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ELEIÇÕES EUA
Iowa e a farsa da democracia estadunidense
Tatiana Cozzarelli
Ezra Brain (Left Voice)

Os resultados do Caucus de Iowa revelam um Partido Democrata em crise e mostram que a democracia é apenas uma palavra vazia para os democratas.

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Após quase dois anos e meio de preparação para a temporada das Primárias Democratas, os eleitores de todo o país esperavam ansiosamente os resultados de Iowa, que foi sede da primeira eleição da temporada. Porém, mais de um dia depois de se encerrarem as assembleias eleitorais de Iowa, ainda não se declarou um ganhador final, o que desatou o caos no Partido Democrata e os expôs ao ridículo.

Na terça a tarde, o Partido Democrata de Iowa (IDP) finalmente publicou seus resultados parciais da eleição, mas apenas incluindo em torno de 60% dos colégios.

Surpreendentemente, apesar da clara onda de apoio a Sanders, o Partido Democrata de Iowa informa que não é Sanders, mas Pete Buttigieg quem está no topo da tabela de classificação.

No momento em que estamos publicando este artigo, Bernie Sanders tem uma vantagem de em torno de 1.200 votos na recontagem de votos populares. No entanto, de alguma maneira, o IDP coloca Pete Buttigieg na cabeça dos delegados estatais, o fator que em última instância determinará o resultado. Se atribuiu a Buttigieg 26,9% dos delegados, enquanto Sanders apenas 25,1%. Apesar de todo o protesto sobre a vitória de Hillary Clinton no voto popular contra Donald Trump em 2016, os democratas têm conseguido criar um sistema em Iowa tão atrasado e antidemocrático quanto o desapreciado colégio eleitoral.

Em Iowa, se colocou em evidência mais uma vez o caráter profundamente antidemocrático do sistema eleitoral estadunidense. Isso se deve a um sistema de “caucus” (conclave, assembleia ou reunião eleitoral) em Iowa que, semelhante ao do colégio eleitoral, representa uma maior vantagem dos distritos rurais em detrimento das cidades e populações universitárias. Assim, enquanto Sanders ganhou mais votos na primeira e última rodada, terminou com menos delegados que Buttigieg. Ainda que alguns no Partido Democrata afirmem querer abolir o colégio eleitoral, seu próprio sistema de primárias é igualmente antidemocrático. Esse sistema é um embuste aos votantes que passaram mais de duas horas de seu dia, depois do trabalho, ocupando-se em votar. Os principais meios de comunicação estão apoiando a fraude: na quarta-feira pela manhã, os principais canais de notícias anunciaram Buttigieg como o ganhador em Iowa, enquanto apenas mostravam ocorrer uma recontagem de votos populares.

Uma eleição no mínimo pouco clara

Os resultados de Iowa estão cercados de dúvidas. Depois de encerrarem as assembleias eleitorais, o IDP misteriosamente deixou de informar os resultados porque queriam fazer um “controle de qualidade”. O motivo é que o aplicativo para smartphones que a Shadow Inc. usou para fazer a recontagem se mostrou defeituoso e o IDP se viu obrigado a fazer uma recontagem manual. O mistério não termina aqui. A empresa matriz da Shadow Inc., Acronym, tem diversos vínculos com o establishment do Partido Democrata. A companhia foi fundada pela esposa de Michael Halle, um antigo chefe de campanha de Hillary Clinton em Iowa. Halle agora serve como assessor da campanha de Buttigieg. David Plouffe, ex-diretor de campanha de Obama, também é membro da junta da Acronym. A empresa recebeu dezenas de milhares de dólares da campanha de Buttigieg por serviços de software tanto recentemente como no passado mês de julho.

Era altamente suspeito então que, com 0% dos locais divulgados, o prefeito Pete Buttigieg tenha se anunciado “vitorioso” no Caucus de Iowa. Com as revelações dos laços entre sua campanha e a Shadow Inc. vindo à luz, a hashtag #MayorCheat começou a se popularizar no twitter. Mais tarde na noite, a campanha de Sanders publicou sua própria pesquisa interna que colocou Sanders lá em cima.

A suspensão da publicação dos resultados do caucus se produziu depois de uma onda de informes iniciais que mostravam Sanders com um rendimento superior e Biden com um rendimento inferior, o que levou a acusações circulando nas redes sociais de elementos fraudulentos das eleições. Até mesmo os meios principais, como a CNN e a NBC, criticaram duramente o IDP por mutilar o processo da eleição. Muitos começaram a especular que Iowa já não seria a primeira contenda da nação em futuras primárias. Mas, na terça-feira pela manhã, a CNN e a MSNBC disseram que o IDP era incompetente e que foi Buttigieg, e não Sanders, quem se viu privado de gerar o impacto necessário para catapultar sua candidatura. Está claro que o establishment democrata e os meios liberais buscam qualquer alternativa que não seja a de Sanders, particularmente com a queda de Joe Biden.

