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CHINA
Giovanni Arrighi e a China de cabeça para baixo
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

Tomamos o já clássico debate feito por Giovanni Arrighi em seu Adam Smith em Pequim para analisar à luz da atual relação sino-estadunidense a hipótese do "surgimento-ascensão" harmônico da China, e o papel da luta de classes na encruzilhada dos processos de decadência hegemônica na época imperialista de crises, guerras e revoluções.

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Ilustração de Alexandre Miguez.

Giovanni Arrighi, economista político italiano e professor de Sociologia da Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos, teve papel relevante em pensar as resultantes geopolíticas das crises de acumulação capitalistas do último quarto do século XX, com contribuições importantes sobre a compreensão do papel da China na modulação do século XXI. Em Adam Smith em Pequim [1], livro que incorpora alguns artigos publicados na revista britânica New Left Review (denominados “Hegemony Unraveled”), publicado em 2007, Arrighi abrange algumas das modificações que em sua leitura explicam a radical diferença do papel da China no contexto atual, que possibilitaria a construção de uma ordem multipolar, deslocando a posição de primazia dos Estados Unidos, dando contornos mais harmônicos à economia e política mundiais.

O desenvolvimento chinês no tabuleiro internacional é uma das grandes problemáticas do século XXI, e não apenas para os marxistas. Distintos analistas burgueses se dedicam a pensar as conseqüências do poderio econômico chinês, e a possibilidade de que traduza esse poder econômico em poder político, ameaçando adentrar um terreno de disputa mais direto com as tradicionais potências capitalistas, em primeiro lugar os Estados Unidos. A refrega entre Trump e Xi Jinping diz muito sobre essa nova fase, que inclui a projeção de traços antes inexistentes na formação econômico-social chinesa.

Não é nossa intenção fazer uma análise exaustiva da obra, nem cobrar do autor a avaliação fenômenos que não pôde observar. As circunstâncias mundiais se modificaram consideravelmente desde a eclosão da crise econômica de 2008, com a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, com consequências ainda não foram resolvidas. Falecido em 2008, Arrighi não teve a oportunidade de analisar teoricamente esse novo período caracterizado pela crise da hegemonia neoliberal e o aprofundamento dos nacionalismos econômicos, em especial a nova fase das relações sino-estadunidenses. Por isso, o que buscamos recuperar a análise de Arrighi para tecer alguns contrapontos sobre sua tese central mencionada acima, enfatizando as problemáticas que levanta a partir das tendências a que leva seu pensamento.

Uma observação sobre o tema da “economia de mercado, não capitalista”

Estabelecendo uma distinção entre o desenvolvimento da economia de mercado e desenvolvimento capitalista propriamente dito, o economista italiano destrinça três fatores para compreender a China. Em primeiro lugar, considera que a disseminação das trocas de mercado em busca do lucro, existente na China e aprofundada durante as últimas três décadas, não implicaria necessariamente que a natureza do desenvolvimento chinês seja capitalista. Em segundo lugar, e apoiado nessa concepção, afirma que desde que o princípio de acesso igual à terra continue a ser reconhecido e implementado, não seria tarde demais para que a ação social na China contemporânea desvie sua evolução para um caminho não capitalista. Posto isso, Arrighi estabelece, em terceiro lugar, que mesmo levando em conta as dificuldades, seria preciso reconhecer que embora “o socialismo já tenha sido derrotado na China, o capitalismo ainda não venceu”.

Já em vida de Arrighi, entretanto, era possível verificar o contrário. A China que deve sua existência atual à unificação conquistada na Revolução de 1949 e que permitiu novas bases para a utilização de seus imensos recursos através da planificação (burocrática) da economia. A direção burocrática de Mao e do PCCh levou a que o Estado operário chinês já surgisse deformado em 1949. Com a classe trabalhadora recompondo-se da enorme derrota sofrida na segunda revolução chinesa (1925-27), tragédia promovida e organizada pela política desastrosa de Stálin de dissolver o Partido Comunista no interior do Kuomintang (nacionalistas burgueses) e entregar os comunistas chineses às mãos dos verdugos de Chiang Kai-shek, a República Popular da China em 1949 se originava sem qualquer vestígio de democracia soviética. O maoísmo ia além do que desejava na ruptura com a burguesia (após o triunfo contra a invasão do Japão, derrotado na Segunda Guerra Mundial, o Kuomintang buscou aniquilar o PCCh), foi obrigada a tomar o poder sobre a base de um partido-exército, de base camponesa. A burocracia maoísta, desde o início, usurpava o poder político da classe trabalhadora, impedia que esta hegemonizasse o campesinato pobre, e bloqueava a dinâmica expansiva da revolução internacional, sem o qual é impossível vislumbrar a destruição do imperialismo e a construção de uma sociedade de produtores livremente associados, como dizia Marx, o comunismo.

