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IDEIAS NAS UNIVERSIDADES #1
Lalo Minto: "O que tem sido implementado como EaD, quase sempre, é um tipo de ensino precário"
Faísca Revolucionária
@faiscarevolucionaria

Conversamos com o professor da Faculdade de Educação da Unicamp, Lalo Minto, sobre quais são os projetos de educação à distância implementados no Brasil e como a pandemia do coronavírus está acelerando a implementação dessa forma de ensino.

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Esquerda Diário: No último período vimos um crescimento muito grande dos cursos superiores em EAD, que têm apresentado uma alta taxa de evasão, com uma qualidade muitas vezes precária. Nesses marcos, como você vê esse cenário de expansão do EAD?

Lalo Minto: O cenário de expansão da educação superior nos últimos anos foi de grande concentração na oferta do EAD. Em 2008, essa modalidade representava 12,5% das matrículas e 20% dos ingressos nesse nível de ensino; em 2018 chegou a 24,3% e 40%, respectivamente. Há, portanto, uma tendência clara de uso do EAD como estratégia principal de expansão e ela também se concentra no setor privado. A qualidade desse ensino, ao meu ver, é um grande problema: por um lado, pois a baixa qualidade média do ensino privado já vem sendo contestada há décadas. Ela se expressa nas condições de infraestrutura que as instituições disponibilizam, na forma como contratam os trabalhadores e trabalhadoras, com altas taxas de precarização e perda de direitos, na reduzida presença de pessoal titulado nos quadros docentes e, até mesmo, nas avaliações nacionais, como o ENADE e avaliações de curso, ambas já eivadas de problemas. Não é à toa que algumas entidades profissionais buscam impor limitações à expansão de cursos em suas áreas, mas até esse tipo de pressão (cujo maior exemplo é a medicina) vem perdendo força frente ao poder dos grandes grupos educacionais. Por um outro lado, tem um problema crucial do EAD: a baixíssima ocupação das vagas oferecidas e, dentre aquelas que são ocupadas, a alta taxa de evasão. Portanto, estamos vivenciando um cenário que já era de muitas maneiras conhecido e que, com a crise gerada pela pandemia da Covid-19 e o afastamento social, tende a se agravar, intensificando as formas mais precarizadas de oferta e organização do ensino superior, que também são vistas agora como “soluções” universais. Por essas tendências todas, não há dúvida: expandir o EAD na educação superior significará fortalecer o setor privado com fins lucrativos, a inserção precária de estudantes no sistema, com altas taxas de evasão e, com a crise econômica que vem pela frente, poderá também ampliar as pressões sobre o fundo público para que este, em nome de uma pretensa “democratização”, continue a financiar a rentabilidade dessas instituições.

Esquerda Diário: Qual a relação desse modelo de ensino com a mercantilização da educação? Você acha que existe risco do avanço do EaD ser usado como forma de avançar com a privatização?

Lalo Minto: É uma relação direta e bastante ampla. Os entusiastas do EAD não gostam quando se diz isso, mas é um fato: o que tem sido implementado como modalidade à distância, quase sempre, é um tipo de ensino precário, que tem na lógica da redução de custos o seu motor principal. E este é um dos traços definidores da mercantilização do ensino superior. Não se trata de dizer que há uma identidade necessária entre EAD e mercantilização, mas que, na nossa história recente essa é uma relação que tem sido bastante íntima. Sabemos que, no percurso do desenvolvimento capitalista, o capital faz de tudo para substituir a força de trabalho por ele empregada; ora, quando a educação se torna mercadoria, essa tendência se reproduz da mesma maneira. O que é reduzir custos em educação? É, antes de mais nada, incorporar recursos tecnológicos disponíveis (que são mercadorias, produzidas pelo trabalho humano) para substituir o trabalho vivo necessário na atividade educativa. Em qualquer orçamento educacional observa-se que o principal recurso e, também, o que custa mais é justamente o trabalho humano. Portanto, não podemos nos iludir com aqueles argumentos que afirmam que existe um EAD ideal, que tem grande potencial, mas não é implementado corretamente. E que, ademais, se assim fosse poderia ser até mais caro que o ensino presencial. O que estamos observando agora, ao meu ver, é uma grande oportunidade para que a privatização do setor educacional avance ainda mais pela via do EAD. Essa sinalização vem do próprio setor privado, que já vinha preparando esse terreno há muito tempo, mas também está na esfera pública, na qual a expansão das chamadas formas híbridas, que combinam o EAD com o ensino presencial, também se abre como campo de grande interesse mercantil. Aliás, vai ficando até difícil definir o que significam esses termos (presencial e à distância) na legislação brasileira, pois se autoriza tanta coisa e numa velocidade tão alta que as identidades vão se perdendo. Insisto em um ponto: estou falando do EAD que existe concretamente e que é mais barato, mais enxuto, que demanda menor infraestrutura predial e de recursos humanos, enfim, que possibilita a ampliação da rentabilidade da atividade educacional quando ela é organizada como mercadoria/serviço.

