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[Edições ISKRA] Publicamos o “Prefácio à edição brasileira” de “Estratégia socialista e arte militar”
Matías Maiello
Buenos Aires
Emilio Albamonte
Dirigente do PTS, membro do Staff da revista Estratégia Internacional

Publicamos aqui o “Prefácio à edição brasileira” do livro Estratégia socialista e arte militar, escrito especialmente pelos autores Emilio Albamonte e Matías Maiello para o nosso lançamento. Uma arma para enfrentar os tempos que correm.

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Pouco mais de um ano e meio após sua primeira publicação em castelhano, temos a oportunidade de apresentar, graças ao trabalho das Edições Iskra, a edição em português de Estratégia socialista e arte militar. Se, naquele momento, falávamos da imperiosa atualidade da reflexão estratégica, sua importância não fez outra coisa senão aumentar.

Carl von Clausewitz afirmava, com razão, que:

“O primeiro ato do juízo, o mais importante e decisivo que pratica um estadista e general em chefe, é conhecer a guerra que empreende […], é o fato de não a confundir ou querer fazer dela algo que não seja possível dada a natureza das circunstâncias”. [1]

Algo muito similar ocorre quando falamos de estratégia revolucionária. O que têm a nos dizer, desse ponto de vista, os fenômenos políticos e da luta de classes mais recentes? Que tipo de luta é colocada pelo cenário atual?

Revolta e revolução no século XXI

Desde o estouro da crise capitalista de 2008, ocorreram dois grandes ciclos da luta de classes em nível internacional. No primeiro, vimos no “Ocidente” revoltas essencialmente pacíficas, como a dos “indignados” do 15M espanhol. Seguiram-se movimentos como o da Praça Taksim, na Turquia, ou o massivo Junho de 2013 no Brasil. Em situações de crise maior, como na Grécia em 2010, tiveram lugar processos de lutas de classes mais agudos, que foram desviados; enquanto nos cenários mais “orientais” da “Primavera Árabe”, que enfrentaram ditaduras, os processos adquiriram uma forma muito mais violenta.

Atualmente atravessamos um segundo ciclo. Seu sinal de largada foi dado pela irrupção dos Coletes Amarelos na França no final de 2018. superior e mais violenta, com uma repressão que há muito tempo não se via nas democracias imperialistas do “Ocidente”. Esse ciclo vem se expressando com características particulares em diferentes pontos do globo, como no Chile, Estado Espanhol, na Argélia, no Sudão, Haiti, em Hong Kong, entre muitos outros países.

O pano de fundo desses processos não é, em geral, de grandes catástrofes (guerras ou crash econômico), como sucedeu, por exemplo, na primeira metade do século XX, mas sim uma crise rasteira do capitalismo que, desde 2008, passou por diferentes momentos. Essa crise de caráter histórico ameaçou, inicialmente, dar lugar a um cenário catastrófico como o dos anos de 1930 do século passado, o qual só pôde ser evitado graças a uma intervenção estatal massiva para salvar os grandes bancos e corporações, à custa das condições de vida das massas. Essa evolução veio a acentuar um cenário de décadas de ofensiva imperialista e saltos na internacionalização do capital – a chamada “globalização” – através de um processo de desenvolvimento desigual e combinado que foi deixando uma minoria de “ganhadores”, e uma grande maioria de “perdedores”.

Entre os últimos, há dois setores diferentes que protagonizam o ciclo atual da luta de classes. Um que poderíamos chamar, por falta de uma denominação mais ilustrativa, de “perdedores relativos” da globalização, aqueles que de alguma maneira alcançaram algum avanço (ainda que não seja mais do que sair da pobreza) e viram suas expectativas de progresso frustradas pela crise. O outro grande setor, seguindo os termos anteriores, poderíamos denominar como os “perdedores absolutos” da globalização.

Setores empobrecidos, precarizados, quando não desempregados, especialmente da classe trabalhadora, em grande parte jovens, que ficaram virtualmente por fora do “pacto social” neoliberal.

Ambos os setores formam a argamassa que dá corpo aos protestos atuais, sendo a irrupção dos “perdedores absolutos” o que lhes confere um caráter mais violento e explosivo. No entanto, esse segundo ciclo compartilha com o primeiro, enquanto característica fundamental, a primazia da dinâmica de revoltas. Estas se compõem de ações espontâneas que liberam as energias das massas e podem ter níveis importantes de violência, porém, ao contrário das revoluções, não adotam como objetivo substituir a ordem existente, e sim pressioná-la para obter algo. Não há um muro entre revolta e revolução. As revoltas contêm em si a possibilidade de superação desse estágio de ações de resistência ou atos de pressão extrema.

Podem ser momentos de um mesmo processo, que abra ou não uma revolução. Depende de seu desenvolvimento. A ausência de hegemonia operária é determinante para que o movimento se expresse de forma cidadã, apesar de muitos de seus protagonistas serem parte da classe trabalhadora. Prima a heterogeneidade dos movimentos, entre os perdedores “absolutos” e “relativos”. Nela se baseiam a burguesia, o Estado e os meios de comunicação, para dividir e tentar canalizar os protestos. A questão estratégica é como fazer com que essas explosões de ódio e luta de classes que se expressam nas revoltas não terminem esgotando-se em si mesmas, a partir de reformas cosméticas que não mudam nada substancial, ou sendo canalizadas para o interior dos regimes instituídos através de alguma variante política burguesa (seja pela direita ou pela esquerda), ou possibilitando contragolpes e/ou saídas bonapartistas, como de fato ocorreu no primeiro ciclo pós-2008; mas que, ao contrário disso, possam desprender sua potencialidade e chegar a abrir o caminho da revolta à revolução.