As disjuntivas e debates estratégicos sobre a revolução chinesa serão tema de próximo artigo. Aqui, nos limitamos a um apontamento rápido em diálogo com a problemática de Arrighi.

As medidas de abertura às transnacionais e monopólios estrangeiros, os inumeráveis benefícios fiscais concedidos para atrair empresas ao país, a desregulamentação das leis trabalhistas que permitiram uma fenomenal superexploração do trabalho e extração de mais valor absoluto; tudo isso, dizíamos, moldou um processo que, ainda que preservasse características singulares (fruto da supervisão vigilante do Partido Comunista Chinês) como a dificuldade de acesso ao sistema financeiro e ao mercado de capitais chineses, resultou na restauração do capitalismo na China. A burocracia do PCCh, que sustentara a famosa tese do “socialismo com características chinesas”, que é tributária local da doutrina stalinista do socialismo num só país, foi o “grande farol” da restauração capitalista no gigante asiático, e valeu-se do capital internacional para sua modernização sobre as bases da Revolução de 49.

Dito isso, vale lembrar que se houve um “momento de redenção” para a China, foi o da expropriação da burguesia representada pelo Kuomintang (Partido Nacionalista Chinês), apesar das intenções originais da burocracia maoísta – e não as décadas de políticas pró-mercado iniciadas por Deng Xiaoping...

Para sustentar sua tese de “economia de mercado, não capitalista” (uma tese que, diga-se de passagem, foi levantada durante longo tempo por alas internas da burocracia de Pequim), Arrighi argumenta que se poderia “colocar quantos capitalistas se queira à economia de mercado; se o Estado não estiver subordinado aos interesses de classe destes, a economia de mercado continua não capitalista”. Entretanto, o Estado chinês, controlado pelo Partido Comunista, viu-se na circunstância de trabalhar em função dos interesses de classe da burguesia, especialmente estrangeira, para levar adiante sua “modernização”, que fazia avançar simultaneamente o processo de restauração da propriedade privada dos meios de produção. É inegável que não estamos diante de uma “economia de mercado capitalista” comum às estruturas econômicas ocidentais; mas isso não significa deixar de ver a resultante das reformas pró-capitalistas na China com respeito ás formas dominantes de propriedade e o caráter de classe do Estado. Tomando alguns dados do economista Barry Naughton [2]:

Começando em 1993, mais de 30 milhões de trabalhadores das empresas estatais (State-owned Enterprises, SOEs) foram demitidos, 38% de toda a força de trabalho, e quase 50 milhões de trabalhadores urbanos de todos os tipos. Pouco depois, a partir do final da década de 1990, o governo chinês começou a dar maior legitimidade e proteção jurídica às empresas privadas. Ao contrário da garantia do trabalho no setor público, novos trabalhadores recebiam contratos de 5 anos a partir de 1986, renovados apenas se ambas as partes estivessem satisfeitas. Todas as formas de emprego nas empresas estatais diminuíram significativamente no final da década de 1990 [...] A mobilidade do trabalho cresceu dramaticamente, assim como o desemprego. Em 1993 havia ao redor de 7 milhões de desempregados; em 1996-1997, esse total alcançou 15 milhões, praticamente todos separados de suas unidades de produção.

A diminuição através de demissões da força de trabalho do setor público tinha como objetivo, como observam diversos analistas, facilitar o fornecimento de mão de obra barata para a iniciativa privada, especialmente estrangeira, que entrava na China com maior força a partir da criação das Zonas Econômicas Especiais e da reforma trabalhista de 1993. Com a restauração do capitalismo, segundo o intelectual espanhol Rafael Poch-de-Feliu, “37 milhões de pobres urbanos que o Banco de Desenvolvimento Asiático contabilizava para toda a China em 2003 eram fruto da reconversão da indústria estatal socialista”, ou seja, das demissões e do desemprego de massas surgido com o desenvolvimento dos mecanismos de mercado.

