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TRIBUNA ABERTA
A saúde como mercadoria: apontamentos acerca da crise sanitária brasileira
Kleiton Nogueira
Doutorando em Ciências Sociais (PPGCS-UFCG)

Para compreendermos o processo de crise sanitária que se instalou no mundo a partir da proliferação do COVID-19, é importante que tenhamos em mente um dos motes mais significativos do legado marxista: a análise concreta da situação concreta.

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Essa vinculação entre saúde e condições materiais, ou melhor, sobre a economia política mundial nos coloca o desafio de pensarmos a realidade brasileira a partir de sua formação econômico-social, expurgando assim, os modelos áridos da burguesia, que ao tentar tratar a temática pelo reducionismo técnico, inviabiliza ações programáticas para o combate a disseminação do vírus.

Dentro desse quadro, para o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro a pandemia do COVID-19 traz desafios e problemas concretos. Um dos primeiros pontos que gostaríamos de chamar atenção é que o SUS desde o seu nascedouro na década de 1990 convive com um processo de subfinanciamento crônico, que inclusive foi mantido pela administração petista no decorrer dos seus treze anos. Cabe salientar um segundo ponto associado a esse fenômeno, se antes já sofríamos com a ausência de recursos, ou nunca tivemos os recursos necessários para a plena efetivação do sistema, com a Emenda Constitucional número 95 (EC/95) aprovada no governo golpista de Michel Temer, o congelamento de gastos sociais por um período de vinte anos traz sérias consequências quando passamos a analisar a necessidade de aumento de gastos per capita devido ao aumento no quadro demográfico brasileiro, além da própria especificidade qualitativa desse crescimento, uma vez que a tendência é de um envelhecimento populacional e respectivamente um maior nível de gastos em saúde devido aos problemas crônicos que essa parcela da população sofre, tais como: diabetes, problemas cardíacos, respiratórios, dentre outros.

Frente a um sistema com pés de barro, que apenas da passagem do ano de 2019 para o de 2020 perdeu um total de 20 bilhões de reais, o governo Bolsonaro através do ministro Ricardo Mandetta colocaram em prática o programa Previne Brasil, que implica em uma nova reformulação na lógica de repasses de recursos advindos da esfera Federal para a Atenção Básica à Saúde, o que implica em termos práticas que os municípios apenas receberão recursos com base na quantidade de usuários cadastrados nas Unidades Básicas de Saúde, e, não mais através da população total do município. Basicamente o Ministério da Saúde promove com essa lógica política a setorialização da atenção básica nas camadas mais pobres, desmontando ainda mais um serviço que está na ponta do SUS, no contato direto com as famílias por via de uma lógica de promoção e prevenção à saúde.

Portanto, diante do atual quadro de crise sanitária vinculada ao COVID-19, reforçamos a ideia que historicamente o SUS vem sofrendo com o processo de desmonte. Esse entendimento é crucial para que possamos nos lançar no campo político sem perdermos o fio histórico-concreto dos ataques sofridos pela saúde pública no Brasil, que tendem a se agravar com o recente giro à extrema-direita na superestrutura política com as medidas ultraliberais tomadas pelo governo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes.

Do ponto de vista estrutural o diagnóstico do SUS não pode deixar de levar em consideração sua capacidade de atendimento existente através dos equipamentos de saúde. Com base no Cadastro Nacional de estabelecimentos de Saúde (CNES) o Brasil basicamente diminuiu sua capacidade de internação em leitos públicos, ou seja, em Janeiro de 2007 o Brasil detinha um total de 5926 desses estabelecimentos, caindo para 5720 em Janeiro de 2020. No decorrer de trezes anos o Brasil diminuiu sua capacidade de internação, mesmo com o fato do crescimento demográfico e do envelhecimento da sua população. O Gráfico a seguir demonstra essa tendência decrescente que acabamos de afirmar:

Gráfico 01 – Estabelecimento do SUS que fornecem internação

(Fonte: Elaboração própria com base no Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde, 2020.)

Esse decréscimo pode implicar em duas condições hipotéticas: a primeira associada ao fechamento de unidades de internação com base numa mudança de política associada à promoção e prevenção da saúde, o que questionamos, uma vez que tais medidas exigem alterações profundas de um pensar em saúde para além da esfera mercadológica, ou, o segundo caso que hipoteticamente nos parece mais lógico, ou seja, que a diminuição de recursos para a área da saúde pública vem impactando de forma negativa na oferta de equipamentos de saúde pública.