Populismo, esquerda e luta de classes

Com o auge de formações políticas como Syriza e Podemos na Europa, e o desenvolvimento dos “populismos” latino-americanos, foram adquirindo popularidade teorias como as de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Em seu recente livro Por un populismo de izquierda, Mouffe insiste em que é urgente para a esquerda atual compreender o desafio do “movimento populista” diante da crise da formação hegemônica neoliberal. Perante os avanços do “populismo de direita”, seria necessário desenvolver um “populismo de esquerda” que seja capaz de disputar com êxito aquela hegemonia [2]. No entanto, não existe uma indagação crítica sobre os resultados desses fenômenos surgidos do desvio do ciclo anterior da luta de classes; sobre como a coalizão Syriza, depois de anos de ajuste contra as maiorias, terminou dando lugar ao retorno da direita tradicional da Nova Democracia; ou sobre como o Podemos passou com mais dor que louvor pelos “ayuntamientos del cambio” [3], se posiciona contrário à luta nacional catalã, e está empenhado em mendigar uma aliança governamental com o PSOE.

Diante de teorias como as de Mouffe e Laclau, para as quais o problema da hegemonia se situa no terreno da articulação discursiva, por fora das bases econômicas da sociedade capitalista e das classes sociais, em Estratégia socialista e arte militar desenvolvemos um enfoque oposto. Partimos das relações de força materiais que atravessam a sociedade capitalista e abordamos a articulação de volumes de força para a luta de classes em busca de uma hegemonia que transcenda os espaços estreitos deixados pela burguesia. Nesse sentido é que revisitamos os principais debates estratégicos do marxismo do século XX e realizamos uma apropriação crítica dos clássicos da estratégia, como Carl von Clausewitz, entre outros.

Na América Latina, essa discussão estratégica se faz mais aguda na atualidade. Tanto pelo renovado desenvolvimento da luta de classes que atravessa a região, como pela anterior chegada do “populismo de direita”, pela via de Jair Bolsonaro no Brasil. Ambos os elementos tornam fundamental extrair as conclusões deixadas pelo ciclo anterior e aquelas colocadas pelos novos fenômenos da luta de classes do ciclo atual. Tais processos são indissociáveis das tendências àquilo que Gramsci chamou de “crises orgânicas” – elementos desse tipo de crise atravessam múltiplos países do mundo.

No caso do Brasil, seu detonador foi a enorme irrupção de massas das jornadas de Junho de 2013. Mas como se chegou daquelas jornadas até a ascensão de Bolsonaro? Esta pergunta é chave não só para o passado, mas também para o futuro. Explicá-lo apenas pelo golpe institucional e pela proscrição de Lula seria insuficiente. Marilena Chauí ensaiou uma resposta: “eu disse em 2013 que isso ia acontecer” [4]. Segundo a intelectual petista, a chegada da extrema-direita ao governo seria uma consequência de Junho. Porém, o certo é que o PT governou durante anos em benefício do capital, assimilando seus métodos, e diante da crise atacou o povo trabalhador, nomeando o neoliberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda para encabeçar os ajustes. Dessa forma, contribuiu para a desmoralização da sua própria base social e abriu caminho à direita, que levantou suas próprias bandeiras “hegemônicas” com a Lava Jato e mobilizou as classes médias (com seus setores mais acomodados à cabeça) para dar o golpe institucional.

O populismo de direita de Bolsonaro é justamente a tentativa de canalizar, mediante um discurso pretensamente “antirregime”, a crise de hegemonia burguesa para acentuar os traços bonapartistas do regime e redobrar a ofensiva sobre o povo trabalhador. Diante disso, não seria a esquerda anticapitalista e socialista, justamente, quem melhor deveria expressar uma alternativa verdadeiramente antirregime, no sentido mais amplo do termo, ou seja, revolucionário? No entanto, enquanto uma parte dela (PSTU) ficou posicionada no campo do golpismo institucional, o principal partido da esquerda (PSOL) se manteve orbitando em torno do PT, sem ser uma verdadeira alternativa.

Dá a impressão de que a esquerda está condenada a ser parte do “ecossistema” de regimes burgueses em crise, através de “frentes antidireita”, “antineoliberais”, ou indo, uma e outra vez, atrás de algum dos campos em que se dividem os capitalistas.

Mas isso não é verdade. De fato, a Frente de Esquerda na Argentina, que vem há 8 anos sendo um polo de independência de classe, anticapitalista e socialista, expressa um modesto exemplo em contrário [5]. Pois bem, por onde passa a alternativa estratégica para o desenvolvimento da esquerda revolucionária hoje?

O novo ciclo da luta de classes que está se desenvolvendo coloca toda uma série de elementos fundamentais que contribuem a responder a essa pergunta. Neste novo prefácio, com a rebelião no Chile em curso, nos concentraremos no processo que marcou o início do novo ciclo em nível internacional, a rebelião dos Gilets Jaunes [Coletes Amarelos], para ilustrar, a partir dos debates que desenvolvemos no presente livro, as encruzilhadas da esquerda revolucionária na atualidade.