Não é nova a realidade de que o PCCh possui vários grandes proprietários multimilionários em seus órgãos centrais de direção, conhecidos como os "empresários vermelhos". Estes “empresários vermelhos” que foram parte daqueles que do Politburo de Pequim arquitetaram as melhores leis para que os monopólios estrangeiros superexplorassem a classe trabalhadora chinesa, tornando suas fábricas, usando os dizeres de Marx, “lugares que fazem Dante ver superadas suas fantasias mais cruéis sobre o inferno”; nisso, não muito distinto das velhas oficinas inglesas do século XIX.

Não admira que hoje o governo de Xi Jinping, como testemunha inclusive a imprensa financeira como o Financial Times, tenha incrementado a política de perseguição dos trabalhadores que buscam sindicalizar-se de maneira independente (com a simultânea repressão policial às greves operárias), mas também tome medidas como a imunidade das empresas privadas que cometam atividades criminosas, para resgatar a crise da dívida do setor privado. Um "Giro à esquerda" compreensível apenas para stalinistas...

Assim, como afirma a economista argentina Paula Bach, a questão não consiste mais em saber se a China é capitalista ou não – como se perguntava tardiamente Arrighi em 2007 – mas em que medida e em que grau a China estaria desenvolvendo os traços imperialistas de sua ascensão econômica, que tem suporte especialmente no grande volume de exportação de capitais. Tanto com a imensa compra de participação acionária da China em empresas do mundo inteiro, como abruptos investimentos em infra-estrutura que atravessam o globo, boa parte dos quais reunidos no projeto estrela de Xi Jinping, o Belt and Road Initiative (a Nova Rota da Seda). O que há alguns anos era apenas um projeto de construção de infra-estruturas em países vizinhos, se converteu em uma política expansiva que abrange distintos continentes em obras de transportes, gasodutos, oleodutos, construção de centrais energéticas, acordos comerciais de exportações e importações, investimentos financeiros e atividades comerciais. A ambição da China vai além: também busca construir fortes conexões marítimas – denominadas de Rota da Seda Marítima do Século XXI – no Mar da China Meridional, no Pacífico Sul e no Oceano Índico. Também está prevista uma nórdica “Rota da Seda do Gelo”. Essa ambição se choca com os interesses globais dos Estados Unidos, e por isso discutiremos com mais detalhe esse tema abaixo.

Por importância do tema, passamos à discussão de Arrighi sobre a possibilidade de uma ascensão harmônica da China no plano mundial, tese que também deriva das doutrinas centrais do Partido Comunista Chinês.

Arrighi, Mearsheimer, Kaplan, Kissinger: os caminhos de evolução da China

Quanto ao tema da ascensão da China, Giovanni Arrighi faz um apanhado abrangente e interessante sobre os debates da primeira década do século XXI, e elege debater centralmente com a tese do professor de relações internacionais da Universidade de Chicago, John Mearsheimer, em The Tragedy of Great Power Politics (2001).

Produto de uma visão engajada em problematizar a ascensão da China no esquema de domínio mundial encabeçado pelos Estados Unidos, Mearsheimer considera que Washington seria forçada pelos imperativos estruturais do sistema internacional a abandonar a política do que chama de “envolvimento construtivo” com Pequim, apesar do gigante asiático estar, naquele então e também segundo o autor, distante do poder econômico necessário para projetar sua hegemonia regional. Em muitos pontos, Mearsheimer reproduz certas concepções comuns a estadistas vinculados à administração de George W. Bush, como Paul Wolfowitz, que foi um dos arquitetos da invasão norte-americana no Iraque em 2003, e que em 1992 dizia que a política externa dos Estados Unidos deveria ter como objetivo impedir que qualquer potência hostil dominasse uma região cujos recursos fossem suficientes para gerar poder global (outro autor, Chalmers Johnson, debate estas ideias de Wolfowitz e Mearsheimer em The Sorrows of Empire: Militarism, Secrecy, and the End of the Republic). Estava se referindo à possibilidade da China dominar a região da Ásia Pacífico, um receio que já no início da década de 2000, antes das aventuras militares do Pentágono no Oriente Médio (que resultaram numa curiosa aproximação entre Washington e Pequim), levou o governo Bush a caracterizar a China como um competidor estratégico – uma definição levada à la lettre por Donald Trump em meio à guerra comercial-tecnológica com o governo chinês.

