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CINEMA
“Branco sai, Preto fica” – uma bomba armada contra o Estado racista
Fernando Pardal

Com “Branco sai, Preto fica” podemos dizer, com segurança, que a produção cinematográfica independente, feita pela e para a periferia, atingiu um nível de maturidade que permite se apresentar como uma linguagem própria, inovadora, contundente, que consegue atingir exatamente o ponto que os personagens do filme de Adirley procuram: ter sua própria linguagem para exercer um verdadeiro ataque, uma vingança contra o Estado, o governo e a polícia.

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FOTO: Divulgação

“Da nossa memória fabulamos nóis mesmos”

- frase dos créditos de “Branco sai, Preto fica”

Anos 1980, Ceilândia, cidade satélite de Brasília, a periferia da capital do país. A quebrada onde alojaram os candangos, os operários que deram suas vidas e seu suor para construir o luxuoso e ambicioso projeto de cidade de Juscelino Kubistchek.

Ali, como na periferia de qualquer grande cidade, a vida ferve, procura seus caminhos a despeito da pesada exploração. A juventude organiza o “Quarentão”, baile black que se torna um indisputável lugar de encontro, de lazer, de cultura, de arte. Muita música e dança. Muita alegria, muita convergência de gente que fora excluída do “mercado do entretenimento” e fizera sua própria via; alegria demais para que se deixasse essa juventude se reunir livremente. O Estado não permite, e, como hoje proibindo os bailes funks em cada periferia, ele decidiu atacar o Quarentão. Onde há encontro dos que estão “por baixo”, há potencial de problema. Há independência, há liberdade, e isso gera complicação, questionamento.

Em 5 de março de 1986, o braço armado do Estado, a polícia, invade o quarentão. “Olha os cana, os pé de bota”. Assim é descrita no início do filme “Branco sai, Preto fica” a chegada da polícia ao quarentão. Quem narra esse relato é Marquim do Tropa, que desse dia em diante ficaria confinado a uma cadeira de rodas para o resto de sua vida, fruto da ação dos “pé de bota”. Ele é simultaneamente ator e personagem do filme, e também amigo de infância de Adirley Queirós, o diretor e roteirista que bancou a ideia de colocar essa história em um filme.

“Bora, bora, bora! Puta prum lado, viado pro outro! Bora, porra. Anda, porra. Tá surdo, negão? Encosta ali. Tô falando que branco lá fora e preto aqui dentro. Branco sai e preto fica, porra.”

É assim que Marquim lembra a abordagem policial no baile. Outro amigo dele e de Adirley, o Shockito (no filme representado por ele mesmo, mas apresentado sob o nome de Sartana) também foi gravemente ferido, tendo sido atropelado pela cavalaria e perdendo uma perna.

Se fosse apenas um filme que retratasse a criminosa repressão de um Estado racista contra a organização cultural da juventude negra da periferia, “Branco sai, Preto fica” já seria um ótimo filme. E era essa a intenção inicial de Adirley. Mas se isso tivesse acontecido assim, ele não seria o filme excepcional que de fato é, que quebra paradigmas de “como” fazer filmes e trás uma linguagem nova, poderosa e perigosa. O que há de genial nesse longa-metragem, é importante que se ressalte isso, é uma criação coletiva dos que participaram nesse projeto.

O próprio Adirley deixa isso claro ao falar sobre a concepção do filme: “No começo, a ideia era fazer um documentário clássico sobre o baile do Quarentão. Tudo mudou quando propus o projeto ao Marquim. Ele disse que não, que não queria um filme contando a vida dele, mas, sim, um filme de aventura". Assim, nasceu um filme que é simultaneamente um documentário e um filme de ficção científica. Uma obra-prima filmada com o orçamento incrivelmente baixo de R$ 221 mil, e que por isso mesmo é obrigado a inventar soluções estéticas incríveis, que simplesmente deixam no chão as batidas imitações de Hollywood que o “grande cinema” brasileiro e as novelas da Globo querem fazer. A representação dramática do velho cinema burguês dá lugar a uma narrativa épica; mas isso é um assunto para outro artigo.

O filme têm três “personagens principais” em seu enredo: o tempo, a música e a violência – a de Estado, e a respectiva vingança contra ela.

A nostalgia marca presença nas cenas de Marquim, que, por meio de uma narrativa de programa de rádio, revive as boas noites do Quarentão. Ali onde a voz de Marquim ganha as ondas sonoras, não há roteiro, nem tampouco a restrição à atuação para a câmera. Segundo Adirley, “Não existia roteiro, porque o filme todo era baseado na ideia da fabulação. Eu propunha histórias e acontecimentos. A partir daí, eles [atores] buscavam na memória o que podia ser falado. Cada dia, dependendo do clima, acontecia uma coisa.” Além disso, as falas não eram apenas gravadas para o filme, mas eram transmissões ao vivo de rádio que percorriam a Ceilândia.