O lado “oriental” das democracias “ocidentais”

Nas páginas de Estratégia socialista e arte militar abordamos os desenvolvimentos táticos e estratégicos da III Internacional, particularmente em torno das elaborações de Antonio Gramsci e Leon Trótski, para dar conta da maior complexidade da revolução nos países com estruturas sociopolíticas “ocidentais”. A metáfora geográfica Oriente-Ocidente foi utilizada naqueles debates para dar conta da maior solidez das democracias capitalistas, com suas “trincheiras” e “fortificações permanentes”, que permeiam a “sociedade civil”, diferentemente das estruturas sociopolíticas “orientais”, em que essas mediações são mais fracas ou diretamente inexistentes.

Vista desse ângulo, a irrupção dos Gilets Jaunes em fins de 2018, nada menos do que numa das principais democracias “ocidentais” que existem na atualidade, pegou de surpresa o conjunto do regime francês. As imagens de coletes amarelos no Arco do Triunfo rodeados de nuvens brancas de gás lacrimogêneo percorreram o mundo. Dezenas de jornadas de piquetes e mobilizações, e como resposta um nível de repressão que não se via há muito tempo no interior das democracias imperialistas, com muito mais detenções do que em maio de 1968, com feridos que se contaram aos milhares, dezenas de mutilados, casos de morte, devido aos operativos repressivos.

Diferentemente de importantes conflitos anteriores, como a luta pela previdência em 2010, que contou com mobilizações de mais de um milhão de pessoas, ou a batalha contra a reforma trabalhista de 2017, com paralisações nacionais pouco efetivas e sem continuidade, a rebelião dos Gilets Jaunes conseguiu fazer o governo de Macron retroceder parcialmente, mostrando a potencialidade do movimento. Deixou em evidência um ponto de falha da dominação capitalista em uma estrutura sociopolítica tipicamente “ocidental” como é a V República francesa.

A novidade, como aponta Juan Chingo em seu recente livro sobre os Gilets Jaunes, é o desenvolvimento de elementos “orientais” no interior das estruturas sociopolíticas “ocidentais”. Trata-se da contraface de décadas de ofensiva capitalista neoliberal que alcançaram um enorme avanço sobre as condições de vida da classe trabalhadora e o progressivo desmantelamento do chamado Estado de bem-estar social, que havia sido funcional em tempos de “guerra fria”. Numerosos autores dão conta, à sua maneira, desse fenômeno, como o controvertido geógrafo Christophe Guilluy quando fala do “naufrágio da hegemonia cultural das classes dominantes e superiores” [6].

Configura-se, assim, um enfraquecimento daquelas “trincheiras” típicas do Ocidente, desde o próprio sufrágio universal, passando pelos partidos de massas e os sindicatos, até as variadas “instituições intermediárias”, além da escola ou do tecido associativo, mediante as quais se sustentava a influência da classe dominante para além do aparato de coerção. [7] Esse fenômeno ficou exposto abertamente durante a rebelião dos Gilets Jaunes.

Os grandes protagonistas do heterogêneo e explosivo movimento foram aqueles setores localizados do lado “oriental” da fratura político-social, em grande parte provenientes das regiões periurbanas: toda uma fração da classe trabalhadora, de seus setores baixos e precarizados, empregados tanto no setor público quanto no privado – especialmente em estabelecimentos pequenos –, assim como aposentados, desempregados, junto a uma parte minoritária da pequena burguesia e das classes médias (artesãos, profissionais liberais ou trabalhadores “por conta própria”). Isso explica em grande medida as formas adotadas pelo movimento.

Do protesto à luta e à auto-organização

Tratou-se de uma rebelião daquelas camadas mais invisibilizadas da sociedade francesa. Surgidos por fora dos sindicatos, os Gilets Jaunes viam a si mesmos como “cidadãos”, “povo”, “franceses”, ainda que majoritariamente fossem trabalhadores(as). Quanto a seus métodos, estiveram centrados em afetar a circulação e o consumo – não a produção. A perspectiva da greve geral não esteve presente como parte do horizonte do movimento.

Se, por um lado, isso representou um limite claro do movimento, deter-se unicamente nesse ponto seria um grande erro. Na polêmica sobre a estratégia de desgaste e a estratégia de abatimento, que abordamos neste livro, Rosa Luxemburgo critica Kautsky pela ideia de que nas democracias “ocidentais”, ao contrário do Oriente, as greves e manifestações “sem risco” (como complemento à participação eleitoral), às quais denomina como ações “de protesto”, são a única opção para os trabalhadores na hora de sair para a luta. Frente a elas, Luxemburgo destaca as ações “de luta” ou combativas, que expressam elementos de autoatividade e/ou auto-organização da classe trabalhadora.

Desse ângulo, a rebelião dos Gilets Jaunes ganha outra significação. Suas ações foram muito além das manifestações sindicais rotineiras. Por fora das vias instituídas para a canalização do “protesto social”, as mobilizações “não autorizadas” (ilegais), a multiplicidade de piquetes e acampamentos, e os enfrentamentos com as forças repressivas que tentavam impedir as ações, deram ao movimento sua fisionomia distintiva e seu aspecto antirregime. O que se expressava também como novidade na tendência à união entre o social e o político, cuja principal reivindicação era a renúncia de Macron. Sem dúvida, uma das características mais significativas dos Gilets Jaunes foi o desenvolvimento de elementos de auto-organização. As “Assembleias das Assembleias” de Commercy e Saint-Nazaire foram os pontos mais avançados de auto-organização. Com delegados com mandato e votações majoritárias, foram muito além do alcançado por movimentos recentes como o Nuit Debout [8]; apesar de que não chegaram a constituir uma organização mais estável e hegemônica. Mesmo embrionários, tais elementos são muito auspiciosos e significativos se levarmos em conta que nas grandes ações históricas do movimento operário francês, tanto em 1936 como em 1968, estes não se desenvolveram fortemente, graças ao papel dos aparatos reformistas, em especial o Partido Comunista Francês (PCF).