Mearsheimer buscava associar a ascensão da China aos riscos embutidos no surgimento de outras potências que questionaram a ordem mundial no passado, como a Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial, ou a Alemanha e o Japão antes da Segunda Guerra Mundial. Considera que a China estaria se preparando sagazmente para expulsar os Estados Unidos da Ásia, mais ou menos como este país expulsou as grandes potências do hemisfério ocidental, enquanto os Estados Unidos buscariam conter a China e enfraquecê-la a ponto de ela não ser mais capaz de dominar a Ásia, comportando-se diante da China mais ou menos como se comportaram diante da União Soviética durante a Guerra Fria (cf. “Clash of the Titans [3], um debate entre Zbigniew Brzezinski e Mearsheimer).

Outros adeptos da noção do desenlace militar inevitável, como Robert Kaplan, seguiam a posição de Mearsheimer, propondo inclusive uma estratégia de “nova Guerra Fria” contra a China, que deveria ser desencadeada pela OTAN, cujo papel específico nesse novo período seria o da contenção da China – uma postura que ganhou adeptos no gabinete de Trump, como o secretário de Estado, Mike Pompeo. Estadistas como Henry Kissinger (com alguma sintonia com o supracitado ex-conselheiro de Defesa Nacional, Brzezinski) opõe a esta visão a noção de que a experiência anterior com as duas guerras mundiais do século XX tornaria mais difícil um conflito militar entre Estados e China, que buscaria crescer economicamente sem grandes solavancos, e que possuiria uma tradição teórica distinta também no terreno militar (a China perseguiria seus objetivos com estudo meticuloso e paciência, mais em sintonia com Sun Tzu do que com o estratega mais importante do ocidente, Karl von Clausewitz). Kissinger rechaça por isso como “pouco sensata” a hipótese de Kaplan e de Mearsheimer, e como mostrou em seu encontro com Xi Jinping, em novembro de 2018, segue com a opinião acerca da importância de relações cordiais entre as duas maiores potências econômicas do globo.

Ascensão-surgimento pacífico da China

Arrighi sugere uma proximidade com a posição de Kissinger, quanto à rejeição da tese de Mearsheimer sobre a inevitabilidade de conflitos estratégicos de magnitude entre Estados Unidos e China. Mais que isso, parece adotar a própria doutrina chinesa do heping jueqi (literalmente, “surgir precipitada e pacificamente”) apresentada pelo governo chinês em 2003 no Forum de Boao para a Ásia. Arrighi apresenta como sua, quase implicitamente, – pois o centro de seu último livro era discutir “o desafio da ascensão pacífica” da China – a doutrina que guia a burocracia do Partido Comunista Chinês: a de que “a China pode evitar o caminho da agressão e da expansão seguido pelas potências anteriores em seu momento de ascensão” (Arrighi 2008: 299). A doutrina da “ascensão-surgimento pacífico”, que foi lançada com ares oficiais na administração de Hu Jintao (e que segue, embora em versão mais agressiva e enaltecendo as ambições de grande potência, no governo de Xi Jinping) tem em Arrighi um inegável entusiasta. Outro ponto de contato sugestivo entre a posição do sociólogo italiano com a de Kissinger é a percepção de que, como se deriva da doutrina do tipo de ascensão chinesa, muito provavelmente o desafio futuro da China será político e econômico, e não militar (pela disparidade mais que notória entre o poderio econômico da China, e sua atrasada tecnologia bélica).

