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CORONAVÍRUS E LUTA DE CLASSES
Crônica de rua: O mês que a juventude precarizada argentina se levantou
Guadalupe Oliverio

Publicamos crônica de Guadalupe Oliverio, militante do PTS na Argentina, a poucas horas de uma nova mobilização da Rede de Precarizados argentina, uma ferramenta criada por jovens trabalhadores precarizados para possibilitar sua auto-organização para combater os ataques patronais e do governo, as demissões e possibilitar sua luta unificada, experiência que pode ajudar a explorar o caminho da organização e unidade dos trabalhadores, com os informais, uberizados à frente, que não aguentam mais pagar a crise capitalista.

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Novos laços: uma rede que se constrói do chão

Primeira mobilização, sexta-feira, 8 de maio

“Bora almoçar o que?”, nos pergunta Damián enquanto nos afastavamos do Ministério do Trabalho”. “Uhhh, era massa umas pizzas”, responde uma das minas com a mão na barriga. Enquanto um organiza a vaquinha de notas e moedas, o outro mexe no fundo da mochila procurando alguns panfletos que sobraram da primeira mobilização da Assembleia Nacional de Trabalhadores de Entregas no dia 8 de maio. Por volta de 80 entregadores entregaram um papel com suas reivindicações ao Ministério do Trabalho esperando uma resposta que até hoje não chegou.

“Bora no Uggis, amigo, assim a gente aproveita e conta pro pessoal de hoje” e fomos com eles para a Avenida de Mayo.

“Nós nos sentimos a cara da precarização”, nos conta Damián no caminho. O telefone faz um barulho que é insuportável, impossível de passar desapercebido. “Sua cidade precisa de você!”, diz uma notificação da Rappi. “Conecte-se já e ajude famílias com seus pedido”, arremata convidando-os a acessar o aplicativo.

Passam horas até que chegue outra mensagem, desta vez indicando que finalmente tem trabalho. Lhe diz onde retirar a compra e em qual endereço entregá-la. Mas só lhe dão trinta segundo para aceitar o pedido, se não, é oferecido imediatamente para outro entregador e bloqueiam a atividade da sua conta por mais uma hora, como se receber $55 (NdT: R$ 4,37)por pedido não fosse “castigo” suficiente. Para fazer pedidos maiores, de $60 ou$70, você tem que comprar a mochila da empresa.

Ainda que seja um sistema desenhado para a competição, laços de solidariedade vão sendo costurados: são criados “pontos de encontro” em esquinas e praças, para esperar os pedidos juntos e passar tempo. Se organizam com trabalhadores de pizzarias, farmácias e restaurantes de comida rápida nas quais vão todos os dias para buscar os pedidos. “Já todos nos conhecemos, sempre conversamos com eles, a sensação de todos é que as multinacionais estão cagando pra gente e que o governo as comemora dando-lhes dinheiro”, continua Damián no seu relato.

Rubén o interrompe, “a precarização e a exploração não diferenciam ofício”, nos diz convencido, “além disso, se hoje demitem um cara no call center, é muito provável que baixe o aplicativo da Rappi e venha trabalhar com a gente. Cada vez somos mais trabalhando nisso. Parece que não podemos escapar da precarização, não importa quem governe”.

Segunda mobilização, quinta-feira, 14 de maio

10 da manhã, café nas mãos, trombamos com Damián e Rubén. Uma semana depois, éramos 500 pessoas fechando a Avenida 9 de Julho com máscaras e cartazes. Enquanto falavam com nós, sabiam que estavam saindo em todos os meios de comunicação porque estão rompendo a “nova normalidade” do isolamento social. Mas nesse mesmo ato estavam começando a romper também a “velha normalidade” que com tanto esforço foi cuidada pelos burocratas sindicais: a que os dividiu sempre por ramo de trabalho e os isolou uns dos outros. Agora estão todos juntos. “Estamos em rede”, diziam eles.

Trabalhadores de telemarketing, da gastronomia e do comércio, empregadas domésticas, o pessoal do McDonald’s, trabalhadores da saúde e desempregados, até o final da jornada vão passando o microfone de mão em mão. O cobrem com um plástico e retomam o que falou o anterior. Seus discursos se entrelaçam, as anedotas coincidem, uma rede vai sendo costurada.

