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Sobre trotskismo, stalinismo e a luta contra a opressão às mulheres
Diana Assunção
São Paulo | @dianaassuncaoED

Diante do fenômeno internacional do movimento de mulheres que sacudiu todo o planeta com uma força imparável, é preciso retomar o debate de estratégias e recorrer às experiências históricas mais avançadas da classe operária internacional para pensar a nossa luta hoje. Para isso, resgato aqui as posições de Trotski em comparação com as posições de Stálin sobre a luta pela libertação das mulheres.

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Para começar resgatando as posições de Trotski acerca da luta das mulheres, é preciso retomar também a grande experiência da Revolução Russa, que foi um verdadeiro laboratório para testar e colocar em prática as ideias bolcheviques para a libertação das mulheres. Em primeiro lugar, é necessário dizer que o marxismo revolucionário, e o trotskismo em particular, sempre defendeu uma visão na luta das mulheres totalmente vinculada à luta de classes e à leitura marxista da realidade, que parte de entender a sociedade dividida em classes e a necessidade de acabar com ela como condição necessária para abrir espaço para o fim de qualquer forma de opressão. Trotski dizia, inclusive, que, para ser um revolucionário, é preciso enxergar a vida com o olhar das mulheres.

Não se tratava de um adendo no processo revolucionário, mas de uma questão central. Também não se tratava de uma visão romântica sobre a libertação das mulheres, e sim de uma batalha científica para realmente avançar pelo fim da opressão. O centro do pensamento bolchevique sobre a libertação feminina se dava com base em quatro princípios: a) união livre; b) emancipação das mulheres através da independência econômica; c) socialização do trabalho doméstico; e d) gradual e inevitável desaparecimento da unidade familiar. Sem avançar nesses pontos, ao lado da planificação da economia e do monopólio do comércio exterior, não seria possível abrir espaço para a libertação das mulheres, incluindo aí a perspectiva internacionalista da Revolução, que foi umas das principais teses de Trotski. A Revolução Russa criou o Código da Família, da Tutela e do Casamento em 1918, um dos mais avançados, legalizou o divórcio (que poderia ser feito até por cartão postal!), legalizou o aborto, a homossexualidade deixou de ser crime, acabou com a divisão entre filhos legítimos e ilegítimos e avançou para a socialização das tarefas domésticas.

Como Trotski já defendeu amplamente em texto sobre a teoria da revolução permanente, uma revolução passaria, necessariamente, por um processo de metamorfose interna, uma vez que os aspectos mais difíceis de se transformar são aqueles preconceitos e hábitos inculcados pela exploração capitalista e, no caso da Rússia, um país atrasado, majoritariamente camponês e feudal, essa tarefa de transformação se tornava ainda mais difícil. É por isso que Trotski, ao longo dos seus textos, dá enorme centralidade para essa mudança “por baixo”. Da mesma forma que Lênin, era um fervoroso defensor das leis e das políticas para livrar as mulheres do trabalho doméstico não remunerado e garantir a igualdade perante os homens, mas considerava que isso não era suficiente. A possibilidade de que, no transcurso da construção do Estado operário – rumo ao socialismo internacionalmente –, famílias proletárias buscassem exercer métodos comunitários de criação das crianças, de alimentação e lavagem das roupas, era também parte de exercer um poder a partir da base da classe operária russa, envolvendo os operários e camponeses homens nesse combate cotidiano pela igualdade das mulheres.

Em discurso de 1925, intitulado “A proteção das mães e a luta pela cultura”, Trotski demonstra de forma contundente como os preconceitos ocupam lugar destacado entre as camadas mais privilegiadas da classe operária. Cita Lênin, que buscava avaliar os partidos da classe operária de acordo com a sua atitude com relação às nações oprimidas, para concluir

“Se tomamos, por exemplo, o operário inglês, será relativamente fácil despertar nele a solidariedade para com o proletariado de seu próprio país; participará das greves e estará inclusive disposto a fazer a revolução. Porém será muito mais difícil que se sinta solidário com um coolie chinês, que o trate como um irmão explorado, já que isso implica em que rompa com a carapaça de arrogância nacional, solidificada durante séculos.” [1]

Trotski utilizou este exemplo para dizer que, da mesma forma, encontra-se solidificado durante milênios, e não durante séculos, a carapaça dos preconceitos do chefe de família frente à mulher e à criança. Trotski dizia que a mulher é o coolie (trabalhador chinês) da família. Por isso, neste discurso às mulheres operárias, completou

“Vocês devem ser a força moral que arrasará com esse conservadorismo enraizado na nossa velha natureza, na escravidão, nos preconceitos burgueses e nos da própria classe operária, que neste sentido, arrasta o pior das tradições camponesas. E todo revolucionário consciente, todo comunista, todo operário e camponês progressista, se sentirá obrigado a vos apoiar com todas as forças”. [2]

Para Lênin e Trotski, a planificação da economia era a condição material da libertação das mulheres, porém, insuficiente. Para além das leis que o Estado operário promulgou – considerado por ambos como extremamente avançadas –, era preciso se chocar também com o atrasado que ainda existia em amplos setores de massas. O Estado operário, portanto, tinha uma série de elementos de “transição”, que buscavam lidar com costumes e questões do modo de vida que ainda eram predominantes em uma sociedade capitalista, ainda que feudal, como a Rússia, mas que não poderiam ser destruídos do dia para a noite, como a própria organização familiar.

