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TRIBUNA ABERTA
A democracia no Brasil sobreviveria à maior crise econômica e sanitária?
Evandro Nogueira
São José dos Campos

Não se trata de tentar adivinhar se Bolsonaro dará um golpe, mas sim de se preparar para enfrentá-lo.

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Sim, apesar dos casos de Covid-19 passarem os cem mil no Brasil hoje, a política se sobrepôs à pandemia. Ocorre que o desenrolar político é tão incerto e possivelmente traumático que não só afeta a dinâmica da doença no país, mas pode redefinir a democracia para além da pandemia. A manifestação realizada em Brasília, a terceira em cerca de um mês e meio, em apoio a Bolsonaro, contra o STF e o congresso, além de outras medidas antidemocráticas, foi o passo mais abertamente golpista do presidente até o momento, embora outros aspectos já vinham sendo apontados por diversos analistas nos últimos meses.

Durante a manifestação o presidente disse “chegamos ao limite, não tem mais conversa”, referindo-se aos atritos com os demais poderes, tal como o recente veto do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que impediu Alexandre Ramagem, indicado por Bolsonaro, de assumir a direção geral da Polícia Federal. Além disso, disse também que “nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as forças armadas, que estão ao lado do povo”. A manifestação foi organizada por grupos da extrema direita e teve como importante motivador a ruptura de Sérgio Moro com o governo, fazendo denúncias que podem culminar em abertura de processo de impeachment contra o presidente.

Não sabemos ao certo o motivo da ruptura de Moro com o governo. Obviamente ele sabia onde estava se metendo quando aceitou o cargo de ministro e certamente deve ter material para sustentar um processo de impeachment. A efetivação do mesmo, contudo, é uma questão política e importantes fatores jogam contra isso no momento: a aproximação de Bolsonaro com o “centrão”, berço do fisiologismo, inclusive negociando cargos que estavam com militares; por outro, o apoio popular de Bolsonaro, que embora tenha se desgastado em meio à pandemia e após a ruptura de Moro, ainda é muito ativo e organizado - incluindo aí o peso das igrejas neopentecostais, cujos principais líderes tem sido efusivos na defesa do presidente. Além disso, sua política de cortes de direitos trabalhistas e a sinalização de que Paulo Guedes se mantém forte no governo garantem o apoio de parte relevante do empresariado, como representado pela Fiesp.

Quando o presidente diz que as forças armadas estão a seu lado e não existe uma delimitação convincente por parte das mesmas, negando-o, pode-se supor, no mínimo, que não estão contra ele. Desse modo, um processo de impeachment precisaria contar com muita força de vontade de Rodrigo Maia, impulsionada por denúncias e provas muito escandalosas por parte de Moro. Difícil. Desse ponto de vista, Bolsonaro tem sido exitoso em sua autodefesa. Podemos nos questionar, então - como ele mesmo perguntou retoricamente em certo momento - por que ele, que já foi eleito, daria um golpe?

Há uma tragédia no horizonte

Como parte dos impactos da pandemia, o último Boletim Macro do Ibre/FGV aponta deterioração da confiança em todos os setores da economia, especialmente serviços e indústria. A expectativa é de grande perda de empregos e rendimento, que não impacta homogeneamente entre os trabalhadores. O desemprego deve crescer pelo menos 6% em relação ao ano passado e o rendimento médio do trabalhador pode cair cerca de 8,5% comparado a 2019. Além disso, 70% dos trabalhadores de empresas privadas devem entrar em programas de suspensão de contratos ou redução de salários. Segundo levantamento da revista Piauí, só o setor de bares e restaurantes já demitiu 350 mil trabalhadores desde março e 40% das linhas de produção estão paradas. Como se não bastasse, apesar da inflação baixa, já se registra alta no preço dos alimentos, puxada principalmente pelo aumento da demanda de produtos da cesta básica.

Em outro estudo, o Ibre/FGV faz uma comparação entre a atual crise e a de 2008/2009. Enquanto naquela 38% dos países em desenvolvimento entraram em recessão, dessa vez 75% devem ver sua economia encolhendo. Um fator importante que diferencia os dois momentos é a situação da economia chinesa. Na crise de 2009, mesmo com desaceleração, a China teve um crescimento de 9,4%, que puxava muito as economias emergentes devido a demanda por commodities. Atualmente, não só o desaquecimento chinês é muito maior, deve crescer 1%, mas também tem ocorrido mudanças significativas na estrutura econômica na China, com maior força do consumo interno atualmente, reduzindo os investimento em infraestrutura. Além disso, a condição em que o Brasil chega à crise é bastante diferente nos dois casos.