É a primeira assembleia de muitos deles, mas vem com a raiva acumulada de anos. “Onde está, que não se vê, essa famosa CGT?”, cantam em coro entre intervenções. A burocracia sindical nunca fala deles, das e dos trabalhadores precarizados. Nunca aparecem. E quando o fazem, o sindicato está sempre mais do lado da empresa que deles.

Em alguns trabalhos já se rebelaram, votaram novos representantes sindicais, disseram basta aos traidores e elegeram seus próprios companheiros de luta. Agora exigem que a justiça os reconheça legalmente. Uma geração que quer tudo e quer decidir levanta a cabeça.

Sabem que se as organizações sindicais estivessem nas suas mãos, as coisas seriam diferentes. Em meio à pandemia vão construindo essa luta, virtualmente ou com distanciamento social, a assembleia é seu lutar. De lá não se retiram.
Antoni pediu a palavra e se fez um silêncio ensurdecedor.

“Quero dar destaque para a situação da comunidade imigrante”. Conta que é peruano e no dia a dia trabalha nas ruas junto com a comunidade senegalesa, e que pela pandemia ficaram sem nenhuma renda. “Nós estrangeiros não estamos podendo receber a IFE (NdT: o que seria o auxílio emergencial argentino), o governo colocou uma trava de ter no mínimo 5 anos de residência no país e você tem que ter uma documentação especial que muitos não possuímos. Nos maltratam. Como pode ser que os mais afetados pela pandemia não sejamos os mais beneficiados?” pergunta com raiva, ainda que saiba perfeitamente a resposta.

Evelin pegou o microfone com força, ela é estudante da Faculdade de Direito, empregada doméstica e migrante paraguaia. Também pediu a IFE, e mais uma vez foi rechaçada.

“Os ricos não sabem nem lavar seus próprios pratos, por isso nos mantém trabalhando durante a quarentena”, os aplausos foram massivos, as piadas com os playboy também. “É real, companheiros, a gente tem que entender! Tudo que eles tem é graças a nós: suas fortunas mas também suas casas limpas. As fizeram com o nosso suor. Esta pandemia é a gota que transbortou o copo da nossa realidade, a situação é insustentável. Agora é a hora deles pagarem. Como diz Del Caño, tem que existir um importo às grandes fortunas para que todos tenhamos um salário de quarentena de 30.000 para poder sobreviver até o fim do mês”, as cabeças acenavam concordando.

A Rede saia às ruas pela primeira vez. A jornada era um sucesso.

Assembleia virtual, mais de mil trabalhadores se conectam em todo o país

Por volta das 18h00 começa a circular nos grupos de whatsapp um link de zoom para se reunir. Vão se somando novos amigos, companheiras, conhecidas, alguém porque viu o cartaz nas redes e também quis participar. Apagam os microfones para evitar os ecos. Mudam seus nomes caso algum policial ou x9 tenha se enfiado. Decidem mobilizar no dia 29 de maio, as 10 da manhã no obelisco, as 11 na Assembleia Nacional de Trabalhadores de Entrega.

Desde a última vez que se viram passaram dias que pareceram eternos. Kiana descobriu que tinha sido demitida do call center quando a excluíram do grupo de whatsapp. As minas do Burguer King receberam um holerite de “zero pesos” (NdT: moeda argentina) de uma das maiores empresas do mundo. É sério que faz falta que o Governo Nacional lhes dê dinheiro do Anses pra essas multinacionais para que paguem os salários? E para a Sociedade Rural?

Morreu na Avellaneda, Miguel Ángel Machuca, o quarto entregador durante a quarentena. E quando a raiva já não cabe no peito, Bárbara pede para falar pelo chat. É a irmã de Franco Almada, outro jovem que foi atropelado enquanto estava trabalhando. “Não podem imaginar o que é para uma família perder um ser querido tão jovem em tal situação”, diz com a voz mexida.

“A vida do meu irmão eu não vou recuperar nunca, por isso é muito importante que estejamos todos com todos, que isso fique grande, fique forte, é a forma de fazer com que nos escutem”. As mensagens de apoio e solidariedade inundavam a tela.
Éramos três na frente do computador escutando Bárbara e nos caiam as lágrimas de dor, mas também nos encorajou a continuar, nos estava dando uma injeção de moral: “Saibam que a união faz a força. Falemos com quem a gente conhece, que esteja sofrendo, vamos propor que se somem a essa nova mobilização das suas casas, nas redes, ou participando da manifestação, mas por favor, gente, nunca, mas nunca deixem de lutar, porque é isso que vai nos trazer algum resultado. Disso aqui pode surgir algo realmente grande, algo muito importante.”