Um dos problemas que percebemos nessa situação, sem cairmos no negacionismo bolsonarista e muito menos do alarmismo da mídia burguesa é que em um cenário de maior contágio e proliferação maciça, esses estabelecimentos serão demandados, uma vez que de acordo com a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) a capacidade de Contágio (RO), que representa o número médio de contagiados por cada pessoa doente é de 2,74, uma pessoa que contraiu o COVID-19 estatisticamente transmite o vírus para outras duas pessoas. Esse índice é maior do que a pandemia de influenza do H1N1 que abalou o mundo em 2009, que tinha uma taxa de RO de 1,5. Outro grande problema é a capacidade de incubação do vírus, a pessoa que contraiu o COVID-19 apresenta em média 5 dias para que os sintomas comecem a surgir, que podem ser: febre, tosse e dificuldade de respirar. Esses sintomas podem se agravar em pessoas com doenças crônicas como diabetes, cardiopatias e mesmo a população da terceira idade com um sistema imunológico mais frágil.

É importante chamar a atenção para a configuração geográfica brasileira, um país de dimensão continental com diferentes formações morfoclimáticas e com diferenças regionais consideráveis em termos políticos, sociais e econômicos. Todos esses fatores implicam em um nível de dificuldade maior, tendo em vista que os níveis de respostas podem ser diferenciados, assim como a própria forma de propagação viral se estabelece, uma vez que o COVID-19 não respeita fronteiras e limites geográficos. Dessa forma, cabe salientar que diante de uma inversão em nossa pirâmide etária e do aparecimento de novos casos, e diante da necessidade de respostas imediatas a um sistema que historicamente vem sofrendo com parcos recursos, a efetividade dos procedimentos pode não corresponder à demanda temporal exigida pela sociedade de uma forma geral.

Outro quesito importante quando tratamos de epidemias é o quantitativo de Unidades de Terapias Intensivas (UTI) existentes. De acordo com matéria da Agência Pública o Brasil possui uma distribuição desigual do número de UTIs quando comparada com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Com acesso à Sala de Apoio à Gestão Estratégica (SAGE) do Ministério da Saúde a Agência evidenciou que mais da metade das regiões de Saúde do Brasil possuem menos de uma UTI para cada 10 mil pessoas. Existem também no Brasil pontos cegos, sem UTIs, como é o caso de 123 regiões de saúde conforme podemos observar na ilustração a seguir:

Imagem 1 – Espacialização geográfico dos leitos de UTI no Brasil

(Fonte: Agência Pública, 2020).

Podemos observar através da ilustração que a distribuição espacial dos leitos de UTI segue uma lógica meridional e de disparidade intrarregional histórica que existe no país. Dentro de uma lógica geográfica e até mesmo de organização e sistematização espacial de equipamentos de saúde, entendemos que nem todos os municípios do Brasil deveriam possuir UTI nas condições importas pelo capitalismo, e que a divisão socioterritórial através das regiões de saúde serve a necessidade de uma melhor espacialização e distribuição desses equipamentos através de redes de integração. Contudo, o fato de termos regiões sem a quantidade mínima de UTIs implica novos desafios ao SUS, uma vez que, se em termos probabilísticos o COVID-19 venha a se alastrar em proporção geométrica, um maior número desses leitos será necessário.

O grande problema é justamente essa concentração sócioespacial, em termos estatísticos o Brasil possui uma razão de 2,3 leitos de UTI para cada 10 mil Habitantes, contudo, devido à alta concentração, especificamente no eixo centro-sul, qualitativamente essa correlação implica em vazios regionais conforme mostramos na ilustração anterior. Cabe salientar que a contabilização realizada pela Agência Pública levou em consideração tanto leitos do SUS quanto os leitos privados. Essa disparidade intrarregional também se materializa no tocante a distribuição de equipamentos essenciais para a assistência de pacientes com o COVID-19, que são justamente respiradores/ventiladores. Com base no CNES/SUS identificamos uma lógica semelhante a da distribuição das UTIs como podemos observar no gráfico a seguir:

Gráfico 02 – distribuição dos respiradores/ventiladores pelo Brasil em fevereiro de 2020

(Fonte Cadastro Nacional de Estabelecimento de Estabelecimentos de Saúde, 2020).

Mais uma vez a região Norte do País aparece como a que menos possui esse tipo de equipamento, sendo seguida da região Centro-oeste, Sul e Nordeste. O Sudeste do Brasil é a região que mais possui uma concentração em termos desse tipo de recursos, o que também se vincula com o gráfico anterior da quantidade de leitos de UTIs distribuídos espacialmente. Cabe destacar que mesmo a densidade demográfica de regiões como a Norte seja diferente das demais, o risco dos vazios regionais em temos de equipamentos de saúde implica que a letalidade do vírus poderá ser maior devido à negligência estatal na prestação de atendimento em tempo hábil, o que poderá afetar também o nível de proliferação nesta região. Outra informação pertinente a ser mencionada diz a supremacia do setor privado na oferta de leitos de UTIs, com um total de 55% desses leitos, o setor privado acaba tomando a dianteira nesse processo, o que poderá implicar na seletividade dos atendimentos.