Em “Para construir o socialismo é preciso emancipar a mulher e proteger a maternidade”, Trotski diz que a profundidade do problema da mulher está dada pelo fato de que ela é, em essência, o elemento vivente no qual se entrecruzam todos os fios decisivos do trabalho econômico e cultural. É nisso que reside os esforços para libertar a mulher economicamente do jugo do homem, com leis que protegessem a maternidade, mas também libertar as mulheres das tarefas domésticas permitindo um novo horizonte, inclusive com o esforço empreendido por Lênin para que as mulheres passassem a ocupar postos de direção nos sovietes e no próprio Estado operário.

Essa definição, bem como a experiência prática, arrebenta com todas as teorias que consideram que a luta contra a opressão à mulher não é uma luta revolucionária, ou até mesmo teorias que buscam igualar a questão de classe e a questão de gênero, diluindo a questão da exploração capitalista – sem levar em conta que metade da classe trabalhadora, hoje, é mulher e, em países como Brasil, é negra. A Revolução Russa é a expressão da máxima dialética entre ambas, como podemos ver nesta citação de Trotski do mesmo texto

“Assim como era impossível construir o Estado soviético sem libertar o campesinato dos laços da servidão, também será impossível construir o socialismo sem libertar a mulher operária e camponesa dos grilhões do trabalho com a família e o lar. [...] A liberação da mulher significa cortar o cordão umbilical que ainda une o povo às superstições do passado.” [3]

Ao mesmo tempo é importante ver como Trotski encarava o processo de burocratização stalinista do Estado Operário na Rússia. Enquanto defendia a revolução socialista diante das perguntas da revista Liberty em “14 perguntas sobre a vida e a moral na União Soviética”, de 1933, era também capaz de dilacerar o cerne da burocratização stalinista do Estado operário no excelente texto “Termidor no lar”, que integra sua importante obra “A Revolução Traída” [4]. Trata-se de uma visão objetiva do caráter do Estado operário, da situação da burocracia stalinista e da necessidade de uma revolução política que defendesse as conquistas da revolução e recolocasse no poder a classe operária russa na luta pela revolução internacional como única forma de avançar ao socialismo.

Esse texto, acerca da situação da família no Estado operário, resume de forma bastante contundente o que Trotski já havia desenvolvido em dois dos textos que também compõem essa compilação, “Da velha à nova família” e “A família e os rituais”, ambos parte do livro “Questões do Modo de Vida”, em que defende a tese de que a família é uma pequena empresa (por suas tarefas domésticas) que aprisiona a mulher atrofiando sua mente e impedindo qualquer tipo de liberdade, e que portanto é tarefa do Estado operário libertar a mulher das tarefas domésticas. À pergunta sobre se o socialismo destrói a família, Trotski responde

“Se alguém entende por ‘família’ uma união compulsória baseada no contrato matrimonial, na benção eclesiástica, propriedade de direitos e o passaporte comum, então o bolchevismo destruiu completamente esta família. Se alguém entende por ‘família’ o domínio ilimitado dos pais sobre os filhos e a ausência de direitos legais para a esposa, então, o bolchevismo desafortunadamente não pôde acabar por completo com este resíduo da barbárie social. Se alguém entende por ‘família’ à monogamia ’ideal’, em seu sentido real e não legal, então os bolcheviques não podem destruir algo que não existe e nem existiu, salvo em afortunadas exceções.” [5]

Toda essa visão e essa experiência expressas no pensamento de Trotski tem seu coroamento com o texto “Termidor no lar” uma verdadeira arma de combate ao stalinismo. Trotski vai demonstrar a traição levada a cabo pelo stalinismo, e particularmente como esse verdadeiro termidor se expressa no retrocesso em relação à luta das mulheres. A crítica mais feroz de Trotski nesse âmbito é o retrocesso em relação ao direito ao aborto

“Um dos membros do Tribunal supremo soviético, Soltz, especialista em questões relacionadas ao casamento, justifica a próxima interdição do aborto dizendo que, não conhecendo a sociedade socialista o desemprego, ela, a mulher, não pode ter o direito de rejeitar as ‘alegrias da maternidade’. Filosofia de padre, ainda por cima com punho de policial.” [6]

