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GEORGE FLOYD
Estados Unidos: rebelião no coração do império
Claudia Cinatti
Buenos Aires | @ClaudiaCinatti

Estados Unidos está em chamas. O brutal assassinato racista de George Floyd foi o gatilho de uma rebelião nacional que pegou a classe dominante de surpresa. A explosão da raiva popular no coração do capitalismo. E irradia sua influência para um mundo em crise pela pandemia do coronavírus. As mobilizações antiracistas em Paris, Berlin, Londres e outras cidades são os primeiros ecos desta onda expansiva.

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Tudo aconteceu vertiginosamente. No dia 25 de maio, George Floyd, um homem afroamericano de 46 anos que havia perdido seu emprego pela crise do coronavírus, foi preso por quatro policiais brancos em Minneapolis, por supostamente ter pago com 20 dólares falsos. Um deles, Derek Chauvin, o asfixiou com seu joelho durante quase nove minutos, enquanto seus companheiros de turno o observavam.

Essas imagens de racismo explícito e intolerável, que foram replicadas até a exaustão nas redes sociais e telas, prenderam fogo na ira popular, reativaram o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e levaram às ruas, de maneira mais ou menos espontânea, uma multidão multiétnica e intergeracional, com jovens afroamericanos, latinos e brancos à frente. Apesar do ALF-CIO (NdT: Federação Americana de Trabalho e Congresso de Organizações Industriais) não ter mobilizado, e manter na sua organização sindicatos policiais que servem para proteger os policiais violentos e racistas, existiram sintomas mais que alentadores, como o exemplo dos motoristas de ônibus de Nova Iorque, que se recusaram transportar os detidos nas manifestações.

Trump e os democratas haviam comprado paz social em meio à pandemia com um pacote de estímulo de 2 bilhões de dólares, que ainda que tenham estado majoritariamente à serviço de resgatar os capitalistas - daí a folia de Wall Street apesar do coronavírus- uma parte foi destinada a aumentar o seguro desemprego e distribuir cheques de até 1.200 dólares para aqueles que tem renda inferior a 75.000 dólares anuais. Mas a situação estourou por outro lado.

As últimas palavras de Floyd, “Não consigo respirar”, se transformaram na bandeira de um imponente movimento de protesto, que foi se massificando ao longo dos dias e da repressão estatal. Dezenas, ou talvez centenas de milhares, vem se manifestando em quase todas as cidades dos Estados Unidos, com diferentes graus de violência e radicalidade.

O presidente apelou para a polarização e a repressão com um discurso de “lei e ordem”, e isso foi em si mesmo um elemento de radicalização. Trump atuou como um provocador frente às mobilizações e adicionou vários litros de combustível ao incêndio. Qualificou os manifestantes como “terroristas”. Tuitou levianamente “se começam os saques, começam os tiros”, uma frase de Walter Headley, o chefe racista da polícia de Miami durante a década de 1960 que havia declarado a guerra contra os bairros afroamericanos para lidar com o movimento de direitos civis. No entanto, as explosões racistas do presidente não podem absolver o conjunto da classe dominante. Os governadores e prefeitos democratas, começando por Minnesota e Nova Iorque, reprimiram durante, impuseram toques de recolher e apelaram para a maldita Guarda Nacional.

Tiveram que acontecer mais de sete dias e noites de enfrentamentos para que a justiça decidisse fazer concessões mínimas, como aumentar a imputação contra Derek Chauvin e a detenção de seus cúmplices.

O processo é profundo e não envolve apenas os que se mobilizam. Segundo a pesquisa de Reuters do começo de junho, uma maioria de 64% apoia as mobilizações, e 55% desaprova a linha dura de Trump para sufocar as manifestações. Isso se devem parcialmente à brutalidade policial, os assassinatos e a crise social que também afeta os brancos pobres.

Esta aliança de explorados, setores oprimidos e jovens que se expressa nas ruas e na opinião pública majoritária, aponta a ligação insolúvel entre racismo e capitalismo que está na origem do Estado norte americano. Não se trata de apenas mais uma revolta. Estamos frente à emergência de um acontecimento de dimensões históricas, cujas consequências políticas não se esgotarão com o desfecho do movimento, nem sequer em uma mudança de sinal político na Casa Branca em novembro, mas devem ser medidas em médio e longo prazo.