O caráter heterogêneo do movimento, por sua vez, não impediu que tomassem em suas mãos, junto com a anulação do imposto ao combustível decretado por Macron, demandas sentidas pelo movimento operário que as direções oficiais dos sindicatos deixaram de lado, começando pelo aumento do salário mínimo (SMIC) e das aposentadorias, mas também o restabelecimento do imposto às fortunas (ISF) e elementos difusos de um programa democrático, como a reivindicação de “diminuição significativa” de salários e privilégios dos políticos eleitos e altos funcionários, ou de dar ao povo o direito de pedir referendos sobre todas as leis aprovadas pelo parlamento, etc. [9]

Pois bem, apesar de todos esses elementos que fazem do movimento – com seu caráter social e politicamente contraditório – o principal fenômeno da luta de classes em um país central do último período, e do apoio massivo que ele teve - especialmente em seu início, e persistente entre operários e funcionários públicos –, o regime conseguiu manter virtualmente isolada a sublevação dos Gilets Jaunes do restante da classe trabalhadora e dos setores populares. Diante da impossibilidade de derrotá-lo, a ação do governo, fundamentalmente repressiva, e da burocracia, mantendo os sindicatos à margem, buscou condená-lo ao desgaste.

O “Estado ampliado” e a fratura da classe trabalhadora

Como analisamos no capítulo 9 deste livro, a etapa de “Restauração burguesa”, a partir da década de 1980, modificou em grande medida o cenário que marcou boa parte do século XX. A classe trabalhadora se estendeu como nunca antes na história, porém se tornou muito mais heterogênea e sofreu um amplo processo de fragmentação. A rebelião dos Gilets Jaunes trouxe à tona a profundidade dessa fragmentação, tanto em seus elementos estruturais quanto políticos e até culturais.

Em seu recente livro No Society, Guilluy expõe à sua maneira um mapa dos setores populares marcado pela expulsão de boa parte da classe trabalhadora dos grandes centros urbanos para a periferia, pela “polarização do emprego com a proliferação do trabalho precário, pelo desmantelamento dos serviços públicos para as grandes maiorias, entre outros aspectos”. [10].

Não é o único a fazê-lo, e independentemente das intenções polêmicas do autor, o certo é que toda essa série de elementos estruturais forjados durante décadas de ofensiva neoliberal se converteram em fatores atuantes da luta de classes.

Não é difícil rastreá-los na base do fenômeno dos Gilets Jaunes. O aumento decretado por Macron do óleo diesel (utilizado por 60% da população) destruição do sistema ferroviário (em benefício do trem de alta velocidade interurbano) faz com que grande parte dos assalariados e setores populares expulsos das grandes cidades se vejam forçados a percorrer grandes distâncias de carro para chegar ao trabalho, para fazer um trâmite burocrático ou legal, e mesmo para recorrer a atenção médica.

Por outro lado, nas páginas deste livro, retomamos o conceito de “Estado ampliado” a partir da fórmula de Gramsci do Estado “em sua significação integral: ditadura + hegemonia”, e analisamos como a burguesia no século XX foi muito além da “espera passiva” pelo consenso, e desenvolveu toda uma série de mecanismos para organizá-lo. A estatização das organizações de massas e o desenvolvimento da burocracia no seu interior constituem um dos elementos fundamentais dessa equação, com sua dupla função de “integração” ao Estado e de fragmentação da classe trabalhadora.

Com o retrocesso e o salto na estatização dos sindicatos nas últimas décadas, limitados à organização de uma parcela cada vez mais reduzida da classe trabalhadora, passou ao primeiro plano a função das burocracias sindicais como garantidoras da fratura de classe. Na prova de forças que a rebelião dos Gilets Jaunes significou para o regime da V República, este fator foi decisivo. Não somente as burocracias amarelas como a da CFDT, mas em especial a direção supostamente “combativa” da CGT cuidou de distanciar os setores sindicalizados – que ocupam as “posições estratégicas” [11] – do movimento dos Coletes Amarelos. Com uma atitude de hostilidade mal disfarçada, chamou constantemente à “calma” e ao “diálogo” com o governo, buscando reconduzir a luta de classes aos trilhos institucionais “normais” enquanto avançava a repressão sobre o movimento.

À fragmentação estrutural e ao papel da burocracia, agrega-se outro elemento, que poderíamos chamar de cultural, marcado pela invisibilização de diversos setores da classe trabalhadora e o desprezo cada vez mais marcante da grande burguesia em relação a eles – encarnado na França pelo próprio Macron – e que os meios de comunicação de massas se esforçam para estabelecer como “senso comum”. Uma barreira que foi amplamente utilizada contra os Gilets Jaunes, mas que pode ser encontrada nas mais diversas geografias. Como ilustra Owen Jones, em sua análise sobre a estigmatização da juventude trabalhadora britânica: “‘Agora somos de classe média’, reza o mantra generalizado, todos exceto uns poucos irresponsáveis e recalcitrantes resíduos da velha classe operária” [12].

