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HISTÓRIAS DO PROLETARIADO DIGITAL
A moça do caixa e o supermercado do Faraó
Afonso Machado
Campinas

Este é o segundo conto de uma série que leva o título de Histórias do proletariado digital.

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Um morcego ainda disputava o céu de Campinas com um Bem-te -vi, enquanto o ônibus atravessava pesado pela pista, transbordando de carne humana e mal paga. No interior do transporte estavam operários, professores, soldados e outros que tinham que ignorar na marra o sono que acentuava rostos exaustos. Ana Maria estava sentada no fundão e olhava a manhã crua pela janela. Ana abria e fechava rapidamente os olhos num duelo contra as agressivas luzes dos postes. Ela prendeu o cabelo em um rabo de cavalo, enquanto procurava esquecer os odores que assaltavam as narinas. Era um amplo e misturado cheiro de suor, pão de queijo, cachaça, marmita e urina. A jovem caixa de um supermercado via com atraso a mensagem no zap que seu noivo , Mauro, lhe mandara na tarde de ontem. Diferentemente do rapaz que era muito otimista, Ana possuía uma profunda desconfiança em relação á felicidade, em relação ao futuro dela, dele e de todos que moravam no seu bairro.

Ana Maria saltou no ponto de ônibus como uma gata escorraçada. Ela caminhou cinco quarteirões e quando aproximou-se do supermercado, retirou os fones de ouvido e guardou o celular na velha bolsa surrada, que pertenceu a uma tia falecida. Pronta, vestida com seu uniforme, ela ouvia junto aos demais funcionários as orientações do gerente. Este tinha um aspecto de profunda assepsia, a barba feita , o cabelo melecado de gel, a camisa impecavelmente branca e um óculos de gavião capaz de perceber o menor movimento inadequado de algum preá. Ele dizia aos funcionários:
- Não somos apenas uma equipe. Somos uma família! Quem não veste a camisa da nossa empresa não pode ser considerado um dos nossos, não pode ser amado. Todos aqui devemos demonstrar alegria e agilidade para os clientes. Sorrir é mais importante do que respirar. Ninguém quer comprar num lugar em que todos estão de cara fechada, como se tivessem comido jiló com limão.

Ao lado de Ana um rapaz mexia positivamente e com entusiasmo a cabeça, dando gargalhadas diante de cada piada feita pelo gerente. Ele era vizinho de caixa de Ana, um sujeito pegajoso, que abraçava a todos, embora tivesse espinhos nos olhos: estes se fixavam na moldura da parede que iria conter a foto do funcionário do mês. O rapaz queria subir, desejava usar uma camisa branca, ter um óculos de gavião e usar um gel de qualidade superior ao que ele já possuía. Ana por sua vez sentia um profundo desconforto nas palavras do gerente, que continuava suas instruções:
- Não devemos falar muito. Aliás é preciso saber falar pouco e coisas agradáveis. “ Bem vindo “, “ Deseja mais alguma coisa? “, “ Conhece as nossas promoções? “. Isto tudo não pode faltar na hora em que o cliente estiver passando suas compras nos caixas.

O desgosto de Ana Maria só aumentava. É claro que ela não queria tratar ninguém com hostilidade. O problema era que as frases ditas mecanicamente não tinham nada a ver com o que ela sentia, com o que ela via fora do supermercado. De todo modo, com palavras doces e pensamentos amargos, seria mais um dia. O supermercado levantava suas portas e os primeiros automóveis disputavam como insetos ferozes as vagas no estacionamento. Logo a filas começaram a se formar em frente aos caixas. Ana remendava uma frase automatizada na outra sem que os primeiros cinquenta clientes se dessem ao trabalho de cumprimenta-la e dirigir-lhes o olhar. Os clientes compunham uma classe média tremendamente hostil, que substituía qualquer gesto humano por números, que substituía qualquer “ Bom dia “ pela olhada mal humorada para o computador do caixa que fornecia o preço da compra.

Uma senhora de cabelos curtos, com uma infinidade de plásticas e uma roupa de ginástica, estava indignada com o fato de uma lata de leite condensado apresentar no computador do caixa um preço que não era o mesmo da prateleira.
- Essa lata de leite condensado está com o preço errado! Você é burra ou quer me enganar?

Antes que Ana pudesse acalma-la, a senhora em fúria passou a discursar sobre os direitos do consumidor. Feito o espetáculo, ela decidiu pagar suas compras espalhando marimbondos verbais em volta de Ana. A fila continuava! Três homens que passaram dos 40 anos, traziam em seus carrinhos dúzias de cervejas importadas. Com óculos escuros e camisas polo, eles conversavam em alto e bom tom. Riam e sempre que a conversa pareceria tornar-se “ mais séria “ faziam julgamentos em poses fotográficas. Um deles disse:
- O problema são esses venezuelanos que estão invadindo o nosso país.
O segundo respondeu:

  •  Vamos falar claramente: estão ameaçando a nossa pátria amada! É verdade, os venezuelanos, os cubanos, os baianos e os pernambucanos são estrangeiros perigosos. Eles não entendem que o capitalismo venceu porque o socialismo não deu certo.