Cabe dizer que, apesar de alguns pontos de contato, Kissinger e Arrighi não entretinham a mesma visão sobre a ascensão da China e o papel que deveria cumprir. Kissinger estruturava sua política ao redor de uma estratégia de contenção da União Soviética na Guerra Fria. A aproximação com Mao em 1972 estava animada pelo objetivo de instrumentalizar as tensões entre o Kremlin e Pequim, acentuando sua animosidade e fortalecendo a hegemonia norte-americana. Não se tratava, pois, de uma visão “benéfica” sobre uma eventual ascensão da China no tabuleiro mundial, muito menos acatava com bons olhos a possibilidade – que então era bastante longínqua – de que a China amealhasse poder suficiente para desafiar os Estados Unidos em algum ponto do globo. Assim, longe de bendizer uma hegemonia compartilhada entre potências, Kissinger estava orientado em garantir por todos os meios o domínio inconteste dos Estados Unidos no mundo. Arrighi, ao contrário, almeja uma ordem mais harmônica dirigida pela China, não mais pelos Estados Unidos. Influenciado pela corrente de pensamento sociológico de Ferdinand Braudel, enxerga o capitalismo enquadrado em ciclos sucessivos de acumulação: fases de expansão material se tornam finalmente mais fracas sob a pressão de uma competição excessiva, dando lugar a fases de expansão financeira, cujo esgotamento então dá lugar a uma época de caos interestatal que é resolvido pela emergência de uma nova potência hegemônica. Esta seria capaz de restaurar a ordem global e reiniciar mais uma vez o ciclo de expansão material, apoiado em um novo bloco social. Estes hegemons foram consecutivamente Genova, Holanda (Províncias Unidas) Inglaterra e os Estados Unidos. Assim, como conclusão, considera que nos encontramos num processo de decadência dos EUA, e de ascensão da China, do qual é entusiasta. Em entrevista com David Harvey [4], em 2008, chega a mencionar que a redução da desigualdade global promovida pelo avanço chinês poderia gerar uma nova divisão global de renda, ainda que não se devesse exagerar o tema. Abandonando as definições clássicas de Lênin n’O Imperialismo, fase superior do capitalismo, mergulha na compreensão de um sistema mais harmônico quando direcionado por uma nova potência em ascensão que abre este novo ciclo de acumulação: fruto disso, considera que o sistema mundial hegemonizado pela China seria menos beligerante que o atual, encabeçado pelos Estados Unidos.

Este pano de fundo teórico nos ajuda a compreender outro importante eixo de argumentação de Arrighi, ao especular sobre o papel da China no mundo. Para sustentar a tese da “ascensão-surgimento pacífico”, busca fundamentar-se também em uma leitura particular da tradição política centenária das estruturas asiáticas em seu período de formação estatal. Estabelece duas distinções características entre o sistema interestatal europeu e o sistema interestatal asiático, localizando-os aproximadamente no período que vai do século XV ao século XIX. A primeira diferença diz respeito ao grau de conflitividade entre os Estados de ambos os sistemas em seu equilíbrio interno. Em forte contraste com a dinâmica do sistema europeu, caracterizada pela incessante competição militar entre seus componentes nacionais e a tendência à expansão geográfica predatória, o sistema de Estados nacionais na Ásia oriental destacou-se pela quase ausência de competição militar interna e expansão geográfica externa. Isso se dava em função do maior interesse em desenvolver seus mercados internos, especialmente o da China, que não dependia tanto das rotas comerciais que eram objetivo de disputa pela primazia entre as potências europeias, que necessitavam da exclusividade do controle comercial entre o Oriente e o Ocidente.

A segunda distinção entre os sistemas europeu e asiático-oriental derivava diretamente da primeira: este segundo sistema apresentava um quadro de ausência quase completa de tendências à construção de impérios ultramarinos, ou de envolvimento em corridas armamentistas que opusessem constantemente os principais membros regionais. No caso da China, as atividades militares se circunscreveram durante séculos à guarda de suas fronteiras territoriais contra os invasores das regiões norte e noroeste, em benefício do desenvolvimento do mercado interno – tendência essa que levou inclusive à proibição na China, durante a dinastia Ming (1368-1644), do desenvolvimento de uma marinha mercante, depois das viagens exploratórias do almirante Zheng He entre 1403 e 1433.

Arrighi tem razão em estabelecer que a formação dos Estados nacionais não foi invenção europeia, tendo pelo contrário, existência em variados territórios asiáticos, como China, Japão, Vietnã, Camboja, Coreia, etc. Entretanto, por mais sofisticados que possam parecer seus argumentos, são insuficientes para sustentar a tese da ascensão pacífica da China.