O que significou a burocratização stalinista para a luta das mulheres? A partir de 1926, instituiu-se novamente o casamento civil como única união legal. Mais tarde, aboliu-se o direito ao aborto, junto com a supressão da seção feminina do Comitê Central e seus equivalentes nos diversos níveis de organização partidária. Em 1934, voltou-se a proibir a homossexualidade, e a prostituição se converteu em delito. Não respeitar a família se converteu numa conduta “burguesa” ou “esquerdista”. Stálin declarou em 1936: “O aborto que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmos direitos que o homem, mas isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe assinalou: é mãe, da vida”. Instauração da pena de morte a partir dos 12 anos. A mulher que tivesse mais de 10 filhos ganhava uma medalha de “Mãe Heróica”. Voltou a condição de filhos ilegítimos. O divórcio se transforma num trâmite custoso e cheio de dificuldades. Todas essas informações podem ser constatadas no brilhante estudo de Wendy Goldman no livro Mulher, Estado e revolução. [7]

Isso significa que se, no âmbito geral da Revolução, o processo de burocratização stalinista significou uma contrarrevolução, isso também se expressou “no lar”, ou seja, nos elementos mais fundamentais da transformação da vida das mulheres. Nesse âmbito, significava um retrocesso total nas ideias libertárias, o que estava acompanhado da definição de que a tomada do poder tinha sido 90% da Revolução, ou seja, que faltava muito pouco e se daria apenas em nível internacional. Esta era a teoria do socialismo em um só país, que negava a teoria da revolução permanente de Trotski, a qual, ao contrário, dizia que aquilo era somente 10% e que a Revolução começava em nível nacional, avançava internacionalmente e se completava mundialmente.

É preciso dizer que o stalinismo também perseguiu enormemente Trotski e toda a Oposição de Esquerda, incluindo as grandes dirigentes oposicionistas Eugenia Bosch, Nadejda Ioffe, Tatiana Miagkova, Larissa Reisner, entre outras. Eugenia Bosch, considerada por Trotski a grande agitadora de exércitos, e Larissa Reisner, um “meteoro incendiário que passou no céu vermelho da revolução”.

Tudo o que a Revolução Russa proporcionou à mulher, desde o protagonismo de tantas revolucionárias, até dar passos concretos no sentido de abrir espaço para a libertação das mulheres diante da vida, e não somente da lei, passando pelos retrocessos do stalinismo, temos que pensar e imaginar que Trotski e os bolcheviques e as bolcheviques fizeram tudo isso, garantindo direitos elementares das mulheres, 77 anos antes de o Brasil liberar o divórcio, apenas para dar um exemplo.

Por isso temos muitas lições a tirar do pensamento de Trotski em sua relação com as mulheres. A primeira é de que estamos de acordo com todas as mulheres que querem destruir o patriarcado; a segunda é de que, talvez, não tenhamos acordo que o patriarcado vá cair sozinho, nós teremos que derrubá-lo e, para derrubar o patriarcado, precisaremos derrubar o capitalismo. Isso porque, depois de muitas correntes do feminismo, seja o radical que considera que os homens são os inimigos, seja o pós-moderno, que isenta o Estado capitalista no que tange à opressão de gênero, muitas correntes não consideram necessário destruir o capitalismo. Tem as correntes de conciliação de classes aberta, como é, por exemplo, o PT no Brasil. Ou até mesmo as vertentes do reformismo que acham possível administrar o capitalismo de forma humana, o que se mostrou uma mentira com a experiência do Syriza na Grécia. A experiência da Revolução Russa e o pensamento de Trotski mostram que essas lutas são inseparáveis e isso se reatualiza ainda mais ante um governo de extrema-direita, fruto de um golpe institucional, como é o governo de Jair Bolsonaro.

É por isso que o debate de estratégias, e, portanto, o trotskismo, são tão vitais para um momento em que o movimento de mulheres em nível internacional vem crescendo como uma força impressionante.

No século XXI, talvez tenhamos a possibilidade de tornar concreta a consigna de Trotski de que “para ser um revolucionário, é preciso enxergar a vida com o olhar das mulheres” não somente porque este seja nosso programa, cravado nas páginas da fundação da IV Internacional, que propunha “abrir passagem à mulher trabalhadora”, mas porque o trotskismo nos permite enxergar que a luta das mulheres é imparável junto a classe trabalhadora, e que o trotskismo hoje pode dizer “não se trata de abrir passagem, assumam a vanguarda, passem por cima” e façam da revolução proletária uma revolução com rosto de mulher, o que no Brasil significa uma revolução com o rosto da mulher negra.

 
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