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NEGRAS E NEGROS
Enxergar 2020 com os olhos das mulheres negras
Letícia Parks

"Leon Trotski (...) alertava a todos os militantes e operários: para ser um revolucionário é preciso enxergar a vida com o olhar das mulheres. Hoje, no mundo todo e em nosso país, para ser um revolucionário é preciso enxergar a vida com o olhar das mulheres, mas em especial o olhar das mulheres negras, imigrantes e indígenas, que de forma mais cruel sentem o feroz deleite capitalista sobre seus corpos e vidas."
Diana Assunção – Para enxergar a vida com o olhar das mulheres – prefácio ao livro Trótski e a luta das mulheres

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Enxergar a vida com os olhos das mulheres. Esse era um dos combates de Leon Trótski, direcionado à formação da subjetividade de todo revolucionário. A ofensiva neoliberal e a ascensão de governos de extrema direita pelo mundo não apenas explicitam o valor dessa premissa como tornam os crimes capitalistas ensurdecedores. Ao nos reprimir e atentar contra nossas vidas são, entretanto, movidos por essa mesma certeza: na luta pelo novo, os mais decididos sempre serão os que mais sofreram com o velho, com o arcaísmo e brutalidade do capitalismo, do racismo e do patriarcado.

É unânime a opinião de que 2019 não foi um ano fácil. Foram várias as reformas e ataques que ameaçaram e destruíram direitos duramente conquistados, como a reforma da Previdência. Na sequência da semi dissolução dos direitos trabalhistas que significou a reforma de Temer em 2017, Bolsonaro, de mãos dadas com o Congresso, o Judiciário e a grande mídia, aprofundou os ataques trabalhistas com medidas como a MP 881 (lei da “liberdade econômica), a chamada carteira Verde e Amarela, diversas privatizações e extinção de cargos públicos, medidas que de várias formas submete ainda mais o trabalhador e a trabalhadora à opressão patronal.

Neste diário nos pronunciamos decididamente contra cada um desses ataques, explicitando o caráter racista dessas medidas e o quanto que elas explicitam uma chave de choque à direita nas relações raciais no Brasil, uma importante alteração de prática e discurso político num país em que a elite e a burguesia nacional por décadas insistiram que não existia racismo, a chamada tese da democracia racial. Os governos pós neoliberais brasileiros, em especial durante o ciclo lulista, foram forçados pela sua própria trajetória política – associada a grande parte das direções do movimento negro – a reconhecer a existência do racismo e implementar políticas de reparação histórica, como as cotas raciais em universidades e concursos públicos. Essas medidas, entretanto, foram acompanhadas também de elementos de aprofundamento do racismo, no qual o bolsonarismo se apoiou fortemente para governar em chave de reconhecimento do racismo e de utilização de discursos racistas para promover ataques ainda mais profundos do que os próprios governos do PT já vinham fazendo.

As obras do PT sobre as quais o bolsonarismo se apoiou são muitas, mas três valem especial destaque. A primeira é o fortalecimento do agronegócio, com ações econômicas de isenção e proteção desse mercado em detrimento da saúde das condições climáticas, da vida de comunidades indígenas, sob utilização de mão de obra semiescrava, que se baseia em uma lógica de desenvolvimento desigual e combinado para acumulação de riquezas e criar uma nova burguesia nacional que se aproveita do trabalho escravo moderno e inclusive foi base eleitoral para o atual governo. Na contemporaneidade, esse agronegócio é parte de uma economia assassina de indígenas, quilombolas e lutadores sem terra. A segunda é o aumento exponencial do trabalho precário, que durante os anos de governo do PT quadruplicou pela via da terceirização. A terceira é a formação de um esquadrão de elite das forças armadas forjado na repressão e assassinato sistemático ao povo haitiano como parte da Minustah, uma assim chamada missão de “paz” que se instalou no Haiti após a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide em 2004 por força de um golpe alentado pelos próprios EUA e França. Desde que assumiu, Bolsonaro já inseriu em postos de comando do governo quase uma dezena de ex-comandantes da Minustah, dentre eles Augusto Heleno, que foi o primeiro comandante entre 2004 e 2005.

Se o assassinato de Marielle Franco foi uma das feridas mais simbólicas do golpe institucional, o assassinato de Mestre Moa foi um símbolo da subjetividade e da prática que prometem acompanhar a reconfiguração à direita do regime político brasileiro com a eleição de Bolsonaro. É por isso que tudo mudou, e que mesmo que as massas negras sempre tenham vivenciado tanto racismo no cotidiano, as heranças dos governos anteriores foram brutalmente potencializadas por práticas racistas explícitas de um governo eleito com um discurso alentador de violências racistas como a que roubou a vida de Moa, e cujos líderes estão envolvidos com milicianos capazes de calar a voz de uma vereadora negra, ultrapassando os limites do próprio racismo institucional, habituado até então a matar anônimos.

2019 já é o ano recorde em assassinatos de negras e negros por policiais e talvez seja também o ano nesse século em que mais crianças morreram vítimas da violência policial. Líderes sem terra e sem teto assassinados e presos, líderes religiosos e quilombolas humilhados e agredidos ao vivo nas redes sociais, para qualquer um ver, dar like e compartilhar, todas ações patrocinadas pelos discursos de ódio às religiões afro que saem da boca de gente do governo, como Damares Alves, a ministra da família branca e heterossexual da propaganda de margarina.