Crise no Partido Democrata

Tudo o que se refere à eleição em Iowa, desde os resultados até o processo, demonstra a crise em que se encontra o Partido Democrata. No caminho até Iowa, a corrida tem sido definida por um grande número de candidatos competindo, por um lado, porém com um número bastante estável de nominatas: Joe Biden e Bernie Sanders. Sanders e Biden eram ambos figuras políticas “de marca” antes de anunciar suas campanhas e ambos representam alas do partido Democrata - a ala progressista e o establishment, respectivamente.

Durante a maior parte da campanha, Biden havia liderado as pesquisas, mas, nos dias prévios à assembleia eleitoral de Iowa, Sanders estava subindo constantemente. Isso se deu, em grande parte, devido às tentativas da campanha de Warren de apelar ao establishment. Warren era a única representante da ala progressista do partido na disputa e dividia o voto com Sanders. No entanto, depois de Warren retirar a proposta do Medicare for All [seguro de atenção médica gratuita, NdT], os progressistas começaram a deixar o campo de Warren pelo de Sanders. Uma pesquisa de entrada realizada pela CNN, na segunda a noite, mostrou que 3 de cada 5 votantes de Iowa queriam substituir o seguro médico privado por um plano gerido pelo governo.

Apesar de liderar as pesquisas desde que anunciou sua campanha, o establishment democrata estava preocupado com a viabilidade de Biden. De fato, um dia antes da eleição do Caucus de Iowa, John Kerry (seguidor de Biden e um dos líderes do establishment) foi pego em uma gravação especulando sobre candidatar-se para assegurar que Sanders não ganharia, um plano de que logo se retratou. Havia, no percurso até Iowa, um sentimento real entre muitos de que Biden era mais débil do que parecia no papel, devido, em parte, à preponderância de outras opções moderadas na eleição. O fato de que a direita do partido não havia encontrado um só candidato atrás de quem se enfileirarem fez com que o panorama pré-Iowa parecesse positivo para Sanders.

Sanders deixa nervoso a todo o mundo porque pode ganhar a nomeação democrática

Os partidários de Sanders estão indignados pelos resultados das reuniões de segunda-feira em Iowa. Segundo todos os cálculos, ganhou o voto popular… Uma história que está se desenrolando e que posteriormente será enterrada enquanto escrevemos estas palavras. Realmente, o desastre de Iowa pode acabar dando um impulso à sua campanha, já que animará os partidários a mobilizarem-se em New Hampshire, Nevada e mais além. Porém, o que deveria ser evidente para todos nós é que o Partido Democrata não tem intenção de respeitar a vontade democrática dos eleitores.

Os resultados do caucus de Iowa são desastrosos para o campo de Biden e quiçá para o establishment do Partido Democrata. Biden, que foi o favorito nas pesquisas com Sanders dias antes da reunião, terminou em quarto, atrás de Warren e apenas a frente de Klobuchar. Essa é uma humilhante derrota para o ex-vice-presidente que afirmou continuar o legado de Barack Obama. Resta saber se trata-se ou não de um obstáculo no caminho inevitável de Biden para reclamar a nomeação, ou se trata-se de um verdadeiro colapso do principal candidato do establishment.

Buttigieg pode ser uma estrela em ascenso para o establishment do Partido Democrata, homogeneizando o setor “qualquer um menos Sanders” do partido. Ao mesmo tempo, pode sair de Iowa com uma reputação manchada como o #MayorCheat [significa “prefeito fraude” e foi a hashtag que se tornou trending topic nas redes sociais na terça-feira, NdT] que declarou vitória antes mesmo de qualquer voto ter se tornado público. Ainda assim, não está claro se sua vitória em Iowa é representativa de uma mudança de orientação no partido que se afasta de Biden e se volta para Buttigieg. Tampouco é claro se seu desempenho em Iowa foi apenas o produto de como funciona o sistema eleitoral local, a composição demográfica de Iowa ou o fato de ser um nativo do Meio Oeste.

Joe Biden se dirige a New Hampshire golpeado, mas não morto. A corrida para ser a opção do establishment democrata está longe de terminar e, enquanto essa corrida continue, Sanders está em uma posição privilegiada para capitalizar as divisões dentro da ala direita do partido.

