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MÊS DO ORGULHO
51 anos de Stonewall: É possível uma sociedade igualitária hoje?
Pablo Herón

Meio século após a revolta de Stonewall, quando gays, lésbicas e trans saíram às ruas erguendo a bandeira da libertação sexual, o mundo atravessa uma crise de magnitude que põe grandes desafios para conquistar uma sociedade verdadeiramente igualitária.

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Foto: Mar Ned * Enfoque Rojo

O domingo 28 de junho, é marcado pelo 51º aniversário da revolta de Stonewall, quando transexuais, lésbicas e gays deram um basta à perseguição das forças repressivas e se enfrentaram na rua com a polícia de Nova York, dando o marco fundacional para o movimento de libertação sexual.

A revolta de Stonewall foi a inspiração que, por sua vez, inspirou vários acontecimentos em uma época em que estavam claras as críticas à sociedade em que a desigualdade é norma, retratados nas barricadas do maio francês, no Black Power exigindo a igualdade para as e os negros, bem como o movimento internacional contra a guerra imperialista dos EUA no Vietnã. Naquela época, a lei dos EUA proibia o uso de duas ou mais roupas do sexo oposto, essa era a justificativa legal com a qual queriam prender todas as pessoas trans. Mas essa ocasião foi diferente, vindo de vários dias de incursões, a raiva diante de tanta perseguição se transformou em resistência por serem detidos e a resistência passou a ser uma resposta determinante contra a polícia. Ninguém podia acreditar que as e os LGBTs fossem capazes de por em pé barricadas em plena Nova York, de instigar medo na polícia, trancando um grupo dentro do bar e continuando os enfrentamentos por várias noites.

Stonewall depois da revolta de 28 de Junho. Foto: Fred W. McDarrah

Há um mês, o assassinato de George Floyd fez ressurgir o movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) contra a brutalidade racista da polícia e o racismo em geral, chegando a exigir que que se desfinancie a polícia. Nos protestos também escutamos Black Trans Lives Matter (vidas trans negras importam), incluindo uma mobilização no bar Stonewall, contra o assassinato de Tony McDade, também pelas mãos da polícia.

A grande novidade é que a mobilização da população negra e de uma juventude multiétnica, também por detrás de imagens de viaturas policiais destruídas e manifestantes desafiando a repressão, se soma o apoio de grandes setores da população norte-americana atravessados por uma crise muito profunda. A pandemia de coronavírus que já teve quase 500 mil mortes em todo o mundo, e a crise econômica e social promete uma maior pauperização da vida para a grande maioria. Estima-se que em três meses perdeu-se quase 300 milhões de postos de trabalho e 60 milhões de pessoas caíram abaixo do limite da pobreza extrema, somando os 700 milhões que antes da pandemia sobreviveram com 2 dólares por dia.

Isso demonstra uma mudança significativa na principal potência imperialista, que até o momento vinha avançando uma agenda conservadora, com Trump a frente, tentando retroceder direitos conquistados e tomando como principio um discurso racista, xenofóbico e de ódio inclusive contra os LGBTs e as mulheres. O questionamento das e dos negros tem como antecedente o surgimento do movimento de mulheres a nível internacional, reivindicando direitos elementares e também enfrentando o discurso dos setores reacionários, que durante a pandemia tentam atacar programas de saúde sexual e reprodutiva, como acontece com as restrições para realizar um aborto em vários estados dos EUA.