As vestes poeirentas de nossos dias, cabe a ti, juventude, sacudi-las... animando a classe trabalhadora e batalhando, juntas, por uma vida sem racismo e sem capitalismo

Ao passo que se intensificam as práticas racistas, 2019 também foi um ano em que a juventude negra saiu às ruas contundentemente contra os ataques prometidos à universidade por outro racista de destaque: Abraham Weintraub. A escolha de direcionar os ataques sobre a permanência estudantil foram a forma de ter negras e negros em alvo sem ter que dizer abertamente. As federais são as universidades que primeiro implementaram cotas raciais, e nas quais negras e negros penam para se manter estudando com medidas de auxílio muito escassas e intermitentes. Se já era difícil manter-se estudando com a permanência estudantil que originou tanta revolta e encorajou mobilizações e greves no passado, os cortes atuais associados a projetos como Future-se, prometem manter negras e negros na universidade apenas se “andarem na linha” da privatização e da lógica neoliberal de uma educação à serviço da atomização da classe trabalhadora.

É inspirados nessa revolta – que criou lindas imagens em maio e junho de 2019 – que a própria classe trabalhadora também promete protagonizar novas revoltas contra ataques às suas condições de vida. Não à toa as grandes marchas de 15 de maio forçaram as centrais sindicais a convocarem a greve de junho, que só não foi efetivamente capaz de acabar com a reforma da previdência dado a enorme desmobilização garantida pelas mesmas centrais.

Mas a história não acabou, não estamos vivendo na distopia capitalista e tampouco somos corpos dóceis condicionados a viver conforme as normas de governo dos ricos, dos capitalistas e dos seus cada vez mais toscos políticos burgueses. As massas negras estiveram à frente de alguns dos principais conflitos de classe que se abriram nesse segundo ciclo de luta de classes no marco da crise capitalista internacional, lado a lado de uma juventude que não consegue acreditar que haja um amanhã digno sob o capitalismo.

Sudão, Haiti, Porto Rico, Honduras, Haiti, Argélia, lado a lado de indígenas chilenos e bolivianos, mostram que o sem número de derrotas sofridas com a crise que se arrasta desde 2008 só pode ser respondido com revolta, uma revolta justificada pela cara das políticas de ajustes no terceiro mundo, uma cara racista e xenófoba das elites de seus países, dispostas a golpes fundamentalistas como o boliviano, queimando a bandeira Whipala e sobre seus restos, abrindo a bíblia que foi fundamento ideológico do massacre indígena e negro em nosso continente.

Enquanto nesses processos as direções burguesas tentam nos convencer de que a saída é uma “luta cidadã”, a energia revolucionária das massas devem inspirar em cada revolucionária e revolucionário no mundo o desejo de preparar-se para intervir em cada uma das atuais e futuras lutas exigindo e preparando as medidas de auto-organização capazes de fazer frente às traições das burocracias sindicais, retomando o sentimento de unidade da classe trabalhadora, roubada de nós pelo racismo, pelo patriarcado e pela automatização neoliberal do trabalho, todas essas formas de dividir a nossa classe que, quando nos organizamos, percebemos que não nos servem e só nos atrapalham.

2020 prepara novas páginas da luta internacional contra o racismo e o capitalismo. Para esse futuro tão próximo, convidamos as negras e negros brasileiros a recuperarem os mais lindos momentos de nossa história, essa história cheia de lições e exemplos para o futuro, como a lição do padeiro branco João de Mattos, o sindicalista brasileiro que organizou cartas falsas de alforria e que auxiliou centenas de fugas de escravos no século XVIII; ou como as negras e negros africanos, europeus e norte-americanos que nos anos de 1930 se recusaram a matar seus irmãos oprimidos em nome da guerra capitalista e se organizaram entre si para libertar-se das amarras capitalistas. Essas e outras experiências fazem parte das que foram reunidas pela editora Iskra no livro A Revolução e o Negro, que teve sua segunda edição publicada agora mesmo, no turbulento ano 2019. Encerramos esse texto com uma dessas lições, com um chamado antiburocrático que deve, da essencial luta antirracista, antipatriarcal e anticapitalista, como uma só luta orientada a partir de ver o mundo com os olhos das mulheres, dos negros, dos mais oprimidos.

Em Flint, durante as greves com ocupação de dois anos atrás, setecentos brancos do sul, embebidos desde a infância no racismo, se encontraram cercados no prédio da General Motors com um negro entre eles. Quando chegou a hora da primeira refeição, o negro, sabendo quem e o que seus companheiros eram, se postou ao fundo. Imediatamente foi proposto que não deveria haver discriminação racial entre os grevistas. Setecentas mãos se levantaram juntas. Diante de seu inimigo de classe os homens reconheceram que o racismo era algo subordinado e que não se poderia permitir que atrapalhasse sua luta. O negro foi convidado a sentar-se primeiro, e depois que a vitória foi alcançada, na triunfante marcha para fora da fábrica, foi concedido a ele o lugar de destaque. Esse é o prognóstico do futuro. Na África, na América, no Caribe, em uma escala nacional e internacional, os milhões de negros erguerão suas cabeças, deixarão de estar ajoelhados, e escreverão alguns dos mais massivos e brilhantes capítulos da história do socialismo revolucionário.
CLR James – A revolução e o negro (publicado em New International, dez. 1939, texto de abertura do livro A Revolução e o negro, Edições ISKRA, 2019)

Que esse futuro comece em 2020.

Saiba mais: A Revolução e o Negro

 
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