Fizemos um minuto de silêncio por Franco. Logo, sincronizadamente, todos os microfones foram abertos. As câmeras foram ligadas. Começaram os aplausos. “Justiça!” gritava um. “Franco, presente!”, respondia o outro”. “Agora e sempre”, dissemos todos.

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Ayer más de 600 personas, compartiendo compus, teléfonos entre nosotros, nos conectamos en la asamblea virtual de La Red. Tuvimos la presencia especial de la hermana de Franco Almada, un pibe laburante de PedidosYA, que lo mató la precarización a la que nos obligan los empresarios. Hicimos un compromiso ayer entre todos, vamos a salir a las calles todas las veces que sea necesario: por Franco y por Miguel contra las multinacionales, por Ramona y todos los que viven en los barrios más humildes y los mata la desidia de todos los gobiernos, y por todos nosotros, que queremos otro presente y otro futuro. Nuestras vidas valen. El viernes 29, nos volvemos a ver en las calles de todo el país !

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Sinto que dessa vez pode ser diferente

A precarização está presente desde os primeiros empregos. É um tapa na cara que afasta cada vez mais dos projetos de vida que algum dia imaginaram. No fundo, sabem sim que outro futuro é possível, com certeza tem que ser construído. Tem que ser arrancado. “Ninguém vai nos presentear nada”, nos dizem. “A união faz a força” repetem. Ideias que dão voltas na cabeça e se transformam no impulso que empurra centenas de jovens a fazer sua primeira experiência de organização em meio à pandemia mundial que piora suas condições.

“O que está sendo formado é incrível, quando os vejo lutando me inspiram, vejo minhas filhas em vocês”, nos diz uma das empregadas domésticas da Rede por mensagem de texto. “Vocês são jovens, mas as que vivemos muitas crises econômicas nesse país percebemos quando uma está começando. Não imaginam o que sentimos”, nos diz.

O 2001 é um fantasma que recorre há alguns meses os cantos do país, os meios de comunicação, a preocupação dos ricos. A crise é fome, é desemprego, são ritmos de trabalho desumanos. São os empresários que nunca perdem e escondem seus produtos para vendê-los mais caros. São os sindicatos que traem. Os governos que nunca vão defender os trabalhadores.

Os trabalhadores de entrega tem história no nosso país. Muitos deles foram “os motoqueiros” de 2001. Esses valentes que nos dias 19 e 20 de dezembro fizeram história enfrentando a polícia no Obelisco junto com as Mães de Maio.

“Vi muitos mortos, vi muitos aleijadas, aconteceram demissões, também existiam holerites de salários que não bastavam. O desprezo, a manipulação e a precarização nunca se erradicou”, conta um deles. “Mas ver que as novas gerações lutam, se rebelam, me faz pensar que desta vez pode ser diferente. Que dessa vez talvez possamos sim”.

As lutas ensinam. As lições que ficaram de cada combate passado, são transmitidas. O frescor de uma geração de jovens que nunca foi derrotada e sentem que tem tudo a ganhar ajuda a costurar com diferentes fios uma rede que fica cada vez mais forte. Uma rede que segura, que não deixa que ninguém caia.

Precarizados e desempregados se unificam, se coordenam com caras e minas do aeroporto. Apoiam os trabalhadores de grandes indústrias que estão lutando como na fábrica Stani. Se somam à reivindicação de médicas e enfermeiras que estão na primeira linha. Elas lhes devolvem a solidariedade. O mesmo caminho seguem as e os professores. Estão fazendo carne este grito que traz ares de luta: “unidade dos trabalhadores”.

Dessa vez, quando o fogo cresça, quando a história volte a colocá-los em uma encruzilhada, quando o poder trema, eles querem estar mais juntos que nunca. Mais preparados que nunca.

Nesta sexta-feira, 29 de maio, o Obelisco vai voltar a ser esse cenário. Voltaram a pisar essas ruas marcadas pela história, para enchê-las de futuro.

Originalmente publicado no La Izquierda Diario Argentina

 
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