Manifestação frente ao bar Stonewall durante Junho por Black Trans Lives Matter

A profundidade do fenômeno destaca a crise pela qual o regime norte-americano e o próprio Trump estão passando, que até alguns meses atrás buscava cômodamente avançar para a reeleição presidencial. Por sua vez, o Partido Democrata representa uma contradição que aspira capitalizar os protestos, aproveitando a proximidade das eleições e seu peso nos movimentos, mas ao mesmo tempo não pode dar uma resposta de fundo às reivindicações, porque é uma parte indispensável do democracia imperialista. O próprio surgimento do movimento Black Lives Matter ocorreu durante a era Obama, que ganhou o título de presidente que deportou o maior número de imigrantes na história dos EUA: 2,5 milhões de pessoas. A denúncia contra o racismo no coração do imperialismo repercutiu na forma de solidariedade em todo o mundo, em muitos países, como Brasil, França e Inglaterra, houveram importantes mobilizações

O impacto da crise

Três meses após a declaração da pandemia foram exacerbados os problemas sofridos pela grande maioria das pessoas, como resultado das desigualdades que são reproduzidas diariamente nas democracias capitalistas. Cortes nas horas de trabalho, diminuição dos salários, suspensões e demissões tornaram-se a norma como resposta dos empresários diate da crise econômica em muitos países. Hospitais superlotados, enfermeiros e médicos insuficientes e pacientes em estado crítico que sequer têm acesso a um respirador, descrevem a realidade de um sistema de saúde desfinanciado a nível global e atravessado pela sede de lucro.

A discriminação e o discurso de ódio são reproduzidos em um contexto de crise social generalizada, que também trouxe à tona os problemas anteriores que atravessam lésbicas, gays, bissexuais, trans e não binários em todo o mundo. Na Colômbia, no final de maio, Alejandra Monocuco, uma mulher trans que se prostituía para sobreviver, agonizava sem poder respirar. Uma ambulância chega em sua casa e os paramédicos, depois de saberem que ela vivia com HIV, se negaram a continuar dando assistência médica, levando-a ao hospital para assistência respiratória e testando-a para certifica se ela tinha um coronavírus. Alejandra morreu 40 minutos após a partida da ambulância, denunciaram a amiga com quem ela morava e organizações LGBT no país, que lançaram a campanha "Justiça para Alejandra".

As pessoas trans, sem acesso a moradia, trabalho, saúde e educação, sofrem as piores conseqüências. À discriminação e marginalização sistemáticas se somam às tentativas de despejo, como visto na Argentina, mais dificuldades no acesso à saúde, a falta de renda como produto de não terem um emprego estável e a intensificação do assédio policial como parte das políticas dos governos que reforçam a repressão estatal.

Na Coréia do Sul, onde ocorreu um ressurgimento do coronavírus em uma zona de bares e locais para LGBTs, a homofobia se apropriou das telas e os meios de comunicação em uma cruzada contra homossexuais. "Se eu fizer o teste, o mais provável é que minha empresa descobrirá que sou gay, perderei meu emprego e enfrentarei uma humilhação pública", declarou um gay que estava nessa área no momento do surto em um país onde a homofobia segue tendo um peso avassalador. Os mecanismos de controle aplicados pelo governo desse país geraram críticas e preocupações nas organizações dos Direitos Humanos, chegando ao ponto de rastrear os cartões de crédito de quem esteve nessa área.

Os governos nem sequer vem realizando produção de estatísticas oficiais para dar conta do impacto da crise. Uma pesquisa realizada pela Human Right Campaign (Campanha pelos Direitos Humanos) estima que, nos EUA, em meados de maio, 33% dos LGBTQs sofreram uma redução das suas horas de trabalho, um número que era de 38% para os LGBTQs negros. Por sua vez, 17% dos LGBTQs ficaram desempregados, número que sobre para 22% para os negros, enquanto que para o total de entrevistados geral, o percentual foi de 13%.

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Segundo o Instituto Williamson, em 2017 nos EUA, o desemprego para LGBTs era de 9%, enquanto o restante era de 5%. Uma pesquisa realizada em 2019 pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nos 27 países da união, incluindo também o Reino Unido, mostrou que de quase 140 mil LGBTs maiores de 15 anos que responderam, 37% tiveram dificuldades em chegar ao fim do mês, enquanto 17% tiveram problemas de moradia. A esses dados, podemos adicionar as condições de precarização no trabalho e da vida em geral que se instalaram com força durante o neoliberalismo.