Ao rejeitar corretamente o mecanicismo das analogias de Mearsheimer, não se abriga contra certa superficialidade quando aborda de maneira demasiado linear a evolução das formações sócio-econômicas em épocas diferentes. Não há razão para crer que as futuras formas do desenvolvimento chinês (ou de qualquer outro país, diga-se de passagem) seriam as mesmas de seu passado, pelo exclusivo fundamento das configurações que lhes deram origem. Encontramo-nos em uma época completamente diversa da época de formação e expansão do sistema capitalista, de qualquer ângulo que se deseje abordar. Comparar as formas lentas e desiguais de desenvolvimento de Estados em estágio formativo, relativamente isolados entre si na arena asiática, inscritos em uma configuração tecnicamente atrasada das comunicações e com baixíssima produtividade do trabalho, há centenas de anos, com as novas formas impostas pelo capitalismo em sua fase de decadência imperialista: uma operação semelhante torna mais frágil, e não mais forte, a argumentação em favor de uma espécie de linearidade evolutiva, gradual e pacífica, mesmo sendo a tradição histórica um fator de importância significativa.

Pelo contrário, os indícios históricos sugerem que em nossa etapa histórica mais elevada, caracterizada pelo desenvolvimento não apenas desigual, mas combinado, das formações econômico-sociais, que superpõe os elementos mais avançados da técnica capitalista aos aspectos materiais e culturais mais atrasados da estrutura social herdada – e que exemplo a China apresenta disso! – a evolução política da China seguirá caminhos muito mais convulsivos do que aqueles que percorreu em sua história milenar.

A essa dinâmica combinada do desenvolvimento nacional a partir da virada do século XX, captada por Leon Trotski, surge o substrato de uma época de crises, guerras e revoluções, com uma configuração da luta de classes dotada de uma complexidade desconhecida no período de comparação eleito por Arrighi. Mais que nunca, o destino dos Estados nacionais depende cada vez menos de sua “tradição pregressa”, e mais da interação dinâmica da economia mundial, das relações interestatais e da luta de classes. Luta de classes, aliás, ausente dos cálculos de Arrighi, por mais que os últimos 150 anos advirtam o contrário.

Rumo a uma nova ordem harmônica?

Há alguns fatores que se interpõem a essa perspectiva, algumas já em curso durante a vida de Arrighi, outras que ganharam contornos mais claros sem que o sociólogo italiano pudesse estudá-las em detalhe.

A interação global entre Estados Unidos e China, em primeiro lugar, mudou muito desde os tempos amistosos entre Nixon e Mao. Nos últimos 30 anos, que englobam o auge da ofensiva neoliberal, a economia mundial foi regida pelo motor “EUA-China”, em que o primeiro se destacava como “maior importador de mercadorias” e o segundo cumpria o papel de “fábrica exportadora do mundo”. A crise de 2008 quebrou este motor comum. Os EUA sentiu os primeiros solavancos da crise e foi obrigado a mudar sua postura, mais agressiva contra os organismos multilaterais e as regras da globalização. A China, diante da retração do comércio mundial em crise e a renúncia dos EUA ao papel de importador em primeira instância, foi obrigada a buscar uma modificação de emergência de seu padrão de crescimento, para tornar-se menos dependente das exportações, e mais baseada na expansão de seu mercado interno e desenvolvimento de alta tecnologia. Donald Trump, de um lado, e Xi Jinping, de outro, representam as novas necessidades dos respectivos países depois da ruptura deste motor comum, que não por casualidade é o fundamento material do esgotamento do ciclo neoliberal. O conflito comercial-tecnológico é duradouro e tem bases estruturais na dinâmica do capitalismo pós-2008.

Independentemente dos fluxos e refluxos nas negociações entre Trump e Xi, maiores ou menores tensões comerciais, a disputa entre os EUA, a maior potência imperialista do mundo (em decadência hegemônica), e a China como potência em ascensão, marca todas as relações interestatais e econômicas.

No terreno militar, é sabido que a China não pode desafiar os Estados Unidos a nível global – as forças armadas estadunidenses são incomparavelmente superiores às chinesas em capacidade técnica, arsenal acumulado e pessoal treinado. Tomados em si mesmos, as inovações militares chinesas empalidecem diante do desenvolvimento de instrumentos de guerra no Ocidente. Entretanto, isso não justifica a posição teórica de Arrighi, que tende a pecar pela precipitação sem levar em conta os traços estruturais sócio-econômicos da época. Dentro de certos limites, em chave claramente defensiva, Pequim já começou a desafiar o domínio norte-americano na Ásia na última década, para o qual se mostram úteis as novas conquistas técnicas.