1968-2020

“Não existe capitalismo sem racismo”, são as palavras que dizia Malcolm X em meados da década de 1960. Não lhe faltava razão. Efetivamente, o racismo está inscrito no DNA do capitalismo norte americano e seu Estado. A mais de 50 anos do movimento por direitos civis, e depois de dois mandatos de Barack Obama, o primeiro presidente afro americano da história, a situação estrutural não mudou substancialmente. A comunidade afro americana segue sendo objeto da opressão mais obscena: sendo uma minoria de 13% da população, representa 33% da população carcerária e tem os piores índices de pobreza, desemprego e marginalidade. Mas em determinadas conjunturas, as estatísticas deixam de ser números frios e se transformam em forças sociais e luta de classes.

Os crimes raciais pelas mãos da polícia, e também seu encobrimento por parte de justiça, são moeda corrente ao ponto de que se contem como causas de morte junto com o câncer e os acidentes de trânsito. Segundo um estudo de 2019, um homem adulto afro americano em cada mil pode morrer nas mãos da polícia. Isso alimenta manifestações violentas de forma mais ou menos recorrentes. Uma das explosões sociais mais emblemáticas foi a revolta da cidade de Los Angeles em 1992 pela absolvição dos policiais que haviam espancado selvagemente Rodney King. Esse levantamento durou seis dias e deixou um saldo de 60 mortos, mas não conseguiu furar o cerco local, nem mudar a oscilação política à direita em pleno auge neoliberal, que se manifestou na chegada dos Clinton à liderança democrata e a Casa Branca. Mais próximo no tempo, as manifestações pelos assassinatos de Eric Garner e Michael Brown em 2014 que deram origem ao movimento Black Lives Matter. Mas para encontrar uma analogia com uma manifestação de profundidade e extensão nacional similares temos que voltar 52 anos, ao verão quente de 1967 e a onda de manifestações que seguiram o assassinato de Martin Luther King em abril de 1968. Nestes anos álgidos, precedidos pelo assassinato de JF Kennedy e de Malcom X, o movimento dos direitos civis fazia sinergia com uma juventude que se radicalizava com o movimento contra a guerra do Vietnã.

Toda analogia histórica é imperfeita, mas nas suas diferenças ajuda a compreender o momento atual. A rebelião em curso não é uma criação “ex-nihilo” (NdT: que surge do nada). É o precipitar de processos que vem se acumulando nos últimos anos e que foram agravados pelas consequências sociais e econômicas provocadas pela pandemia do coronavírus, que entraram no assassinato de Floyd um ponto de inflexão.

Hoje não existe um equivalente à guerra do Vietnã, ainda que os efeitos do coronavírus e a depressão econômica induzida atuaram como aceleradores. Existem outros fatores críticos: os fracassos das guerras no Afeganistão e Iraque tem tido o efeito de acelerar a decadências hegemônica dos Estados Unidos no mundo e fazer com que as aventuras militares sejam altamente impopulares para amplos setores da população norte americana. O presidente Trump está no seu pior momento. E também a posição dos Estados Unidos para liderar o mundo capitalista, ao ponto em que Richard Haass, um dos ideólogos da política exterior imperialista, considera que é o “momento mais perigoso” desde o fim da Guerra Fria, com a emergência da China, e em menor patamar da Rússia e outras potências que desafiam o domínio norte americano. Se sobrepõe de conjuntura, sanitária, econômica e política, com as tendências mais gerais à crise orgânica abertas pela Grande Recessão de 2008, que levaram Trump à Casa Branca. Estas tendências à polarização social e política, a divisão da classe dominante e o aparato estatal e a decadência da liderança norte americana no mundo se aprofundaram com a orientação protecionista e unilateral de Trump e estão colocando em questão seu projeto de reeleição.

Entre a contenção reformista e a radicalização

O movimento de protesto abriu uma crise de grande magnitude no governo e deixou expostas fraturas na classe dominante e no aparato estatal. Trump ameaçou enviar o exército para reprimir as mobilizações mas foi desautorizado pelo chefe do Pentágono, Mark Esper, que rejeitou essa possibilidade categoricamente. O mesmo foi feito por vários líderes do Partido Republicano que estão abandonando o barco do experimento trumpista.

As eleições presidenciais de novembro somam tensão ao cenário político. Podem ser uma oportunidade de desvio e contenção mas também de intensificação da polarização.