Esquerda Diário: Como foram as movimentações dos setores privados da educação nesse período, como a ex-Kroton (atual Cogna), Laureate, Todos pela educação?

Lalo Minto: É difícil, neste momento, traçar um panorama geral sobre a atuação do setor privado e das entidades e instituições que o representam. Trata-se de um setor heterogêneo e com atuação em diversas frentes; neste exato momento, estão se movimentando rápido e provavelmente buscando abrir novas frentes de negócios. O que se pode afirmar, com segurança, é que há algumas tendências observadas nos últimos anos e que devem se intensificar agora. Alguns episódios recentes ajudam a visualizar isso: temos visto as pressões que esses setores têm feito sobre o MEC para impor seus interesses. Entre estes estava a autorização para que a substituição das aulas presenciais por atividades remotas, à distância, etc. fosse plena, cem por cento, no que tiveram sucesso. Uma outra base dessa pressão é por ampliação dos recursos públicos destinados ao setor, por meio de programas como o Fies e Prouni.

Um segundo episódio se deu como desdobramento da substituição das aulas nas instituições privadas: os estudantes e famílias, além do Ministério Público e do Procon, passaram a demandar o ajuste das mensalidades cobradas, já que o ensino presencial (mais caro) estaria sendo entregue, agora, na forma de um “produto mais barato” (ensino remoto, EAD, etc.). A estratégia do setor, nesse caso, tem sido a de dizer que o que está sendo feito não é EAD e que, ademais, estão gastando mais por conta da necessidade de fazer a transposição. Este é um tema em aberto, mas que dificilmente vai redundar em prejuízo para essas instituições, haja vista seu poder atual. Deve-se observar, porém, que essa “confusão” entre o que é presencial e o que é EAD, também se torna uma estratégia do setor para evitar perdas.

Em terceiro lugar, vimos a rapidez com que os grupos privados de educação, junto com outras empresas que atuam nos mercados que compõem o setor em seu conjunto, se lançaram a oferecer “serviços” (plataformas de ensino, materiais didáticos, consultorias etc.), não raro disponibilizando-os gratuitamente num primeiro momento para, quem sabe, depois de instituída uma certa “cultura” de uso desses recursos, obter contratos, assinaturas, convênios com as instituições e/ou redes de ensino para sua manutenção.

Uma quarta tendência, ao meu ver, pode ser vista no plano mais geral do debate político-ideológico que se abriu e que, quase sempre, também despolitiza a questão: refiro-me ao discurso da inevitabilidade de incorporação das tecnologias digitais, que agora volta com força à cena. Com ele produz-se a identificação entre tecnologias digitais (e, em seu interior, da modalidade EAD) e ensino inovador, moderno. É um grande truque: como se a transposição para o ensino remoto, de uma hora para outra, pudesse resolver todos os problemas da educação presencial e que a pandemia, contraditoriamente, teria vindo a “iluminar” o campo educacional para essa necessidade tão evidente.

Esquerda Diário: Qual sua opinião sobre a Unicamp e a FE estar implementando às pressas o EAD em meio a uma pandemia? Qual deveria ser o papel da universidade e da FE diante da crise política, econômica e sanitária como a que estamos vivendo?

Lalo Minto: Lamento que, neste momento tão importante da história, universidades como Unicamp, Usp e Unesp estejam seguindo caminho distinto de tantas outras importantes universidades brasileiras. Tem prevalecido, ao meu ver, uma preocupação antes burocrática (com os calendários, os prazos, etc.) do que pedagógica e com as atividades-fim das universidades. Já que se falou tanto em ciência nos últimos meses, penso que esse mote poderia ter pautado mais as decisões das instituições: na ciência, não se age com pressa, no impulso; seu “tempo” é outro, diferente dos tempos da administração institucional e, neste caso, da pandemia. Uma coisa, portanto, é tomar a decisão de suspender atividades presenciais, elaborar planos de contingência etc., que devem ser feitos com rapidez. A outra coisa é tomar decisões sobre o ensino, a pesquisa, enfim, a formação das pessoas, o que foi feito num mesmo bloco, como se passíveis do mesmo tipo de reflexão e tratamento. Em suma, acho que faltou usar também do conhecimento acumulado na área da educação e, de modo geral, das ciências humanas. Isso não se confunde com o discurso oportunista sobre a “ciência” como solução para tudo, que tem sido naturalizado nesses tempos de pandemia. A ciência não é neutra, tem vínculo social, perspectiva de classe e orientação política. O papel das universidades e, especialmente, das Faculdades de Educação nesse momento poderia ter sido de subverter um pouco essa forma de abordagem (pautada no pragmatismo e no imediatismo), incluindo não só os problemas relativos ao ensino, mas à própria pandemia e suas consequências sociais.