A construção de navios de guerra e submarinos nucleares, assim como a colonização do Mar do Sul da China através da construção de ilhas artificiais, são fatores que já alteraram o panorama regional e ameaçam a balança de forças numa região que, desde a Segunda Guerra Mundial, é de domínio inconteste de Washington. O primeiro objetivo político-militar do Partido Comunista Chinês é debilitar (e em perspectivar neutralizar) a hegemonia dos Estados Unidos sobre a Ásia (algo em que, diga-se de passagem, Mearsheimer tinha razão), e colocar seus aliados históricos, como o Japão e a Coréia do Sul, na disjuntiva de uma inclinação que deixa de ser unilateralmente favorável aos Estados Unidos. É previsível, para dizer o mínimo, que tais operações não se prestam a arranjos harmônicos.

Isso não significa que possa, ou queira, usá-las no curto prazo. Durante as últimas quatro décadas a política exterior da China e sua ascensão mundial foram regidas pela chamada "estratégia de 24 caracteres" de Deng Xiaoping, formulada em 1990, segundo a qual não se deveria disputar a hegemonia dos Estados Unidos nem a das potências estabelecidas, salvo em aspectos parciais. Não obstante, o que vai dito acima desautoriza uma visão “harmonicista” do desenvolvimento dos acontecimentos no Oriente. A celebração militar dos 70 anos da fundação da República Popular da China, em que o governo expôs pela primeira vez seu armamento balístico Dongfeng [5], surge para lembrar que o crescimento chinês “pacífico” não parece estar nos planos da burocracia do PCCh como almejava Arrighi.

Também do ponto de vista das relações tecnológicas, as coisas mudaram consideravelmente em 10 anos. Arrighi não pôde ver a grande entrada da China no terreno da produção industrial de alta tecnologia, fruto da busca por alterar as bases de seu padrão de crescimento; mais especificamente, o terremoto causado nas relações internacionais pela tecnologia do 5G, detida pela gigante chinesa Huawei. Uma tecnologia semelhante diminui o tempo entre o estímulo e a resposta do objeto remoto, tornando-se indispensável para o desenvolvimento de Inteligência Artificial e operações robóticas, base da chamada “indústria 4.0”, a joia da coroa das modernas fábricas capitalistas.

Trata-se de uma área de rivalidade, portanto, muito mais direta com os Estados Unidos do que aquela situada no domínio militar. De fato, o governo Bolsonaro é alvo da disputa referente à tecnologia do 5G, que atrai a atenção da indústria, do agronegócio e das Forças Armadas brasileiras. Trump já anunciou que se Bolsonaro aceita a oferta da China e permite a entrada da Huawei na maior economia da América Latina, desfaria o acordo de salvaguarda tecnológica de Alcântara, além de projetar outras ameaças, como o aumento das tarifas do alumínio e do aço nacionais.

Mas o que impressiona, de todo modo, é o grau de mudança no padrão de competitividade, no interior da esfera tecnológica, entre Estados Unidos e China. Isso é algo que não aparecia com seus contornos definidos na década passada, e que hoje é um ponto crucial na disputa entre as duas potências econômicas, a ponto de mover o conjunto da burguesia estadunidense na hostilidade manifesta contra a ascensão chinesa (independente das formas divergentes que isso adote nas esferas dominantes Republicanas e Democratas).

Outro terreno em que a China avançou passos sobre esferas de influência estadunidense, incrementando os riscos de choque, se relaciona com os tradicionais parceiros geopolíticos de Washington (e também seus adversários). A China conquistou grande ascendência econômica nos países europeus, a ponto de fragmentar a União Europeia nas respostas sobre como afrontar a chegada do “Marco Polo chinês”. O primeiro choque veio com a aceitação da Itália em participar do megaprojeto Belt and Road Initiative (ou a “Nova Rota da Seda”). Foi o primeiro país do G7 (grupo dos sete países mais industrializados do mundo) a se integrar ao projeto que busca ligar 80 países da África, da Europa e da Ásia por meio de obras de infra-estrutura (rodovias, portos e ferrovias) promovidas por Pequim. Em 2019, o governo britânico começou a discutir eventual permissão para que a Huawei operasse seus sistemas de tecnologia 5G, negando que a companhia representa perigo para a segurança nacional (anos atrás, a Inglaterra havia sido o primeiro país europeu a se integrar no Banco Asiático de Investimento e Infra-estrutura, dirigido pela China). Ambos os movimentos desagradaram Washington. Além disso, a China tem profundas relações diplomáticas e econômicas com os países do Leste europeu. Estes países se reúnem no chamado “Sixteen plus One”, que agrupa dezesseis nações da Europa central e oriental com dívidas vultosas que as colocam numa situação de dependência com Pequim.