    O terceiro perguntou em tom de troça:
    - Mas os nordestinos não são brasileiros?

  •  Não, eles são venezuelanos!

    Os três explodiram numa gargalhada só. Ana sentiu-se profundamente agredida: sendo filha de baianos e não tendo nada contra venezuelanos ou qualquer outro povo, ela se perguntava quem era essa gente que estava na sua frente vestindo roupas caras e comprando cervejas sofisticadas. Quando eles diziam “ pátria “, Ana sentia que não era a sua terra, que não era um lugar aonde sua família, seu noivo, vizinhos, companheiros de busão e de trabalho seriam bem vindos. Se o tal do socialismo, que Ana não sabia direito o que era, “ não deu certo “, o capitalismo deve ter dado certo somente lá aonde aqueles três homens moravam; afinal, no bairro de Ana, aonde o asfalto e a luz elétrica mal chegaram, o capitalismo não deu certo. Aliás, Ana ficou pensando em que lugar esse capitalismo seria bom. Com toda certeza para ela não era. Para aqueles três homens brancos, o Brasil era um país de homens brancos que usavam camisa polo, consumiam coisas caras e cumpriam a lei. Ana estava com uma resposta na ponta da língua, iria xinga-los e amaldiçoar suas famílias, mas perante os óculos de gavião do gerente, ela disse com toda dor:
    - Os senhores conhecem as nossas promoções?

    Os rapazes deram com os ombros. Ela teve a impressão de que algum deles insinuou alguma obscenidade para o outro, algo que dizia respeito a ela. Ela arrancou com violência secreta a notinha do caixa e disse:
    - Obrigada, voltem sempre.

    Para Ana as horas eram ditadas pelos clientes que passavam, os minutos eram determinados pelas mercadorias que passavam pelas suas mãos e os segundos eram esvaziados em cada nota miúda que servia de troco. Ana que não podia tirar os olhos da tela do computador, tinha a impressão de que se alguém perguntasse o seu nome e como vai a vida, ela responderia simplesmente:
    - São 75 reais. O senhor teria 20 reais para ajudar no troco?

    Ana via diariamente chocolates, barras de sabão em pó, refrigerantes, vassouras, cuecas, sabonetes, balas de hortelã e produtos de limpeza que jamais poderiam limpar a estupidez de pessoas que tratavam ela e os outros caixas como coisas que existem para servir quem pode comprar. O movimento no supermercado diminuiu por alguns instantes. Um pouco atordoada, Ana observava um garotinho maltrapilho que entrou no recinto. Ele foi para a sessão de biscoitos. Passados alguns instantes, Ana viu o segurança torcendo o braço do guri que pretendia furtar um pacote de biscoitos recheados. Ana sentiu um impulso, quis intervir pelo menino, mas no fim intimidou-se com a situação e temeu pelo seu emprego.

    Ana se recuperava da cena desagradável quando foi lembrada por Laura que já estava na hora de ir. Laura, sua amiga, trabalhava no açougue do mercado. Ela sempre espirrava e massageava as mãos doloridas devido ao contato constante com as carnes congeladas. Ambas rumaram para o ponto de ônibus. As duas amigas conversavam muito antes do ônibus chegar. Ana perturbava Laura com seus comentários extremamente francos sobre tudo, inclusive naquilo que dizia respeito ás questões da sexualidade. Laura então para evitar o que considerava assuntos demoníacos da carne, costumava contar histórias da Bíblia para Ana. Naquele dia, Ana ouvia sobre as injustiças que o povo hebreu sofreu no Egito antigo e no Cativeiro da Babilônia. Repentinamente ela desconsiderou o sentido puramente religioso das palavras de Laura e concentrou-se num inusitado paralelo histórico: ela, Laura , o garoto expulso do mercado e até mesmo o caixa que era puxa saco do gerente, possuíam certas semelhanças com aqueles personagens explorados do passado.

    Ana imaginou camponeses egípcios erguendo pirâmides, construindo canais de irrigação enquanto gerentes de camisa branca e gel no cabelo fiscalizavam tudo. Em meio aos pesados blocos de pedra arrastados por homens e mulheres, também não poderia existir algum outro garoto que estava com fome? Seria o supermercado que Ana trabalhava o templo de algum Faraó? Um Faraó que mandava nos gerentes, nos caixas e em todos os outros funcionários? Abriu-se misteriosamente dentro de Ana uma conexão entre a servidão coletiva da antiguidade oriental e a exploração capitalista dos nossos dias.

    Um senhor de idade avançada, passou por Ana e Laura no ponto de ônibus e ofereceu balinhas de eucalipto que estava vendendo. Elas agradeceram e o velhinho seguiu em direção aos carros parados no semáforo. Ele colocou um saquinho de balas sobre o retrovisor de um automóvel importado. Dentro do carro, ouvia-se um homem que comentava com outro sentado no banco do passageiro:
    - É preciso modernizar as relações de trabalho. A Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência vão tirar o Brasil da lama.
    O sinal abriu e ninguém comprou as balinhas.

    Observação: Esta é uma pequena obra de ficção. Apesar do seu pano de fundo ser inevitavelmente histórico, personagens e lugares foram inventados.

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