Vou citar um caso concreto: problemas que se expressam de maneira mais candente com a pandemia, como, por exemplo, a questão da desigualdade do acesso aos equipamentos e recursos necessários para o ensino remoto, não são problemas novos. Tampouco se reduzem ao que alguns chamam de “exclusão digital”. Estamos falando de problemas de fundo, enraizados na nossa formação social. Quem mais poderia problematizar isso e politizar esse debate, na universidade, senão as faculdades de educação? Quando isso não acontece, discursos oportunistas se espalham facilmente, sem obstáculo: mesmo as pessoas críticas, quando tratam desse problema, correm o risco de reduzi-lo à questão do acesso digital, o que é um equívoco. É como se no ensino presencial não ocorresse isso, o que nesse caso também é uma forma de desqualificação, pois se supõe que na forma presencial não existe desigualdade de acesso; que nele tudo é “antiquado” (sala de aula, lousa, livro, giz, ventilador, carteira, etc.). Esse tipo de distorção, ao meu ver, poderia ter tido resistência maior e mais significativa das faculdades de Educação. Não quero ser injusto, pois muito disso tem sido feito e deve ser reconhecido. Mas acho que na Unicamp ficamos devendo nesse quesito.

As universidades, de modo geral, também podem contribuir em diversas áreas, mas não dá para fazer isso se, simultaneamente, a prioridade é cumprir o calendário. Acho que faltou tratar a pandemia como uma situação excepcional, de emergência, em que é plenamente justificável que concentremos nossas energias e potencial institucional em ações que vão no sentido do interesse público. E esse interesse ultrapassa a área da saúde, muito embora, durante a pandemia seja grande a pressão sobre esse setor, por razões óbvias. Mas, da universidade pode provir a elaboração crítica sobre a sociedade como um todo: o porquê de estarmos despreparados para a pandemia, sua relação com o desmonte das políticas sociais para a saúde e áreas afins, entre muitas outras questões.

Esquerda Diário: Quais os impactos do EAD para a qualidade e acessibilidade do ensino público?

Lalo Minto: Eu me disponho a responder a essa questão como alguém que está pensando a partir das políticas para a educação. Os impactos do EAD sobre a qualidade são significativos, especialmente, quando consideramos aquilo que indiquei na primeira questão: que esta é uma modalidade para reduzir custos. Na dimensão pedagógica, preocupa-me o prejuízo causado pela maior ausência de professores e professoras na mediação direta com os/as estudantes. Muitos vêm com aquele questionamento pronto: “ah, mas isso também acontece no ensino presencial”. Bom, mas daí você usa um problema como justificativa para criar outro, o que não me parece adequado. O principal desses prejuízos envolve a perda de autonomia do trabalho docente, que se potencializa com o EAD, numa combinação de fatores (precarização das condições de trabalho, com sobrecarga e necessidade de adaptação a novos formatos; a mudança súbita, não planejada, das atividades; o uso forçoso de materiais e recursos que tendem a gerar padronização dos conteúdos, uma vez que não há tempo e nem se deseja que sejam produzidos com maior autonomia). A tudo isso se soma, é claro, a desigualdade de acesso a tudo isso por parte do público da educação, os estudantes. Um “acesso” que não é apenas às máquinas e serviços necessários, mas a tudo o que significa estar no ensino superior num país como o Brasil, com a nossa história.

A desigualdade precisa ser vista como um processo, que é permanentemente reconstruído; não é apenas um ponto de chegada. As mesmas dificuldades que já operam, por exemplo, no acesso das camadas mais pobres às melhores universidades públicas, podem se intensificar se você adota agora medidas cujo diferencial vai ser justamente o poder aquisitivo das famílias, suas condições de habitação. Também há fatores que não operam apenas no imediato, como o das trajetórias individuais, percursos de formação, de acesso à cultura, enfim, elementos que – sabemos há muito tempo – interferem na distribuição das “oportunidades” escolares. Algumas instituições, porém, parecem ter “esquecido” disso nessa pandemia. É muito provável, portanto, que não vejamos tão rapidamente os impactos negativos de algumas das opções que estão sendo feitas agora. A probabilidade maior é que se diluam ao longo do tempo, de modo que daqui a alguns anos tenhamos um sistema de ensino ainda mais desigual.