Desse modo, a opressão por orientação sexual, identidade de gênero e raça se entrelaçam de forma específica nas democracias capitalistas e são funcionais em uma sociedade que se baseia na desigualdade de origem, que beneficia os grandes empresários, como vemos nos bilhões que os governos destinam diretamente para salvá-los diante das medidas de isolamento e da crise. Uma situação que atinge ainda com mais força nos países dependentes, como começamos a ver com o impacto da pandemia na economia da América Latina, ligada aos países imperialistas por dívidas externas. Enquanto milhões caem na pobreza e no desemprego, os grandes donos do mundo desfrutam de seus privilégios e aumentam seus lucros, incluindo até as empresas “gayfriendly”, como Amazon ou JP Morgan. O mesmo se aplica à Igreja Católica, que mantém intacta seu patrimônio multimilionário, enquanto sustenta sua guerra contra a ideologia de gênero.

Da crítica radical à cooptação

Das barricadas de Stonewall até os dias atuais, muita coisa aconteceu. Como ocorreu com o feminismo e outros movimentos contra a opressão, setores do movimento LGBT se afastaram das ruas e da critica às sociedades capitalistas, que souberam cooptar e integrar aspectos e transformá-los em discursos dóceis de "tolerância e diversidade". Assim, alguns setores do movimento LGBT abandonaram a luta pela libertação sexual para aceitar agendas com alguns direitos para algumas pessoas, enquanto a maioria se enfrenta cotidianamente com a opressão. Na semana passada, Trump levou uma rasteira em sua cruzada contra as pessoas LGBTs, a Suprema Corte dos EUA reconheceu o direito de não sofrer demissão discriminatória com base na orientação sexual ou identidade de gênero, a primeira decisão dessa instituição a defender expressamente as pessoas. trans.

Em várias partes do mundo, as mobilizações para o orgulho LGBT chegaram a reunir centenas, senão dezenas de milhares de pessoas, em quase 30 países a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi alcançada e em dezenas é permitida a mudança no registro da identidade da gênero, algo impensável há 50 anos.

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De acordo com o "Relatório Homofobia do Estado" publicado em 2019 pela Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA sigla em inglês) em 35% dos Estados da ONU (68 países), segue sendo considerado ilegal um ato sexual consensual entre pessoas adultas do mesmo sexo. Em 34 estados, há restrições à liberdade de expressão relacionadas à sexualidade e aos gêneros, que têm como referência a lei "anti-propaganda homossexual" promovida por Putin na Rússia, onde ter um alfinete com a bandeira do orgulho é motivo suficiente para ser preso. A repressão estatal sistemática, tão amplamente denunciada pelos ativistas de Stonewall, segue na ordem do dia na forma de leis ou violações.

Há algumas semanas, a organização Transgender Europe denunciou em seu relatório de 2020 sobre direitos trans na região da Europa e Ásia Central que, dos 41 países onde há reconhecimento legal da identidade de gênero, em 31 países é requerido um diagnóstico de saúde mental e em 13 a submissão a uma esterilização obrigatória para poder modificar seu documento de identidade. Dessa maneira, são impostas condições para se ter acesso a um direito elementar que é a auto-declaração de gênero. Um tipo de punição por questionar a ordem dos gêneros, defendida por setores religiosos, a extrema direita política e até um setor minoritário do feminismo que é trans-excludente (TERF).

A conquista de direitos nas últimas décadas, a presença na mídia e nas manifestações do Black Lives Matter com demandas próprias de LGBTs, são um mérito da luta contra a opressão através da mobilização. Isso foi demonstrado por um setor do movimento de libertação sexual que persistiu em tomar as ruas, sem depositar sua confiança nas instituições da época para responder às suas demandas, tal como é promovido hoje com as agendas da diversidade sexual dos estados e instituições como a ONU ou o Banco Mundial. Sem ir mais longe, foi somente no ano passado que a ONU deixou de considerar a transexualidade como um “transtorno mental”, aprovando a última modificação da Classificação Internacional de Doenças (CID-11).

