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OBITUÁRIO
Flávio Migliaccio, pioneiro do Teatro de Arena, se suicida aos 85 anos, nos legando a luta
Fernando Pardal

O ator Flávio Migliaccio, com décadas de trabalho na televisão, teatro e cinema, foi encontrado morto em seu sítio. Com ele, um bilhete de despedida, marcando um suicídio que denuncia a situação política de ataques da extrema-direita no país: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui.”

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Na foto, Flávio Migliaccio e Chico de Assis em "Chapetuba Futebol Clube", 1959.

Flávio Migliaccio se suicidou, aos 85 anos. É uma morte trágica, que diz muito sobre nossos tempos. Junto a ele, um bilhete de despedida dizia:

“Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje! Flávio”

Flávio era de origem proletária, nascido no bairro operário do Brás em uma família com 17 filhos, e começou fazendo teatro muito jovem. Até conseguir sobreviver do ofício de ator, ele teve profissões como mecânico e balconista.

É expressivo que as notícias de sua morte lembrem de Migliaccio principalmente pelos seus papéis em novelas da Globo, como “Rainha da Sucata” ou “A Próxima Vítima”. Eu prefiro lembrar de Flávio – e acredito que ele também gostaria que fosse assim – pelos trabalhos dele que não figuram nas manchetes, nem aparecerão em muitos de seus obituários na grande mídia. Os que estavam a contrapelo da indústria cultural, que, enfim, foi a opção que permitiu que ganhasse seu pão na profissão nada fácil de ator nesse mundo de mercadorias. Mas são seus outros trabalhos os maiores legados que deixa a nós, que seguimos em luta para acabar com as injustiças que ele denunciou em seu bilhete de despedida.

Foi lá, nos anos de 1950 e 60, onde Migliaccio começou, que eu gostaria de deixar uma lembrança forte de quem ele foi: seu primeiro trabalho de ator foi, após o curso de Ruggero Jacobbi, no Teatro de Arena, o pequenino teatro da Rua Teodoro Baima, no centro de São Paulo, onde um pequeno grupo de jovens tentava desbravar caminhos para um teatro novo no Brasil. E ali, em 1958, Migliaccio fez história junto ao elenco que fez parte da peça “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri. Uma peça de um jovem autor, militante comunista, que colocava pela primeira vez no centro do palco da dramaturgia nacional a luta de classes, os trabalhadores, suas greves e lutas contra a exploração cotidiana. Essa peça, e Mligilacci como parte dela, mudaria o nosso teatro.

Elenco de "Eles não usam black-tie". Foto: Cedoc

Nos anos seguintes, ele faria parte no Arena de outras peças que se escreviam febrilmente à procura de um teatro “nacional e popular”, que botasse em cena a perspectiva dos explorados e oprimidos. “Revolução na América do Sul”, de Augusto Boal, e “Chapetuba Futebol Clube”, de Oduvaldo Vianna Filho, são dois desses trabalhos fundamentais. Foi lá também que escreveu "Pintado de Alegre", cujo programa pode ser lido aqui.

Migliaccio também participou da luta pela criação de um cinema novo. Estreia no cinema aos 25 anos, no filme “O grande momento”, de Roberto Santos, precursor do cinema novo. Com o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, fez parte do filme “Cinco vezes favela” (que pode ser visto aqui), atuando no episódio “Um favelado”, dirigido por Marcos Faria, e colaborando com Leon Hirzsman na elaboração da escrita de “Pedreira São Diogo”. Também foi parte da elaboração de A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Roberto Santos, "Terra em Transe", de Glauber Rocha, e "Todas as Mulheres do Mundo", de Domingos Oliveira. Também foi diretor de "Os mendigos", em 1963.

É bastante emblemático das características da produção cultural da nossa sociedade, que, apesar disso, Flávio tenha se tornado conhecido da maior parte do público brasileiro apenas na década de 1970, quando estrelou no papel de Xerife na série da Rede Globo “Shazan, Xerife e Cia.”. O papel, que interpretou por dois anos, o marcaria para sempre. A Globo, que era em certo sentido o avesso do Teatro de Arena, do Cinema Novo e do CPC da UNE, crescendo como grande emissora nacional sob o auspício da ditadura militar, seria onde Flávio Migliaccio conseguiria se manter como ator profissional pelas próximas décadas.

Algo da amargura de passar décadas trabalhando como ator para a indústria cultural global e seus produtos novelísticos talvez transpareça no bilhete de despedida de Flávio, ao dizer que foram “85 anos jogados fora num país como esse”. Possivelmente ele não se referisse a nada disso, mas é evidente a referência de Flávio ao nosso atual momento político ao dizer que “com esse tipo de gente acabei encontrando”. Gente como Bolsonaro que, não à toa, a Globo ajudou a eleger.

Entrevista com Flávio Migliaccio em 2018

Sem dúvida, não foram 85 anos jogados fora, apesar de ser possível a qualquer um de nós com o mínimo de empatia entender a trágica dor de Flávio ao escrever sua carta de despedida. Bem como o seu ainda mais duro veredito de que “a humanidade não deu certo”. A se julgar pelas tristes manifestações que vimos nas ruas ontem, incitadas por um presidente que idolatra a ditadura militar e desdenha das 7 mil mortes por COVID-19 que já se contabilizam no país. É fato também que “a velhice nesse país é o caos”, quando, pouco depois de uma reforma da previdência que evidencia o quanto a burguesia brasileira despreza os idosos que vivem de seu trabalho, vemos as declarações de Bolsonaro que voltam a afirmar o desprezo pelas vidas dessa mesma população.

Para Flávio “não deu mais”, e por isso ele pede desculpas. Ele não deve desculpas, mas se as pediu é porque de alguma forma ainda sabia que a luta contra esse “caos” merece ser lutada, e que ele fará falta, não apenas a seus parentes, amigos, entes queridos, mas também como alguém que cumpriu seu papel no front em diversos momentos, sendo parte do nosso legado nesse combate. Nós, abalados pela sua perda, e no mesmo dia pela trágica perda de Aldir Blanc, vítima da COVID-19 e desse desprezo do capitalismo pelas nossas vidas, temos de manter a cabeça erguida.

Para um dos nossos que tomba, seja abatido demais pela desesperança para poder seguir, seja por uma pandemia que se alastra no rastro da covardia e da ganância dos capitalistas, temos que aprender a transformar o luto em ódio de classes, e nos fortalecer para seguir lutando. Flávio Migliaccio e Aldir Blanc seguem presentes em cada dia de nossas lutas, e por eles, também, seguiremos em frente.

 
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