Uma articulação estratégica de forças materiais

Diante desse panorama de fragmentação, para as diferentes abordagens do populismo, de Guilluy a Mouffe, a articulação política se coloca em termos de espaços político-eleitorais “populistas” (em suas diferentes variantes); ou seja, naturalizando as formas de “organizar o consenso” próprias do “Estado ampliado”. Contudo, os Gilets Jaunes mostraram elementos de uma articulação alternativa: em Commercy e Saint-Nazaire retomaram o caminho da auto-organização que, como tentamos demonstrar neste livro, deverá ser necessariamente aprofundado por qualquer estratégia que se proponha a superar a fratura atual da classe trabalhadora em sentido revolucionário.

Se essa é a primeira conclusão do processo, a segunda é que aquela tendência à auto-organização conta com importantes forças contrárias, as quais, como dizíamos, vão desde o estrutural até o cultural, passando pela própria burocracia das organizações de massas. Pois bem, diante dessa equação, qual foi o posicionamento da extrême gauche francesa?

A Lutte Ouvrière (LO) se manteve à margem do movimento. [13] A corrente dirigente do Nouveau Parti Anticapitaliste (NPA) teve um discurso diferente, com seu principal porta-voz, Olivier Besancenot, apoiando o movimento e defendendo a necessidade de uma greve geral para derrotar Macron. No entanto, como ele mesmo assinala, a “defasagem entre a perspectiva política e a combatividade das mobilizações nos obriga a refletir […] o desencontro entre a esquerda radical e o movimento inédito dos Coletes Amarelos é, em grande parte, revelador dessa situação. Nossa incapacidade para intervir de maneira leal, porém com convicção, unidos e com firmeza no seio desse movimento, é um fracasso que não podemos nos dar ao luxo de reproduzir” [14].

A discussão estratégica é justamente por onde passa a superação daquela defasagem: se se trata de articular algum tipo de argamassa de lideranças parlamentares e burocratas sindicais supostamente “combativos”, porém opostos ao movimento dos Gilets Jaunes, que só poderia ser útil para colocar de pé uma espécie de Podemos francês; ou então de articular uma força material capaz de superar a fragmentação da classe trabalhadora e ter uma política hegemônica. [15]

Desse segundo ponto de vista, o que os Gilets Jaunes puseram em evidência é a defasagem entre a extrema esquerda e o desenvolvimento de correntes próprias nos sindicatos, no movimento estudantil e nas organizações de massas, capazes de articular volumes de força para combater com êxito as burocracias e romper as fronteiras que mantêm cindida a própria classe trabalhadora e seus aliados. E, nesse sentido, os Coletes Amarelos mostraram cruamente o fracasso tanto de toda orientação sindicalista, quanto da estratégia de construir “partidos amplos”, sem programa nem estratégia revolucionários, para participar superficialmente “nos movimentos” tais como são.

A luta pela hegemonia para além do “Estado ampliado”

Na atualidade, as bases sociais e políticas dos regimes burgueses são cada vez mais estreitas. No entanto, como desenvolvemos no livro, retomando aspectos da crítica elaborada por Fabio Frosini a Laclau, isso não significa que existam momentos de “vazio” de hegemonia, como parece sugerir esse último.

As eleições europeias posteriores ao terremoto dos Gilets Jaunes foram uma mostra disso. Impôs-se uma polarização fraca – no quadro de uma importante abstenção – entre a extrema-direita de Le Pen e a “nova direita” de Macron. Por sua parte, o retrocesso da esquerda reformista de La France Insoumise (LFI) de Mélenchon, que combinou uma atitude demagógica diante do movimento com apelos a um “soberanismo de esquerda” e o flerte com os temas da direita, mostrou a impotência da aposta “populista de esquerda” recomendada por Mouffe. Nesse cenário, o Rassemblement National (RN) de Le Pen terminou capitalizando parcialmente a situação, ao ser a expressão do “voto útil” contra Macron.

Quando afirmamos que Commercy e Saint-Nazaire insinuaram um caminho alternativo à articulação em termos de espaços puramente político-eleitorais, também o colocamos nesse sentido. Um desenvolvimento qualitativamente maior das tendências à auto-organização, com organismos mais estáveis e hegemônicos, do tipo das coordenadoras ou assembleias de delegados, capazes de unificar os setores em luta e incorporar a outros, teria possibilitado uma experiência política muito mais ampla ao movimento. Em primeiro lugar, ante o lepenismo que defendeu a ação da polícia e as penas de prisão para os Coletes Amarelos condenados, ou em relação às próprias demandas do movimento, como o aumento do salário mínimo e das aposentadorias, etc. Os organismos de auto-organização são decisivos para que os setores mais avançados do movimento possam influir sobre os mais atrasados, assim como contrabalançar a ação da direita que, precisamente, se aproveita para a sua política das brechas abertas pela fragmentação na própria classe trabalhadora e em seus aliados.

Essas conclusões não correspondem somente a um balanço, mas apontam para questões fundamentais tanto para o futuro do movimento na França, como para abordar o ciclo atual da luta de classes que se desenvolve em diferentes latitudes.