Esquerda Diário: Enquanto o ensino privado adotou largamente o EAD improvisado, em algumas universidades públicas vimos existir uma maior tensão para implementar aulas online. Por quê?

Lalo Minto: Sem dúvida houve resistências e, embora a situação ainda esteja em mudança, a maior parte das universidades públicas federais resistiu à adoção imediata das alternativas remotas, sugeridas pelo MEC desde o início e, agora, oficialmente recomendadas pelo Conselho Nacional de Educação. Outra parcela das instituições estaduais também o fez e até no setor privado houve resistência, ainda que em condições bem distintas das que se tem no setor público. Não fiz um estudo sobre isso, mas arriscaria a dizer que a maioria das instituições que decidiram fazer a substituição do ensino por alternativas “remotas”, o fez sem debate ampliado e, provavelmente, sem passar nem sequer pelas instâncias deliberativas com participação de todos os segmentos. Por outro lado, as instituições que resistiram, o fizeram com base em posicionamentos tirados em seus órgãos colegiados, de forma minimamente participativa. Veja, não estou dizendo que esses órgãos são efetivamente democráticos, mas apenas apontando para uma possibilidade: a de que onde houve um pouco de discussão mais ampla, chegou-se a decisões mais adequadas.

O setor privado é um caso à parte: por um lado, porque praticamente toda a estrutura de EAD existente hoje no Brasil já é de domínio privado, portanto, o setor teve menos dificuldade de fazer essa adaptação; por outro lado, porque essa é uma “alternativa” que o setor já vinha buscando há muitos anos. Não foram pegos de surpresa na mesma medida que o setor público, pois esta substituição já é uma política central para eles. A demanda para aumentar para 40% a carga horária que pode ser ministrada a distância nos cursos presenciais, aprovada em dezembro de 2019, é uma mostra disso. Também é preciso dizer que muito pouco do que se chama de “gestão democrática” pode ser encontrado nas instituições privadas, e esperar que a gestão dessas instituições se paute por uma “consciência crítica”, contraria a sua própria existência, orientada para o resultado financeiro. Na lógica do privado, não interromper os “serviços” a qualquer custo justifica, por exemplo, a cobrança de mensalidades regulares.

Esquerda Diário: Você acha que os sindicatos e entidades estudantis poderiam estar cumprindo um papel frente essa situação?

Lalo Minto: Não só acho, como penso que é preciso reconhecer que parte deles está fazendo isso. A conjuntura não favorece essas ações, pois são tantas frentes de luta que fica difícil encontrar qualquer força de mobilização nesse momento, para não falar do afastamento social compulsório. Mas as entidades têm papel fundamental a cumprir. E tento ir além: se esse papel é importante agora, o será ainda mais no pós-pandemia. As perspectivas de luta que se abrem são imensas e desafiadoras. A primeira delas, ao meu ver, será contra a validação como atividades regulares das atividades improvisadas que foram adotadas durante a pandemia. É uma tarefa necessária! Será, portanto, também uma briga contra a possibilidade de maior “hibridização” dos currículos, pois não faltarão tentativas oportunistas de pautar discussões como a de “modernizar” o ensino, de “entrada no século XXI”, entre outros slogans mobilizados nesses debates, quase sempre para aligeirar a formação.

A segunda será contra a precarização das condições de trabalho e seu avanço “forçado” pela condição de excepcionalidade. Será preciso muita luta para que este avanço não se torne duradouro e irreversível.

Uma terceira perspectiva de luta, diria, envolve a gestão interna das instituições de ensino. O distanciamento e a situação de excepcionalidade “incentiva” formas de condução menos democráticas que as já existentes: isso está na forma (reuniões on-line, decisões por e-mail), no ritmo (demandas sempre “urgentes”, pautas que surgem muito rapidamente) e, também, no conteúdo (centralização excessiva de decisões que envolvem toda a comunidade). Assim como há riscos para a qualidade do ensino quando se suspendem as atividades presenciais, penso que também há um risco de retrocesso que tem que ser evitado e combatido do ponto de vista administrativo.

Por fim, uma quarta e mais geral é a das estratégias de embate contra as consequências da crise econômica. Refiro-me às ameaças de cortes salariais, de suspensão de concursos públicos, de contingenciamentos ainda maiores nos orçamentos, da perda de direitos ainda existentes, de demissões de terceirizados/as no setor público e de trabalhadores/as em geral no privado, etc. E esta é a uma briga imensa pois envolverá os setores das burguesias local e internacionalizada, que tentarão sugar ainda mais os fundos públicos em seu benefício, para o que contam com o apoio decisivo do Estado brasileiro.

 
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