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ATOS ANTIRRACISTAS
Os derrubadores de estátuas e o necessário acerto de contas com o passado
Gustavo Costa
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Arte de Banksy, que propôs a criação de uma nova estátua no lugar, onde os derrubadores de estátuas estariam presentes na escultura

Há um certo fascínio em derrubar estátuas de figuras racistas. Sobe à garganta uma êxtase catártica onde, mesmo a quilômetros de distância, nos sentimos bem, purificados, como alguém que expia seus demônios para longe.

Ao longo da história, ações semelhantes sempre ocorreram. Na Convenção Nacional francesa, em 1792, os revolucionários botaram o calendário gregoriano abaixo e instauraram um republicano, mais poético e anticlerical. Conta-se que na revolução de julho de 1830, terminado o primeiro dia de combate, os relógios localizados nas torres parisienses amanheceram salpicadas de tiros. Uma revolta contra o tempo – o tempo das máquinas e do lucro que a tudo devoravam! No Chile de 2019, os insurretos derrubaram inúmeras estátuas de antigos colonizadores. Pedro de Valdívia, pioneiro no genocídio indígena dos Andes, foi decapitado em Temuco, Valdívia e Arauco. Em 2020 foi a vez de estátuas na Inglaterra e nos Estados Unidos. O comerciante de escravos Edward Colston hoje é mais famoso pelo ódio que inspira do que por qualquer outra coisa. O Rei Leopoldo II, genocida belga, foi vandalizado esses dias na Antuérpia. Os brasileiros de hoje já apontam Borba Gato e Domingos Jorge Velho como as próximas vítimas. A lista de estátuas é tão grande que não cabe nesse texto...

Ações como essas devem ser celebradas com entusiasmo. Tamanho fascínio talvez venha da compensação simbólica diante de nossa incapacidade de alterar o passado. Nos sentimos estáticos perante as atrocidades de séculos anteriores, ou décadas… no entanto buscamos algum tipo de redenção. É uma compensação simbólica pois não alteramos o passado de fato, mas o reescrevemos do ponto de vista dos vencidos, ou dos filhos e netos dos vencidos. E isso é muito importante. Acredito ser impossível construir um futuro de igualdade e liberdade sem antes acertar as contas com o passado.

Outra coisa que os derrubadores de estátuas mostram é que, de certa forma, o passado ainda é presente. Derrubam violentamente símbolos da escravidão não apenas porque desejam simbolicamente matá-lo, mas porque a escravidão persiste com outras roupagens. O açoite e o cacetete, o navio negreiro e o camburão, o feitor e a farda, o trabalho forçado e a terceirização, e assim por diante. O capitalismo sempre foi mestre em explorar das maneiras mais desumanas possíveis o trabalho alheio a fim de ampliar lucros – e o racismo é o irmão gêmeo desse sistema econômico, talvez não univitelinos, mas sempre juntos.

A intelectualidade liberal fica em polvorosa com ações como essas. Um colunista da Folha, dia desses, disse apoiar os movimentos antirracistas nos EUA, mas sem destruir estátuas, pois, segundo ele, seria uma atitude “anacrônica”. “Estamos presos em nosso tempo”, disse Hélio Schwartsman, e portanto temos que compreender o passado com os olhos do passado. Se destruir estátuas de escravocratas é anacrônico, por que venerá-las em nossas cidades não seria? A verdade é que boa parte da intelectualidade morre de medo quando os negros ocupam as ruas reivindicando o que deveria ser deles. A fim de ofuscar a ação de massas e tentar torná-la inofensiva, pessoas “inteligentes” como Hélio lançam mão de argumentos estapafúrdios como esses e assim esconder o seu secreto desejo de manter as coisas como elas são. Pode protestar, mas derrubar a Bastilha já é vandalismo, diria um desses intelectuais em pleno 1789.

A verdade é que, num mundo onde a inteligência parece ter se esfumaçado, ações como as que estamos vendo nas manifestações antirracistas são algumas das coisas mais inteligentes dos últimos tempos. Ela surge de vez em quando, quando as massas negras e trabalhadoras rompem a aparente passividade diante de tanta atrocidade, erguem o punho e vão à luta. Contra o mundo de Colston, Borba Gato, Jorge Velho e tantos outros escravocratas, bandeirantes e proprietários, é preciso opor um mundo de liberdade e sem exploração e opressão. A escravidão de hoje se escancara na terceirização, na violência policial, no encarceramento em massa, na morte de Miguel, nos baixíssimos salários sem direitos mínimos, toda a realidade do capitalismo moderno… uma verdadeira redenção exige combater tudo isso e os trabalhadores, aliados com todos os setores e povos oprimidos do mundo, são os únicos que podem dar uma saída.

 
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