Perante a pergunta sobre como harmonizar diferentes reivindicações e formas de luta dos trabalhadores da cidade e do campo, dos desempregados, das mulheres trabalhadoras, camponeses arruinados, e dos “milhões de necessitados e ignorados pelas organizações reformistas” quando se põem em marcha os grandes processos da luta de classes, Trótski defendia no Programa de Transição: “A história já respondeu a essa pergunta: por meio dos sovietes. Os sovietes unificarão os representantes dos distintos setores em luta. Ninguém propôs outra forma de organização distinta para alcançar esses fins, e parece impossível inventar outra melhor” [16]. Daí que para o fundador do Exército Vermelho não possa existir nenhum programa revolucionário sem a palavra de ordem de “sovietes” ou conselhos [17].

Diante do cenário de fragmentação produzido por décadas de ofensiva capitalista: ou a perspectiva de desenvolver organismos de auto-organização (Conselhos) é uma hipótese estratégica que guia a construção de correntes revolucionárias nas organizações de massas (para lutar por eles contra as burocracias e todos os obstáculos que se opõem a eles); ou a esquerda estará condenada, pela via da rotina sindical, eleitoral e dos “movimentos sociais”, a ser parte do “ecossistema” político-social de regimes capitalistas em decadência, e, no melhor dos casos, ser um componente a mais de alguma articulação “populista de esquerda” ou neorreformista, pavimentando assim o caminho do “populismo de direita”.

Clausewitz dizia que:

Quaisquer que sejam seus diversos aspectos, por distante que pareça da crua explosão de ódio e animosidade do pugilismo, ainda que mil circunstâncias que não são propriamente luta o penetrem, permanece sempre no conceito da guerra que todas as ações que nela aparecem têm sua origem na luta. [18]

Algo similar ocorre com a construção de um partido revolucionário em relação à luta de classes.

Só um partido que se proponha intervir em todos os âmbitos, sejam sindicatos, movimento estudantil, de mulheres, nas eleições, nos parlamentos, ou onde quer que seja com o norte daquela perspectiva “soviética” poderá se propor realmente, diante de processos de radicalização de massas, a articular as forças materiais capazes de unificar a maioria da classe trabalhadora e lutar por uma nova hegemonia sob um programa socialista revolucionário. O contrário, parafraseando Clausewitz, seria tomar o tipo de luta em que estamos empenhados, como algo diferente do que realmente é.

Qual partido para uma perspectiva “soviética” de auto-organização?

As conclusões que fomos desenvolvendo são pertinentes para muito além das fronteiras francesas. No caso da América Latina, é o que vemos claramente na rebelião que atravessa o Chile na atualidade, como expressão mais avançada de fenômenos da luta de classes que atravessam vários países da região. Quanto ao Brasil, a ascensão de Bolsonaro permanece como um chamado de atenção pela direita para a reflexão estratégica, que se conecta diretamente com as lições do ciclo anterior. Contrariamente à tese de Marilena Chauí, segundo a qual em junho de 2013 começou a ascensão da direita, muitos dos debates que fomos desenvolvendo com relação à rebelião dos Gilets Jaunes poderiam ser transladados ao Brasil pós-2013, onde o PT, como dizíamos, terminou abrindo o caminho para a direita a partir dos ataques ao movimento de massas.

Também naquele momento as burocracias do PT e seus satélites (a CUT entre os trabalhadores e a UNE no movimento estudantil) puseram todos os seus recursos para isolar o movimento. Em seguida, quando entraram em cena o movimento dos sem-teto e o movimento estudantil, e o espírito de Junho chegou ao movimento operário, produzindo importantes “greves selvagens” – ou “de luta”, nos termos de Luxemburgo – as quais ultrapassaram a burocracia, também ficaram isolados. Assim como apontávamos no caso da França, esteve ausente entre as principais organizações à esquerda do PT a perspectiva de basear-se nos elementos de autoatividade que atravessaram a juventude e o movimento operário para desenvolver tendências à coordenação e auto-organização.

Isso nos leva a uma reflexão mais geral sobre que tipo de partido é necessário para o desenvolvimento de uma estratégia que supere os limites do “Estado ampliado” e aponte a lhe opor organismos de auto-organização de massas. Retomando as reflexões que fazemos a respeito no livro [19], podemos distinguir três grandes “modelos” de partido do ponto de vista da relação entre classe, partido e direção: o “stalinista”, o “social-democrata” e o “leninista”.

Quanto à relação entre o partido e sua direção, o modelo stalinista se caracteriza por sua extrema centralização, uma disciplina mecânica (burocrática) em que os quadros e militantes não participam da elaboração da política, compelidos a acatar a “linha oficial”, e uma direção bonapartista, geralmente unipessoal. O “social-democrata”, por sua vez, consiste numa organização laxa, onde as instâncias de deliberação política em que a militância se expressa são muito fracas, esporádicas, com escassa influência real sobre a orientação cotidiana, e uma direção efetiva que recai nas “figuras públicas” ou parlamentares que são as únicas com possibilidades de chegar a um auditório de massas.

Apesar de suas diferenças, ambos os modelos têm um ponto em comum no que diz respeito à relação entre o partido e as massas: a classe é uma “massa de manobra” (seja no sentido eleitoral, sindical, militar, ou plebiscitária) de uma direção ou de um “líder”. O “modelo” leninista – não o da caricatura, mas sim o que ficou plasmado na história do Partido Bolchevique antes de sua burocratização – parte de uma aproximação oposta, a classe não é “massa de manobra”, mas sim sujeito de autoatividade e auto-organização. Daí que, ao contrário dos outros modelos, assumam um papel-chave o partido e seus quadros na relação com o movimento de massas.

