaum denomina de “ampliação de nossas ambições” - em termos de prazer - e as pré-condições materiais de sua realização, para a grande maioria. Viver sozinha, exercer o amor livre, manter uma vida sexual ativa e satisfatória deixaram de ser pecado no capitalismo, para converter-se praticamente em privilégios de classe. E, para que essa contradição não exploda tudo, é inculcado em nós a ideia de que não devemos transformar coletivamente a sociedade em que (mal)vivemos, mas sim de assumir uma responsabilidade individual, com mais esforço, mais investimento de tempo e alguma expectativa ingênua de viver melhor.

Tomar os lençóis por assalto

Mas, estimulados pela crise que atravessamos há mais de uma década, também começamos a questionar o paradoxo da vitimização com a qual foram legitimadas nossas reivindicações contra a violência sistêmica. Ou sobre se o punitivismo é a via que escolhemos para que se faça justiça, enquanto o Estado capitalista se livra da culpa e obrigação sobre a perpetuação e legitimação da violência machista, as mortes por abortos clandestinos e a reprodução estereotipada dos gêneros através das instituições. Também refletimos sobre as incompatibilidades da luta pela liberdade sexual com a regulação estatal de nossos relacionamentos sexo-afetivos. Desejamos uma sociedade na qual não seja necessário regulamentar nossos vínculos para que alguém possa cuidar de nós quando adoecemos ou para que não fiquemos sem teto quando a pessoa com quem o compartilhamos morre.

A atual onda feminista está ensaiando essas questões, tecendo reflexões dissidentes e promovendo novos debates. O feminismo, novamente, está abrindo espaços para a desconstrução do que era dado como certo. E isso não é apenas uma batalha cultural e política contra o fortalecimento das novas direitas ou das sibilinas e ambíguas concessões do "progressismo neoliberal". Mas também contra o discurso perverso que nos propõe fechar fileiras em defesa desse "mal menor" e não se atrever a ir um pouco mais longe: um não futuro disfarçado de esperança, vermelho e inclusive violeta. Novas embalagens, com verniz esquerdista, para continuar remoendo o neoliberalismo em crise.

Mas temos o privilégio de habitar em um tempo de possíveis transformações coletivas. E sempre, na História, as mutações radicais que questionaram o status quo revolucionaram os sentidos comuns da vida cotidiana, abrindo novos horizontes para o prazer e o desfrute, os vínculos eróticos e afetivos. Aconteceu em 1917, em 1968 ... seremos nós, os que nesta nova década que começa na Plaza de la Dignidad no Chile, sob os guarda-chuvas de Hong Kong e que dança a greve com o balé da Ópera de Paris, deixaremos novos marcos revolucionários nas camas das gerações futuras?

Em nossas lutas coletivas atuais contra a miséria, o desemprego e o cataclismo climático, há também o anseio de uma vida erótica que - como escreve Peter Drucker - seja "polimorficamente sensual, ao invés de genitalmente obcecada". Contra a crueldade violenta exercida pela direita, contra a mercantilização e a regulamentação com a qual o neoliberalismo envolve nossos direitos e liberdades, contra a resignação daqueles que defendem o status quo para nos impedir de traçar outros horizontes, aqui estamos em pé de guerra contra o capitalismo, entre outras coisas também porque seguimos desejando seguir desejando.

Texto originalmente publicado na revista Contexto y Acción julho 2020

 
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