A violência de Estado que de certa forma prende Marquim e Sartana naquele dia fatídico são o motor de uma vingança futura, que eles planejam cuidadosamente para atacar Brasília, o centro irradiador da repressão. Esse ato de insubordinação era o foco central ao pensar o filme, e Adirley fala sobre isso: “Nossa determinação era fazer um filme político, que questionasse, que fosse para o enfrentamento. Talvez tenha sido a parte mais deliberada, mais planejada. É uma vingança contra o Estado, o governo, a polícia. Equipe e atores eram motivados a fazer um filme em que iríamos pra frente do opressor.”

A escolha da arma não poderia ser outra: quando a repressão estatal veio, o objetivo era destruir sua música, sua cultura, que foram corretamente entendidos pelos poderosos como uma perigosa arma. Anos depois, eles retomam essa mesma arma: o rap, o forró, o funk e os sons do povo de Ceilândia, seus camelôs, suas ruas. Nos anos 1980 apavoraram os donos do poder com os bailes black do Quarentão, e agora retornam com a música dos pobres, dos trabalhadores, dos negros e da periferia que, mesmo com suas cavalarias e porretes, não foram capaz de silenciar.

Em paralelo, há a história de Dimas Cravalanças, um “agente terceirizado” do Estado brasileiro que retorna no tempo até os dias em que se passa o filma para recolher provas da violência estatal contra as populações periféricas. No retrato de Dimas há diversas alusões e críticas ao Estado brasileiro tal qual ele é hoje, e os fantasmas que assombram o ano de 2070 e que são os herdeiros de nosso miserável presente: a Vanguarda Cristã passa a dominar a política (e isso porque o filme foi feito antes de Eduardo Cunha celebrar sua eleição como presidente da Câmara), e a “justiça” que o Estado propõe realizar com as provas coletadas por Cravalanças são “indenizações” para as famílias. Há aí alguma semelhança com os parcos limites da atuação da Comissão Nacional da Verdade impulsionada pelo governo petista? Além disso, tendo enviado Dimas para o passado com a missão de recolher tais provas, logo o Estado dirigido pela Vanguarda Cristã irá exigir outro papel dele: desarmar o plano de vingança de Marquim e Sartana; chantageiam-no para que o faça, sob pena de não mais poder voltar para o futuro caso se recuse. Do agente do Estado, como com a polícia no Quarentão, continua se exigindo sempre o papel repressor. Uma dura mensagem para os que alimentam ilusões de que qualquer resposta democrática possa vir daí.

O tema da periferia e do racismo é o carro-chefe da obra de Adirley, e a construção de Brasília, sua segregação espacial planejada e implementada a ferro e fogo, que marca a história de Adirley e sua família, não deixa de aparecer no filme sob a forma da ficção – que retrata cruelmente o que a realidade de fato cria. Marquim contrata os serviços para ajudar a concretizar sua vingança oferecendo passaportes falsos para entrar em Brasília, onde, no filme, os habitantes das cidades satélites precisam de tais documentos para transitar; nas cidades que habitam há o toque de recolher imposto pela “polícia do bem estar”. As palavras de Adirley são inequívocas nesse ponto: “A cidade tem um histórico de opressão. Nos anos 70, o governo de Brasília pegou 80 mil pessoas e jogou 50 quilômetros cerrado adentro. Ceilândia nasceu de um apartheid, de um aborto territorial. Durante muito tempo, ela foi estigmatizada como a grande periferia do Distrito Federal. É um lugar de muita migração, principalmente nordestina. É completamente diferente de Brasília, tanto na arquitetura quanto no modo de viver”. Em obras anteriores, como o documentário “A cidade é uma só”, o diretor também aborda esse tema.

Com “Branco sai, Preto fica” podemos dizer, com segurança, que a produção cinematográfica independente, feita pela e para a periferia, atingiu um nível de maturidade que permite se apresentar como uma linguagem própria, inovadora, contundente, que consegue atingir exatamente o ponto que os personagens do filme de Adirley procuram: ter sua própria linguagem para exercer um verdadeiro ataque, uma vingança contra o Estado, o governo e a polícia. Não há aqui nenhuma imitação domesticada do cinema burguês; há uma bomba, mirada para Brasília em todos as suas significações, e para a estética velha e carcomida que se enfia goela abaixo dos explorados e oprimidos.

(Citações de Adirley Queirós extraídas do site da VICE: )

 
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