Tal como vimos nos EUA, no Brasil também vem se desenhando um impacto desigual do Covid-19 sobre a população. Enquanto pretos e pardos representam 23% dos pacientes internados, já chegam a 32% das mortes, lembrando que existe uma enorme subnotificação dos casos, devido a falta de testes aplicados à população. Enquanto a pressão por leitos na rede privada diminui, aumenta na rede pública. A diferença tende a ser grande, uma vez que a população das periferias têm menos condições de fazer isolamento doméstico, seja por condições insalubres nas residências, como falta de ventilação e paredes mofadas, ou também devido à necessidade de se manter trabalhando mesmo durante a pandemia, como forma de garantia de renda e alimentação. Amontoados em transportes coletivos, sem convênio médico e sem testes, a classes trabalhadora será a maior vítima da pandemia.

Questão de sobrevivência

Conforme a deterioração das condições de vida da população se agrave, com o avanço dos casos de contaminação e com o aprofundamento da crise econômica, existe o perigo de que se amplie uma insatisfação popular, trazendo para o cenário político o sujeito que está faltando. A classe trabalhadora, mesmo desorganizada e majoritariamente passiva, como vemos atualmente, causa medo e impõe cautela à burguesia. Os próximos meses são de muita incerteza política, mas do ponto de vista da saúde e da economia, é certo que as coisas piorarão muito, sobretudo para os trabalhadores. Desse ponto de vista, um endurecimento do regime, por exemplo a partir de um golpe de Bolsonaro em resposta a uma tentativa de impeachment, não teria o objetivo imediato de atacar a classe operária, uma vez que essa já vem sendo duramente atacada, sem condições de apresentar resistência. O objetivo atingido seria mais preventivo.

No mundo todo vimos a polarização política ser agudizada após os custos da crise de 2008/2009 serem descarregados sobre os trabalhadores. Em países europeus, setores da esquerda conseguiram capitalizar esse processo e até chegar ao poder, como no caso da Grécia, com o Syriza. Na medida em que a situação atual deve ser mais dramática do que há quase dez anos, principalmente em países como o Brasil, provável novo centro da pandemia, com uma economia já se arrastando, o fechamento do regime pode ser estratégico para a burguesia defender o que mais lhe interessa, as taxas de lucro. Ou seja, uma desarticulação das oposições, com a criminalização e perseguição da esquerda para impedir que essa possa se colocar como porta voz e organizadora dos oprimidos e explorados no enfrentamento da tragédia que se avizinha, passa a ordem do dia.

Nesse momento, há quem se pergunte, “e as instituições, como STF e congresso, deixariam chegar a isso?” Aqui podemos retomar, então, aquela pergunta acima colocada, porque, afinal, Bolsonaro precisaria dar um golpe? Embora já tenhamos apresentado os motivos mais estruturais para isso, a defesa do seu mandato contra um processo de impeachment, parece o pretexto ideal para o âmbito da retórica burguesa e é justamente em torno disso que foi organizada a manifestação de ontem. Vale lembrar, mais uma vez, da polêmica declaração de Eduardo Bolsonaro, em 2018, “bastam um soldado e um cabo para fechar o STF”, retomada, de certa forma, por ele mesmo nessa última manifestação, que expressa da pior forma a fragilidade do sistema democrático brasileiro. Afinal, quem sairia nas ruas para defender aquele bando de privilegiados de toga? Setores organizados pela esquerda - esquerda aqui em sentido amplo o suficiente para incluir o PT - em defesa da democracia, talvez. A depender de como enfrentou o golpe institucional contra si mesma é mais provável que esperem as próximas eleições.

Às organizações e sindicatos de esquerda o momento exige preparação para enfrentar o gradativo endurecimento e um possível fechamento do regime. Não se trata de adivinhar se ocorrerá realmente ou exatamente quando, mas sim de se preparar para enfrentá-lo, uma vez que já existem centenas se preparando para sustentá-lo e o presidente do país diz publicamente, pelo menos há vinte anos, que queria fazê-lo. É necessário discutir a autodefesa e como somente uma drástica transformação do sistema político, que deve deixar de se orientar pela defesa do lucro, podem impedir as mortes pela Covid-19. A crise social que se avizinha deve ser enfrentada como decisiva para os trabalhadores.

 
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