Em muitos países, essa "agenda LGBT" foi usada pelos governos para humanizar as democracias capitalistas que, ao mesmo tempo, perseguem e reprimem diferentes grupos oprimidos. No entanto, se as democracias capitalistas e suas instituições internacionais adotaram um discurso progressivo "gay friendly", foi com o objetivo de digerir o movimento da década de 1970, apagando do horizonte sua crítica mais radical ao sistema capitalista e integrando-o à grande empresa neoliberal, um plano que impôs a perda de direitos para o conjunto da classe trabalhadora, graças à precarização do trabalho e as privatizações. Isso explica que hoje, há 51 anos de Stonewall, tendo direitos formais conquistados em alguns países, só uma minoria de pessoas LGBT pode aproveitá-los da melhor maneira possível, enquanto a vida cotidiana da grande maioria é atravessado pela discriminação sistemática e a precarização da vida em geral. Isso se reflete mais brutalmente na super-representação de pessoas trans na pobreza, na precariedade e na violência institucional.

Por uma verdadeira libertação

Diante do crescimento das alternativas à direita que começaram a surgir a partir da crise de 2008, as esquerdas reformistas, representadas por alguns governos latino-americanos com discursos "progressistas", o Partido Democrata nos EUA e os antigos partidos social-liberais na Europa, promovem que nos resignemmos a aceitar políticas neoliberais combinadas com medidas sociais que são completamente insuficientes como resposta à magnitude da crise, enquanto mantém intactos os lucros dos empresários. Para isso, se apoiam nas instituições mais reacionárias dos seus Estados: a polícia, o judiciário e as hierarquias das igrejas. Nos EUA, o "socialista" Bernie Sander pediu apoio ao candidato à presidência de Joe Biden, que há pouco temo declarou diante da onda de protestos, que teria que ensinar os policiais a disparar nas pessoas nas pernas no lugar do coração.

O único obstáculo ao avanço dessas mensagens de ódio foi protagonizado pela mobilização de mulheres nos últimos anos e hoje por manifestações anti-racistas. Essas respostas no atual contexto de crise, representam um novo cenário onde se pode reviver o espírito combativo de Stonewall, recuperando sua crítica a um capitalismo que apenas promete miséria e permitindo a imaginação de uma sociedade completamente diferente.

Concentração em Nova York um mês depois da Revolta

Enquanto os estados sustentam a repressão policial contra as pessoas trans e as igrejas reproduzam seu discurso de ódio biologicista, o direito de auto-declarar a identidade de gênero será constantemente assediado pela discriminação sistemática na vida cotidiana. Enquanto o capitalismo sustenta a mercantilização dos corpos, dos prazeres e desejos, a orientação sexual e a sexualidade em geral da maioria, estarão destinados a ser uma proibição, uma norma ou até um tabu. Por essas razões, torna-se essencial lutar por um horizonte revolucionário que se proponha a transformar radicalmente as bases sociais desse sistema de exploração e opressão. As mobilizações, as revoltas ou as crises, por si só, não garantem sua queda, por isso é necessário preparar essa perspectiva a partir de agora, pondo de pé uma organização política e internacional das e dos oprimidos ligados à classe trabalhadora, que pretende ter um papel decisivo nos próximos acontecimentos da luta de classes na perspectiva de construir um novo mundo.

Assim definiu em setembro de 1969 com sua “primeira declaração” a Frente de Libertação Gay de Nova York em seu jornal “Come Out”: “somos um grupo revolucionário de homens e mulheres homossexuais formados com a convicção de que não é possível alcançar a libertação sexual total para todas as pessoas, a menos que as instituições sociais existentes sejam abolidas. Rechaçamos a tentativa da sociedade de impor papéis sexuais e mitos simplistas. Vamos ser quem somos. Ao mesmo tempo, estamos criando novas formas e relações sociais, isto é, relacionamentos baseados em fraternidade, na cooperação, no amor humano e sexualidade desinibida. A Babilônia nos obrigou a nos comprometer com uma coisa ... a revolução. "

 
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