A China já é a segunda parceira comercial da União Europeia (a UE é a primeira parceira comercial do governo chinês); em 2018, foi responsável por 20% das importações europeias, e por 10% das exportações do continente. A Europa tem investimentos de monta no gigante asiático: companhias como a BASF, o Carrefour e a Siemens tem grande presença no país. A alemã Volkswagen foi a companhia automotriz com mais veículos vendidos na China nos últimos 20 anos, responsável por 39% das suas vendas no ano passado. A novidade é que o grau de investimentos chineses na Europa decolou nos últimos anos, pondo em risco os ativos estratégicos dos principais países do continente, como a participação da China no Deutsche Bank (principal banco alemão), e a compra da fábrica de produção de robôs de alta tecnologia, KUKA.

Essa relação com a Europa ameaça acelerar a desagregação da “Aliança Atlântica”, a comunhão dos EUA com seus aliados europeus tradicionais, que agora são regularmente constrangidos por Trump.

A crescente parceria da China com a Rússia é outro foco intenso de preocupações. As relações econômicas e políticas entre Pequim e Moscou se aceleraram nos últimos anos: em 2017, a Rússia exportou aos chineses o equivalente a US$ 39,1 bilhões, e importou US$ 43,8 bilhões, Em declaração comum, Xi e Putin disseram que a relação sino-russa “nunca esteve em nível tão elevado”. Na cúpula entre os dois países celebrada em Moscou, a China assinou acordos de US$20 bilhões e um contrato de instalação da rede 5G na Rússia. É certo que uma parceria Rússia-China não é capaz de dar solução à crise da ordem neoliberal; além disso, há rivalidades geopolíticas entre os países no próprio continente asiático. Entretanto, o objetivo de frustrar os interesses de Washington unifica o eixo China-Rússia: é improvável que os esforços dos EUA para dividir Moscou e Pequim sejam eficazes. Do ponto de vista do Kremlin, os Estados Unidos são uma ameaça muito mais clara do que a China, e as visões anti-ocidentais de Putin são profundas. Xi, por sua vez, considera a Rússia útil para minar o domínio global dos EUA e contrariar os esforços dos EUA para limitar a alavancagem chinesa em instituições multilaterais.

Tomado em conjunto esses elementos poderiam, em sua evolução dinâmica, aproximar a possibilidade de choques, a despeito das doutrinas chinesas ou da predisposição norte-americana. De fato, as relações mais agressivas que a China estabelece em sua zona costeira, o tratamento da dissidência interna (como o show midiático da concentração de tropas na fronteira com Hong Kong), os projetos da Nova Rota da Seda e o Made in China 2025 (que envolvem um volume contundente de exportação de capitais) parecem colocar a teoria de Arrighi de cabeça para baixo, e indicam que Xi Jinping considera propício o momento de deixar para trás o período de emergência a passos de tartaruga e que, para continuar avançando até o "sonho" de "grande potência", seria necessário adotar uma política mais agressiva no cenário mundial.

As características da nossa época imperialista, de crises, guerras e revoluções, e a interação orgânica da luta de classes como motor das contradições interestatais, escapam a um esquema harmônico de desenvolvimento de novos hegemons no século XXI. O século XX não passou em vão.

Tendo isso em vista, no próximo artigo, continuamos a discussão com a argumentação do sociólogo e economista italiano acerca das disjuntivas da ascensão chinesa, para entrar no tema seguinte do raciocínio de Arrighi: a possibilidade de que a China utilize como estratégia de ascensão uma variante da estratégia estadunidense utilizada contra a Inglaterra, no início do século XX. Duas questões surgem daí: em que medida essas relações atuais seriam semelhantes à do início da época imperialista entre as potências anglófonas, e como se adequa o fator da luta de classes nesse esquema?

Ver Giovanni Arrighi e a China de cabeça para baixo - Parte II.

 
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