A reeleição de Trump parece difícil no contexto da pandemia, com mais de 100.000 mortos, ao menos 21 milhões de desempregados (ainda que 43 milhões tenham solicitado o seguro desemprego desde o começo da pandemia), uma contração da economia de 4,8% no primeiro trimestre do ano e agora as manifestações. Depois dos piores dias da sua presidência, Trump recebeu a primeira boa notícia dos últimos meses: a taxa de desemprego de maio ficou em 13,3%, abaixo dos 14,7% da medição de abril e longe dos 20% prognosticados pela maioria dos economistas. Mas isso ainda significa um aumento de 10 ponto em comparação com março. Além disso, a medição não conta aqueles que se vem obrigados a trabalhar meio período ou que já não buscam emprego, o que aumentaria a taxa em 2,1%. Trump ainda preside uma catástrofe e a recuperação segue sendo uma hipótese. Sua campanha poderia parecer com a de 2016, baseada na exacerbação da polarização e a exaltação do “America First” (“América Primeiro”), que tem como eixo a hostilidade contra a China, e um discurso de “lei e ordem” para galvanizar sua base eleitoral mais dura e apelar aos setores mais conservadores da direita republicana. Como afirmaram vários analistas, busca repetir a eleição de Nixon de 1968, que apelou ao medo do caos da maioria silenciosa conservadora. Mas diferentemente de Nixon que havia estado em um limbo político e criticava a dirigência democrata de fora, Trump vem de ser presidente por quatro anos.

Frente à contundência da mobilização, setores centrais da burguesia estão ensaiando a tática de cooptação, tratando de se apropriar das demandas para reconduzir o movimento das ruas às urnas e aos canais institucionais.

O encarregado de colocar em marcha este “operativo de contenção” foi o ex presidente Barack Obama, que representa o rosto mais amigável do establishment democrata. Em uma nota pública, Obama abriu um diálogo com os manifestantes, chamando-os a trocar as manifestações por um tsunami de votos para o Partido Democrata que varra os republicanos não apenas da Casa Branca, mas das câmeras do congresso, dos governos estaduais e das legislaturas locais. A partir da Casa Branca e em uma troca de mãos do poder político em todos os níveis para poder implementar uma reforma da polícia e da justiça.

O funeral de George Floyd encenou esse tipo de "unidade nacional" concretamente, para reverter a tendência à ação direta, que abarca democratas e republicanos, como Obama e George W. Bush, e também os grandes meios corporativos. O jornal Washington Post, propriedade do multimilionário Jeff Bezos, é um dos porta-vozes desta “pseudo revolução passiva” que se colocou em marcha. No seu editorial no dia 5 de junho, defende que o racismo não foi resolvido com a Proclamação da Emancipação em 1863, nem com as leis de Direitos Civis de 1964, nem com a eleição de Barack Obama em 2008, e convoca a erguer um programa de reformas e derrotar Trump nas próximas eleições.

O Partido Democrata está convocado a cumprir seu papel histórico como instrumento por excelência da classe dominante para passivizar movimentos sociais e incorporá-los ao metabolismo do regime burguês imperialista. O problema é que seu candidato, Joe Biden, é um velho político do establishment com vários mortos em seu armário. (NdT: com muita culpa no cartório). Isso não faz com que o argumento do “mal menor” para impedir outro mandato de Trump possa terminar dando a vitória a Biden. Mas uma coisa é ganhar uma eleição, outra bem diferente é governar.

Como pode se ver, existe muita política burguesa para evitar um cenário de radicalização maior, mas o resultado segue em aberto. A estratégia “restauradora” de uma suposta “normalidade” pré Trump sintoniza muito mal com a evidente demanda de mudanças profundas que vem se manifestando no giro à esquerda de amplos setores da juventude, que majoritariamente vêm o socialismo melhor que o capitalismo e que foram a base do fenômeno de Bernie Sanders em 2016 e 2020, neste caso com a ampliação da coalizão eleitoral a setores significativos de latinos e afro americanos. É uma geração que já não acredita no “sonho americano”, entre outras coisas porque sua curta experiência de vida é marcada por duas crises capitalistas de envergadura histórica: a de 2008 e a da pandemia do coronavírus.

Esta mudança de situação também se expressou em uma tendência crescente da luta de classes, que em 2019 alcançou seu nível mais alto em décadas com greves de fábricas automotrizes e de professores. Essa tendência continuou inclusive em plena pandemia, com as lutas de trabalhadores precários “essenciais” por medidas sanitárias.

A frustração com Sanders, que foi de prometer uma “revolução política” a apoiar Biden (e antes apoiar Hillary Clinton) e a estratégia falida do DSA (Socialistas Democratas da América), o partido que atraiu para suas fileiras milhares de jovens mas atuou como colateral do Partido Democrata, faz urgente e concreta a conclusão de que é necessário um verdadeiro terceiro partido da classe trabalhadores e dos setores oprimidos, que possa organizar de forma consciente a luta contra o racismo, o capitalismo e o Estado imperialista norte americano e que se proponha lutar pelo socialismo. Em si mesmo, este fenômeno político penderia a balança a favor dos explorados a nível internacional.

Publicado originalmente no La Izquierda Diario.

 
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