Em seu lugar, durante a última década, parte das correntes provenientes do trotskismo apresentou como “novidade” mais democrática o modelo dos chamados “partidos amplos”, como o NPA na França ou o PSOL no Brasil. No entanto, esse modelo se assemelha em vários sentidos ao velho modelo “social-democrata”. Funcionam como federação de múltiplos grupos cujos acordos e divergências não se resolvem a partir de uma discussão democrática cotidiana no conjunto da militância, e sua direção efetiva recai nas “figuras” ou parlamentares.

O problema dos “partidos amplos” é que permanecem como frentes eleitorais em forma de partido. Daí que combinem um ecletismo programático e estratégico, com escassa democracia interna efetiva e incapacidade de centralização da intervenção política na luta de classes. Tudo isso conspira contra qualquer tentativa séria de ir além da rotina sindical e eleitoral no interior do regime, e de estabelecer uma relação honesta com o movimento de massas.

Já no próprio O que fazer? Lênin expressa esta concepção colocando como elemento fundamental o desenvolvimento de uma rede de quadros com influência política no movimento de massas através de um jornal como “organizador coletivo”. Um modelo que, como analisamos neste livro, esteve inspirado na social-democracia da década de 1880 e seu jornal Sozialdemokrat [20]. Em 1912 – uma vez fundado o Partido Bolchevique propriamente dito, e em condições de maior legalidade – esta ideia se transformará na experiência do Pravda. Um “jornal político” – dizia Lênin – “é uma das condições básicas para a participação de qualquer classe da sociedade moderna nos assuntos políticos do país em geral”21. Assim, o Pravda se constituiu no órgão da vanguarda operária, com toda uma rede de correspondentes, recebendo 11 mil cartas anuais, e com centenas de círculos que arrecadavam fundos para sustentá-la.

Sem este tipo de antecedentes, seria impossível entender o papel-chave da militância bolchevique se ligando ao movimento revolucionário em fevereiro de 1917, mesmo quando o partido ainda tinha sua direção no exílio. Mais ainda, o giro político de abril, sob orientação de Lênin, ou a própria conquista da maioria nos sovietes nos meses seguintes e, por fim, o triunfo da Revolução de Outubro. No entanto, hoje, aquela concepção “leninista” da relação entre direção, partido e movimento de massas parece esquecida.

Por onde começar?

Como desenvolvemos neste livro, um sem-número de elementos diferenciam a arte militar convencional daquela referida à revolução. Um deles é que a arte da guerra em seu sentido estrito, como assinala Clausewitz, refere-se especificamente à disposição de forças já formadas e à direção delas no combate. Na estratégia revolucionária, não há “meios dados”. A construção da força para empreender os combates não é um dado a priori. Por isso é necessário um trabalho preparatório que antecede em muito a guerra civil ou o início do processo revolucionário, e que deve ser desenvolvido nas mais variadas situações. Daí que seja fatal toda esperança passiva em que a catástrofe do capitalismo, a pura espontaneidade da luta de classes, ou a crise das mediações políticas, por si sós, substituam milagrosamente uma preparação que corresponde ao trabalho da estratégia.

Uma frente eleitoral, por mais virtudes que tenha, não pode suprir – como se depreende da estratégia de “partidos amplos” – a necessidade de preparar um partido de combate, verdadeiramente democrático, de quadros, que seja uma engrenagem fundamental para a luta de classes. Por exemplo, na Argentina, a partir do Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS), somos parte da Frente de Izquierda y los Trabajadores – Unidad, que é uma frente eleitoral com independência de classe e socialista que na atualidade agrupa a grande maioria da esquerda local. Participamos do parlamento nacional, e temos representação em várias assembleias legislativas provinciais e municipais. Também participamos nos sindicatos e nas lutas operárias, assim como do movimento estudantil, de mulheres, etc.

No entanto, toda esta importante atividade não implica por si mesma a preparação de um partido revolucionário. Nesse ponto, é insubstituível a concepção de Lênin de “tribunos do povo”. Ela se refere não só à necessidade dos revolucionários de ecoarem as mazelas de todos os explorados e oprimidos da sociedade, mas também à prática de “generalizar todos esses fatos e oferecer um quadro de conjunto” [21] contra o Estado e o capitalismo.

A partir disso é necessário “moldar”, através de uma agitação política, a vanguarda e setores de massas para uma perspectiva revolucionária. Quando Lênin concluía, em O que fazer?, colocando a necessidade de um jornal que “se difunda regularmente às dezenas de milhares de exemplares em toda a Rússia”, e agregava “Sonhemos com isso!”, não se tratava de um sonho vão. Ao contrário, inspirava-se, como dizíamos, no que a social-democracia alemã tinha feito com a publicação do Sozialdemokrat. Ele se referia à possibilidade de ter um meio para levar adiante aquele objetivo de transformarem-se em “tribunos do povo” através de uma agitação ampla e sistemática. O desenvolvimento posterior do Pravda não faria mais do que levar esta colocação a um novo nível, chegando a setores de massas diariamente.