Ao mesmo tempo, a campanha de Sanders conta não só com ganhar os votantes tradicionais do Partido Democrata, como também com uma onda de novos e jovens votantes. Isso não se materializou em Iowa na medida em que Sanders esperava. A participação se manteve relativamente estável com os números de 2016 e se viu uma queda nos votantes de primeira viagem. Isso supõe uma grande decepção para o Partido Democrata de conjunto, já que esperavam que uma “resistência” a Trump dinamizaria sua base e atrairia novos votantes. Se Iowa é um indício válido, isso não está se sucedendo, o que é um grande obstáculo para a estratégia de campanha “qualquer um menos Trump” que o Partido Democrata vem implementando até agora. Também é uma preocupação para a campanha de Sanders em longo prazo, pois se baseia em energizar setores que não são os votantes habituais. O nada usual sistema de votação de Iowa - o sistema de caucus que consome mais tempo - e a demografia - é desproporcionalmente branca em comparação com o resto do país - significa que esses resultados não devem ser tomados como necessariamente indicativos de uma tendência geral.

No entanto, se esses números se mantêm em New Hampshire e logo no resto das disputas, isso representa um perigo tanto para Sanders como para os democratas.

Crise do regime

As primárias de Iowa tem criado um grande questionamento pela esquerda às instituições do regime americano. Isso em meio a uma crise das instituições de mais longo prazo, que vem desde 2016.

Do lado direito, Donald Trump anima sua base de America-First a questionar a legitimidade do FBI e da Corte Suprema, assim como de procedimentos “sagrados” como o juizado político. A falta de vergonha de Trump e especialmente seus embaraçosos tweets colocam em dúvida a “honra” da Presidência, mas os democratas têm se posicionado de forma a mantê-la, passando os últimos três anos falando da intromissão russa nas eleições e, mais recentemente, da “Ucrânia interferindo na democracia americana”. Os democratas dizem ser os defensores da “democracia” e estão se propagandeando como os garantidores da constituição e das instituições americanas.

Mas Iowa, e todo o processo de primárias, vão contra isso. Os democratas não estão interessados na democracia. Eles certamente não estão interessados em representar com precisão a vontade de seus eleitores. Para começar, todo o processo de primárias e caucus é antidemocrático: um sistema no qual se pode ganhar a contagem de votos populares e não o Caucus ou as primárias. Esse sistema eleitoral deve ser abolido: não há mais colégios eleitorais ou superdelegados. Uma pessoa, um voto. Todas as primárias devem ser no mesmo dia e nenhuma preferência deve ser dada a dois dos estados mais brancos do país [referindo-se a Iowa e New Hampshire, que realiza as primárias em 11 de fevereiro, NdT]. Além disso, as pessoas deveriam ter o dia de folga para votar, todos com mais de 14 anos deveriam poder votar, além da população carcerária e os imigrantes sem documentos.

Mas além dos aspectos não democráticos das assembleias eleitorais de Iowa, todo o processo está agora em dúvida: por que Buttigieg doou dinheiro para o aplicativo Shadow Inc. - o que parece pouco claro? Por que foi usado? Por que não funcionou? E por que, mais de 24 horas depois, ainda não sabemos todos os resultados do caucus de Iowa? Deve-se notar que inconsistências semelhantes em países como a Bolívia foram a causa da Organização dos Estados Americanos declarar as eleições "irregulares" e solicitar novas, e que os Estados Unidos qualificaram as eleições como fraudulentas (quando servem aos interesses dos Estados Unidos). Estados Unidos, é claro). Também é importante notar que, em 2016, o DNC tentou ativamente inclinar a balança em favor de Clinton, fazendo campanha suja contra Sanders.

Não sabemos o que está acontecendo em Iowa, talvez seja apenas incompetência em uma primária muito disputada. E talvez em alguns dias Sanders seja vitorioso. Mas o estrago já está feito: Sanders parece ter ganho o voto popular, mas não conseguiu o seu "momento Iowa" justo no momento em que a nação inteira está em suspense. Reformistas como Bashkar Sunkara dizem que o que aconteceu em Iowa não é grande coisa, que os apoiadores de Sanders devem continuar o curso sem parar para questionar profundamente a falsa democracia americana ou a estratégia de trabalhar dentro de um partido que represente os interesses do capital.

Mas o exemplo de Iowa não poderia ser mais claro: as regras do processo são profundamente antidemocráticas e são manipuladas contra a classe trabalhadora, a classe média e os setores populares. É por isso que a esquerda precisa parar de ter ilusões no trabalho dentro do Partido Democrata. É por isso que a classe trabalhadora não deve estar no mesmo partido que Michael Bloomberg, que está comprando seu caminho para a eleição com bilhões de dólares. É por isso que não devemos despejar horas de energia e recursos em seu partido ou em seus candidatos. Precisamos de um partido socialista, da classe trabalhadora, independente dos capitalistas: um que saiba que a mudança real e duradoura de que precisamos será alcançada através da luta de classes e da política revolucionária nas ruas, locais de trabalho e parlamento, um que lute incansavelmente pela classe trabalhadora e pelos oprimidos e que rejeite o imperialismo dos EUA e brigue pela solidariedade internacional com toda a classe trabalhadora do mundo. Os democratas nunca serão esse partido e não podemos desperdiçar nosso tempo ou recursos tentando reformá-los.

 
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