Aqui cabe uma reflexão mais profunda acerca desses elementos que conseguimos reunir, o primeiro diz respeito à própria ação do Governo Federal através do Ministério da Saúde em ir ao Congresso pedir uma total de cinco bilhões de reais para serem utilizados na saúde conforme matéria publicada no portal G1. Diante do histórico de subfinanciamento na saúde pública, essa medida se apresenta de forma demagógica, mais uma vez salientamos que apenas no ano de 2019 o SUS deixou de receber cerca de 20 bilhões de reais, ou seja, a conta exigida por Mandetta não é compatível cm a urgência concreta da crise sanitária brasileira.

Um segundo fator diz respeito aos oportunismos que as castas políticas brasileiras, em espacial ao PT, que em seu suposto passado, se orgulha com medidas como os mais médicos (que são válidas, levando em consideração a realidade brasileira), mas, que ao mesmo tempo continuou a sangrar os recursos do SUS para o pagamento de juros da dívida pública brasileira através de mecanismos como a Desvinculação das Receitas da União (DRU) alimentando um círculo interminável de parasitismo capitalista.

Dessa forma, precisamos ter ciência que tais problemas enfrentados pelo SUS não partiram do céu como um raio a iluminar a relva, são fenômenos históricos e concretos que sempre estiveram presentes, mas que em tempos de crise sanitária parecem se elevar como a descoberta da roda pelas castas políticas e reformistas do Brasil. Desse ponto de vista é preciso que a classe trabalhadora brasileira tenha em mente elementos bem claros: a exemplo da forma como a saúde vem sendo tratada no Brasil, como uma mercadoria, e acima de tudo, da forma como os mais variados governos sempre priorizaram outras demandas do que aquelas vinculadas a saúde dos trabalhadores, de antemão, trazemos nesse pequeno ensaio alguns elementos concretos que o Esquerda Diário divulgou nessa terça feira (17 de Março):

1. Testagem massiva para todos que queiram, com centros de testes por bairro;
2. Multiplicar urgentemente os leitos de UTI com respiradores;
3. Contratação de trabalhadores da saúde terceirizados e desempregados como efetivos, além de estudantes da saúde com treinamento.
4. Centralização de todo o sitema de saúde sob controle dos trabalhadores da saúde, incluindo toda a rede privada.;
5. SUS 100% estatal administrado pelos trabalhadores da saúde e cientistas!
6. Readequação da produção e expropriação de toda empresa que possa estar em função desse plano e emergência, sob controle dos trabalhadores!
7. Proibição de demissões enquanto dure a epidemia e cobertura de 100% dos salários e direitos de todos os afastados!;
8. Impostos progressivos sobre as grandes fortunas!
9. Pelo fim da lei do teto dos gastos e pelo não pagamento da dívida pública!

Podemos fazer o exercício de pensarmos essas medidas através de três eixos principais: Estatização de todo o sistema de saúde, com desapropriação dos capitalistas que vivem da exploração do sofrimento alheio através do mercado privado de saúde; Combate a lógica irracional do capitalismo de tratar a saúde como uma mercadoria, vulnerável às curvas de oferta e demanda de uma economia política ultraliberal. Não podemos mais aceitar que a saúde seja fonte de lucro e geração de mais valor através da imensa cadeia produtiva que se estende através da indústria farmacêutica e de equipamentos de saúde; e um terceiro elemento vinculado à própria capacidade de autogestão dos trabalhadores diante do SUS. É preciso que a verticalização da gestão seja questionada, que o cuidado com o SUS através do privilégio de uma casta de tecnocratas que em muitos casos, ficam apenas nos gabinetes e não vivenciam a prática cotidiana do Sistema seja ponto de questionamento e ação.

Seguindo o pensamento do revolucionário bolchevique Leon Trotsky no seu programa de transição, entendemos que em termos materiais não apenas o Brasil, mas o Mundo tem plena capacidade de promover saúde à classe trabalhadora de forma digna e humana, o capitalismo é que trava os avanços científicos pela mesquinharia na busca de lucros. Dessa forma, avaliamos que essas medidas transicionais servem como mote para pensarmos em um modo de enxergamos e tratarmos a saúde que supere a irracionalidade capitalista e que vise justamente à efetivação de toda capacidade humana em lidar com os problemas de saúde que possam vir a surgir.

 
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