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Histórias do proletariado digital
Escravidão, entregas, dois reais e setenta e cinco centavos
Afonso Machado
Campinas

Este é o primeiro conto de uma série que leva o título de Histórias do proletariado digital.

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Um sol impessoal iluminava sem calor os escombros da cidade de Campinas. Por entre os detritos da cidade, uma louca fauna passeava. Junto a ratos e escorpiões, “ nóias “ mendigavam com olhares de abstinência em busca da trêmula pedra de cada dia. Uma senhora remexia as lixeiras das ruas do centro da cidade. Em uma das lixeiras, ela encontra um jornal aonde se lê que segundo o presidente do país, não existe fome no Brasil. Essa senhora que não se lembrava da última vez em que comeu algo, ficou pensando se ela e seus conhecidos de rua eram uma invenção, se eles realmente existiam, se a sua fome era real. Não muito longe daquela lixeira aonde mendigos se misturavam com o resto de tudo, era possível ouvir quatro pneus rasgando a paisagem: um casal de classe média dirigia em alta velocidade na direção de um shopping center. Ao observar o automóvel passar zunindo em frente ao boteco, um malandro armado com um palito de dente, um sorriso debochado e o taco de sinuca nas mãos, exclama:

- Esses daí são verdadeiros patriotas! Estão com pressa para ir cantar o hino nacional...

Atrás da fumaça do referido automóvel, Mauro vinha todo esbaforido em sua bicicleta, fazendo inúmeras entregas. Ele acena para os amigos do boteco. Atrás do balcão o Sr André, dono do pequeno estabelecimento, abastecia a estufa de salgados com uma bacia de ovos cozidos. Ele comentou com um velho que bebia cachaça no balcão:

  •  Esse Mauro não tem medo de trabalho... Eita menino ambicioso! Um dia será o seu próprio patrão! É um rapaz empreendedor com toda certeza...

    Mauro seguiu a avenida deixando o boteco para trás, um boteco localizado entre duas lanchonetes que pertenciam a poderosas redes de fast food. Naquela manhã essas lanchonetes venderam montanhas de hambúrgueres enquanto os ovos do Sr André ficaram encalhados na estufa: não iria demorar muito para os ovos ficarem podres. Um jovem universitário passava pela calçada e falando ao celular exclamou:

  •  Faço questão de defender o livre mercado!

    Sete quarteirões adiante estava Mauro em sua bicicleta. O rapaz trabalhava sem parar. Ele passava a manhã, a tarde e a metade da noite entregando sanduiches e pizzas. A pesada mochila colocada atrás da sua bicicleta ajudava na hora de descer as ladeiras, mas era pesada feito chumbo quando tinha que subi-las. Este jovem de 20 anos vivia com a cabeça forrada de sonhos. Estava noivo e planejava abrir sua própria empresa. Uma lanchonete talvez? Sim, era uma ideia auspiciosa que na realidade funcionava como um sonho B, já que aos 18 anos ele quis ser jogador de futebol: esse era o sonho A! Mas o então aspirante a atacante sofreu uma lesão no tornozelo esquerdo que o impediu de seguir carreira. Quando subia uma rua com a bicicleta, sempre com um olho no relógio e o outro no semáforo, o tornozelo doía. Ele então pensava:

  •  Não vou desistir! Deus, nosso Senhor, está me testando para que eu possa vencer! Um dia serei campeão, vou juntar muita grana e serei um grande empresário.

    Por volta das 17 h, cansado de pedalar, ele encontra 3 outros rapazes que também fazem entregas de bicicleta. Eles estavam igualmente exaustos e decidiram descansar. Mauro faz um aceno e decide dar um tempo sobre a sombra refrescante daquela imensa árvore que acolhia ,com velhos braços-galhos, aqueles trabalhadores.

  •  Ô mano, cê tá acabadão, rs.
  •  Para véio, deixa o Mauro, o cara tá sempre trampando sem reclamar.

    Mauro dá uma risada espaçosa e estala a palma da sua mão ao encontro das palmas dos 3 conhecidos. Um deles, Jorge, mal conversa com os demais. Ele não tira os olhos do celular. Não demorou muito para todos eles seguirem o exemplo e também baixarem mecanicamente suas cabeças sobre os seus próprios celulares. Jorge sorria diante de um vídeo. Mauro mandava um zap para a noiva, que trabalhava como caixa num supermercado, no outro lado da cidade. Os rapazes estavam cansados. O suor das testas entrava em contato com um sopro seco do vento de julho. Não passava pela cabeça deles que centenas de rostos suados já passaram por aquele mesmo local em outras circunstâncias históricas.

    Em meados do século XIX, escravos eram vendidos e surrados naquele mesmo local. Os trabalhadores da era digital não conheciam a história de Campinas, uma cidade em que tantos pés de café foram plantados com o sangue de tantas gerações de escravos. Sim, uma cidade de barões cuja riqueza foi assegurada pela brutalidade dos feitores que montados em seus cavalos agrediam diariamente homens e mulheres. Mas o que Mauro e seus amigos tinham a ver com isso? Afinal, eles eram rapazes que acreditavam no CNPJ, eram autônomos que sonhavam com os louros do espírito empreendedor. Porém, curiosamente, mesmo tendo passado tantos anos, havia ainda naquele local uma atmosfera de chicote, um ar de opressão. Era como se um tronco eletrônico estivesse ali para deixar em carne viva o dia e as esperanças daqueles 4 jovens. Esses proletários da era do capitalismo de serviços, também desconheciam as histórias de luta e resistência da era da escravidão. Eles não sabiam que ali aonde estavam, foram desferidos muitos golpes de capoeira contra feitores. Foi ali que muitos planejaram em silêncio fugas nas madrugadas das fazendas. Desconhecendo tudo isso, Mauro exclama aos outros:

  •  Bora trabaiá !

    Mauro estava com as forças renovadas. Recebeu um pedido e atravessou ruas e mais ruas para entregar um lanche. Ao receber o dinheiro, viu que para ele sobraram apenas dois reais e setenta e cinco centavos.

  •  Porra! 2,75! Isso não integra nem uma passagem de busão!

    Mauro decidiu ir para casa mais cedo. Ele foi embora confuso, talvez cansado demais para raciocinar. Olhando as primeiras estrelas do céu e imaginando o primeiro homem que pisou na lua há 50 anos, Mauro estava fora de órbita.

    Observação: Esta é uma pequena obra de ficção. Embora o pano de fundo seja inevitavelmente histórico, personagens e lugares foram inventados.

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