O método de Lênin mantém, hoje, toda a sua vigência. As novas tecnologias, longe de contradizê-lo, o potencializaram até níveis que o próprio Lênin não teria sequer imaginado. O desenvolvimento da internet, das redes sociais e das plataformas digitais, mesmo com os obstáculos impostos por seu controle capitalista e pela tirania do “algoritmo”, levantam novas possibilidades para a agitação política revolucionária, para a sua massividade, seu desenvolvimento “em tempo real” e sua difusão nacional e internacional, permitindo colocar as ideias à frente do “aparato” para o desenvolvimento de correntes militantes que busquem manter um diálogo político permanente com setores de massas.

Com a rede de portais La Izquierda Diario – da qual fazemos parte os autores deste livro –, que atualmente conta com edições em 8 idiomas e em 12 países [22], estamos buscando, na medida de nossas forças, retomar aquele método “leninista”, utilizando essas novas condições. Esse método vem mostrando sua potencialidade para chegar a um setor de massas (e não limitar a agitação política aos períodos eleitorais) diante de cada processo importante, como, por exemplo, o Esquerda Diário, no Brasil, que em meio à crise da ascensão de Bolsonaro chegou a 6,5 milhões de visitas em um mês; ou o Révolution Permanente da França, que durante a irrupção dos Gilets Jaunes superou 2 milhões de visitas mensais e foi uma referência para a esquerda do movimento; ou com a rebelião chilena, onde La Izquierda Diario do Chile chegou a 2 milhões de visitas em um mês.

Trata-se, por um lado, de ir contra a ideia – tipicamente reformista – de reduzir a agitação política de massas a uma prática intermitente e exclusivamente “por cima” durante as eleições a cada dois anos, para, em seguida, no caso das correntes que possuem parlamentares, limitar-se à agitação a partir do parlamento, a qual, por si mesma, alcança somente um reduzido setor politizado. Por outro lado, trata-se de superar a intervenção puramente sindical ou setorial “por baixo”, separada da atividade fundamental para toda organização revolucionária de “tribunos do povo”. E por sua vez, de desenvolver permanentemente uma luta política contra os partidos da burguesia diante de setores de massas, tanto em oposição às variantes de direita quanto às de conciliação de classes (como, por exemplo, o PT no Brasil ou o kirchnerismo na Argentina), sem a qual não há preparação política possível.

Evidentemente, na concepção de Lênin, a agitação política sistemática e o desenvolvimento de instrumentos como o Iskra num momento inicial, ou o Pravda posteriormente, abrem um caminho que, necessariamente, como desenvolve especialmente em seu folheto Um passo à frente, dois atrás [23] deve ser acompanhado pelo desenvolvimento de correntes próprias nas organizações de massas. A rebelião dos Gilets Jaunes deixou colocado justamente que sem frações nos sindicatos capazes de enfrentar a política de isolamento da burocracia e ir em busca dos setores menos organizados – e em muitos casos, mais explosivos - através do impulso à auto-organização e táticas como a Frente Única, é impossível propor-se seriamente a superar as fissuras que atravessam a classe trabalhadora e desenvolver uma política hegemônica.

Com efeito, na atualidade, existem em diferentes países múltiplas correntes que se reivindicam socialistas revolucionárias, que contam com militância, quadros, intelectuais e recursos (inclusive a partir da atividade parlamentar) que poderiam perfeitamente, com o estado atual das novas tecnologias, propor-se a retomar aquele método “leninista” e desenvolver publicações diárias para chegar a milhões com uma agitação revolucionária.

No entanto, nenhuma parece se propor a replicar aquele gesto leninista do O que fazer? e dizer “Sonhemos com isso!”. Claro que o rotineirismo eleitoral e sindical se opõe a gestos como este, e também ao leninismo, por certo. O próprio fundador do Partido Bolchevique, após escrever aquelas palavras, dizia “‘É preciso sonhar!’ Escrevi essas palavras e me assustei” pensando no tipo de respostas que receberia dos representantes daquele rotineirismo que busca afogar qualquer iniciativa revolucionária.

Assim como naquele momento, hoje também se trata de buscar um caminho para contribuir para a construção de partidos revolucionários. Sabemos que é um caminho difícil, não carente de obstáculos e derrotas, porém, como mostrou a irrupção dos Gilets Jaunes, e que processos como o chileno voltam a colocar sobre a mesa em nossa região, avançar nesse sentido é condição fundamental para poder se ligar aos novos fenômenos da luta de classes e desenvolver toda a sua potencialidade. Estamos convencidos de que o futuro de uma esquerda revolucionária no século XXI passará necessariamente por aí.

A 30 anos da queda do muro de Berlim, um novo cenário internacional está se delineando. A crise histórica do capitalismo que se expôs em 2008, o retorno do nacionalismo das grandes potências e o ciclo de revoltas violentas que percorre o mundo, levantam a perspectiva de um ressurgimento do movimento revolucionário, para o qual é fundamental reatualizar as condições subjetivas, depois de décadas de ofensiva capitalista e retrocesso do movimento operário. Sobre esse novo começo é que o presente livro se propõe a refletir, com o olhar para o futuro, buscando extrair as conclusões de um século de história do movimento revolucionário.

Para finalizar estas linhas, queríamos agradecer muito especialmente a Edison Urbano e a toda a equipe das Edições Iskra, sem os quais a presente tradução e edição de Estratégia socialista e arte militar não teria sido possível.

Buenos Aires, dezembro de 2019

 
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