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ABORTO
Nós, mulheres negras precisamos lutar contra a criminalização do aborto
Natalha Roberto
estudante de Obstetrícia da USP - Leste

O texto a seguir pretende discutir as implicações da criminalização do aborto com foco na mortalidade materna de mulheres negras, assim como, o papel do Estado Brasileiro que ao não garantir o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, corrobora com as milhares de mortes anuais e ao mesmo tempo não garante o direito a maternidade plena para as mulheres que decidem ser mães.

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No Brasil, o aborto é considerado crime contra a vida humana segundo o Código Penal Brasileiro, permitido somente quando há risco de vida da gestante, em casos de gravidez por estupro e quando o feto é anencefálico. Mesmo com a clandestinidade da prática, estima-se que cerca de um milhão de mulheres abortam por ano no Brasil, sendo essa uma das principais causas de morte materna (15%), sobretudo de mulheres negras e pobres, devido à adoção de procedimentos insalubres e a falta de atendimento no pós-abortamento.

O aborto como questão de saúde pública

Devido a sua ilegalidade, dificilmente encontramos dados oficiais que apontem o número aproximado de interrupções de gravidez no Brasil, sendo assim, os dados que esse texto se baseia foram recolhidos de pesquisas acadêmicas ¹ sobre o assunto. Por ser considerado um tema sensível e de difícil declaração de quem o induz, o número de abortos possivelmente ultrapassa de um milhão por ano.

O fato é que mesmo criminalizado as mulheres não deixam de abortar e, por consequência, não deixam de morrer em decorrência da adoção de métodos clandestinos. Enquanto mulheres da pequena-burguesia e da burguesia abortam em consultórios médicos com toda a higiene e o cuidado necessário, as mulheres negras e pobres recorrem a clínicas clandestinas de baixa qualidade, o famoso “fundo de quintal”, que cobram cerca de R$ 6.000 por procedimento, movimentando uma verdadeira máfia que lucra absurdamente com a ilegalidade.

Entretanto, o preço cobrado por essas clínicas não condiz com a realidade da maioria esmagadora das mulheres brasileiras. O uso do cytotec (misoprostol, utilizado no tratamento de úlceras do estômago), a introdução de objetos pontiagudos no útero e agressões com socos e pontapés na barriga ainda são os principais métodos abortivos utilizado por mulheres negras e pobres. As consequências dessas práticas inseguras resultam em hemorragias, perfuração do útero, esterilidade, infecções e muitas vezes a morte. Apesar disso, o Estado Brasileiro nem sequer se propõem a discutir com seriedade a legalização do aborto, colocando pautas religiosas a frente do direito de escolha que todas as mulheres deveriam ter sobre seu corpo.

Educação sexual para decidir, contraceptivos para não engravidar, aborto legal, livre e seguro para não morrer!

Nenhuma mulher gosta de abortar, isso é fato! Um procedimento tão invasivo ao corpo não é uma prática recreativa como alguns setores fundamentalistas religiosos tentam colocar. Ao decidir abortar, as mulheres passam por um emaranhado de sentimentos sejam eles de origem econômica, religiosa, ideológica, moral ou cultural. Mesmo as mulheres com condições financeiras de realizar um aborto seguro não estão isentas de passar por implicações psicológicas de toda ordem. A ilegalidade afeta a todas, não importa o credo, classe social, etnia e orientação sexual.

Entretanto, em nosso país as vítimas da criminalização do aborto têm cor e classe social. As mulheres negras e pobres em processo de abortamento, quando não morrem pelas condições insalubres, são sujeitas a infinitas humilhações de caráter físico ou emocional ao adentrarem nos estabelecimentos de saúde. Sentimentos de culpa, autocensura e solidão, assim como o medo de ser punida judicialmente estão presentes em todos os casos.

Além disso, as políticas públicas para se evitar uma gravidez indesejada no Brasil são insignificantes. A começar pela insuficiente assistência à saúde, em especial da mulher. Marcar uma consulta ginecológica e realizar exames periódicos (Papanicolau, ultrassom transvaginal, colposcopia etc) não é tão simples para quem enfrenta a fila do SUS. Também é um agravante a falta de educação sexual e discussão de gêneros nas escolas, essencial para uma política pública efetiva na prevenção de gravidez indesejada e DST´s. Pois além de educar nossos jovens para o uso correto dos métodos contraceptivos e anti-DST, também educa sobre a diversidade sexual e de gênero, problematizando a sexualidade sexista que nos é empurrada goela abaixo.

Nesse sentido, o racismo e o machismo institucional se materializam quando o Estado não garante educação sexual e de gênero à juventude para que tenha consciência de sua sexualidade e corpo e, ao mesmo tempo, não oferece assistência necessária à saúde, principalmente no caso das negras e dos negros. Por isso, a questão do aborto vai muito além da interrupção da gravidez, por sua relação direta com as mortes de mulheres devido à falta de políticas públicas. Desse modo, se faz necessário que seja legalizado, oferecido de forma gratuita e de qualidade, para barrarmos as milhares de mortes anuais em consequência de práticas clandestinas e garantirmos o direito de escolha para todas as mulheres.

Maternidade e solidão da mulher negra

Enquanto o Estado se omite frente às mortes por abortos clandestinos ao negar o direito de escolha, ao mesmo tempo, não garante o direito pleno a maternidade. Ou seja, morram por abortos clandestinos, mas caso queiram ser mães, não garantiremos creches, educação, emprego e saúde para suas crianças e pra você! “Quem pariu Mateus que o embale” já dizia o velho ditado machista.

Para mulheres negras e pobres essa realidade é ainda mais dura. São elas as principais vítimas de violência obstétrica e da negligência no atendimento ao pré-natal ², assim como, da falta de vagas em creches, da dupla jornada, do emprego precário e do desemprego. Mães negras, em sua maioria vivenciam a maternidade de forma solitária, afinal num país de tradição escravocrata e patriarcal, mulheres negras são abandonadas por seus parceiros, enquanto mulheres brancas, apesar das dificuldades, encontram maior facilidade de estruturar suas famílias e cuidar de suas crianças.

Nossa cultura machista coloca todo o peso da contracepção nas costas das mulheres. Caso engravidem é um problema individual de cada uma delas, não se trata da responsabilidade de duas pessoas que tiveram relação sexual. Sendo assim, a responsabilidade da criação e da educação de suas crianças recaem exclusivamente em cima das mulheres.

De acordo com os dados da Fundação SEADE do estado de São Paulo ³, mulheres negras são responsáveis pela gerencia familiar na maioria dos domicílios brasileiros, superior até se comparado aos homens brancos. Ainda, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) 5,5 milhões de brasileiros em idade escolar não possuem o registro paterno em sua certidão. Ou seja, o aborto masculino é totalmente legalizado no Brasil, enquanto a maternidade é compulsória e sem nenhum direito garantido.

Por todos os elementos colocados, nós mulheres negras temos que ser a linha de frente na luta pelo aborto legal, seguro e gratuito, assim como, pela maternidade plena que garanta todos os direitos necessários para àquelas que desejam serem mães, como a licença maternidade, creches, restaurantes e lavanderias coletivas e o acesso total à educação e saúde de nossas crianças.

[1] http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v37n98/a14v37n98.pdf
[2]http://www.esquerdadiario.com.br/Saude-e-mulher-negra-Quando-a-cor-da-pele-determina-o-atendimento
[3] http://produtos.seade.gov.br/produtos/idr/fam/dem_fam_11.htm

 
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