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CRISE DO GOVERNO
O que concluir da primeira grande crise do governo Bolsonaro?
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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As movimentações atípicas identificadas pelo Coaf na conta do ex-assessor de Flávio Bolsonaro, o policial reformado Fabrício de Queiroz, estouraram como a principal crise política do governo de transição até aqui. Segundo as informações do Coaf, pelo menos oito assessores de Flávio Bolsonaro realizaram depósitos na conta de Queiroz, que operou um repasse de R$ 24 mil para a futura primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Todas as respostas do clã Bolsonaro foram defensivas e evasivas, mostrando a posição frágil de políticos sem a mesma envergadura do "alto clero" da política burguesa para esconder as inúmeras redes de corrupção que entrelaçam o Executivo, o Legislativo e o Judiciário junto aos empresários, latifundiários e banqueiros (sem esquecer o aparato repressivo e suas milícias).

As raízes do relatório do Coaf podem ser rastreadas já em novembro de 2017, durante a Operação Cadeia Velha, que resulta na prisão de vários deputados estaduais do Rio de Janeiro, entre eles Jorge Picciani (MDB-RJ). Um ano depois, no âmbito da Operação Furna da Onça, dirigida pelo MPF do Rio de Janeiro (e pelo juiz Marcelo Bretas, um dos principais aliados de Moro), dá-se a prisão preventiva de diversos deputados e assessores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Segundo pertinente hipótese de Luís Nassif, Flávio Bolsonaro conheceu no intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018 que seus assessores constavam na lista do Coaf. Não teve sucesso em evitar a publicidade da questão, não antes de que estivesse assegurada a eleição de Bolsonaro e seu programa ultraneoliberal de extrema direita.

Sem estarem esclarecidas todas as principais coordenadas, cada dia que passa deixa mais claras as principais funções do relatório do Coaf. 1) ao permanecer nas sombras durante o pleito eleitoral de 2018, as informações já de longa data conhecidas pelo Judiciário não comprometeram a eleição de Bolsonaro; como principal pilar do golpe institucional, o autoritarismo judiciário não cometeria a "gafe" de jogar por terra toda a manipulação eleitoral que resultou no triunfo da extrema direita como continuidade direta do golpismo de 2016. 2) Tendo assegurado Bolsonaro eleito, o relatório do Coaf poderia vir a ser um instrumento para excluir a família presidencial do processo decisório, ou seja, separar Jair Bolsonaro de seus filhos, cujas atitudes já mostram ser fontes permanentes de crises para um presidente que precisa se concentrar nos ajustes.

Mas há um terceiro aspecto necessário para separar o essencial do secundário, e não perder os fatores determinantes da "grande política", nos termos de Antonio Gramsci. Para Gramsci, a grande política assume como horizonte a “luta pela defesa e conservação de uma determinada estrutura social e política”, expressando ao nível da política uma "visão de mundo" (ao contrário da "pequena política", que reduz os conflitos a escaramuças parlamentares e às lutas pelo predomínio “no interior de uma estrutura já estabelecida”). Desse ângulo, fica claro, em primeiro lugar, que todo o debate sobre o "combate à corrupção" feito na imprensa oficial e pelo "fatores reais de poder" esteve (e está) a serviço de levar adiante o golpe institucional e suas reformas no campo econômico, com o objetivo de alterar substancialmente a relação de forças entre as classes, pela direita, para "conservar uma determinada estrutura social" que, ainda que arcaica, encontra um recife de problemas para subsistir sem atacar estruturalmente as massas trabalhadoras.

Nunca houve intenção de combater a impunidade dos capitalistas e seus políticos. A reacionária Lava Jato de Sérgio Moro tratou sempre de substituir um esquema de corrupção com o rosto do PT por um esquema com a cara da direita, abrindo caminho às privatizações e especialmente à entrega da Petrobras às petroleiras estrangeiras.

A corrupção é inerente ao sistema capitalista, inseparável de seu modo decadente de produção e exploração. Todos os jogos de poder no capitalismo, as relações entre os "fatores reais de poder", envolvem a corrupção como um dispositivo tão importante como a artilharia para um Exército. Desde 2016, vem sendo usada como o principal ativo do autoritarismo judiciário para avançar no golpe institucional.

Significaria desconhecer o que passa pela "grande política" da burguesia considerar que Moro foi recompensado por "opor-se à impunidade": especialmente um personagem que acobertou e enterrou em 2003 (com a conivência de Lula e do PT) o enorme escândalo de corrupção do Banestado que envolveu diversos dirigentes do PSDB na década de 90, em esquemas de desvio de verbas para o estrangeiro. Moro é um superministro da Justiça com interesses profundos no horizonte econômico, e pelas credenciais de um juiz treinado pelo Departamento de Estado norte-americano, representa interesses privatizadores de certos monopólios imperialistas no Brasil (com destaque, as petroleiras, como a Shell).

Assim, o relatório do Coaf representa - não a fábula do "combate à corrupção" - um dos mecanismos do disciplinamento de alas do regime para que Bolsonaro prepare de fato a implementação da reforma da previdência e os ajustes neoliberais no campo da economia.

Bolsonaro foi escolhido (em oposição ao PT, no segundo turno) pelo capital financeiro internacional, a grande burguesia nacional, a grande imprensa, e as instituições que sustentaram o golpe institucional, para um objetivo basilar: aplicar duríssimos ajustes e com isso alterar a relação de forças entre as classes, fortalecendo seu sentido à direita. Não há dúvida para os capitalistas de qual é a reforma hierárquica que subordina todas as demais: a reforma da previdência. A reforma da previdência, uma vez aplicada, deve abrir caminho a uma alteração mais estrutural das condições econômicas da classe trabalhadora e dos setores populares, que através da privatização e da reforma trabalhista envolve a destruição dos direitos sociais mais elementares no altar do neoliberalismo decadente da burguesia brasileira, ainda mais subserviente ao imperialismo (em primeiro lugar o de Trump nos Estados Unidos).

Aos olhos da classe dominante, Bolsonaro e a família presidencial ainda não entenderam a mensagem até agora. As declarações de Eduardo Bolsonaro diante de empresários norte-americanos, dizendo não saber se "a reforma da previdência conseguiria ser aprovada", foi um testemunho exemplar que a burguesia não poderia ignorar (e prova de que é necessário remover os filhos de Bolsonaro dos processos decisórios).

O clã Bolsonaro está de acordo em aprovar esse ataque selvagem às aposentadorias. O problema é que a esmagadora maioria da população, inclusive sua base eleitoral, é contrária à reforma da previdência. Ademais, há crise na relação com o Congresso, que em troca do ataque - com o qual também concordam - querem cargos e privilégios financeiros. A vontade de Bolsonaro de implementar esse ataque esbarra em obstáculos consideráveis, arriscando se enfrentar com sua própria base.

Mas os "fatores reais de poder" não estão preocupados com isso. Querem implementá-la a todo custo. Para isso, basta observar a opinião editorial do jornal responsável pelo anúncio público das investigações do Coaf sobre Flávio Bolsonaro, o Estado de S. Paulo.

"O presidente Jair Bolsonaro poderá hesitar, como tem hesitado, ou até se perder em considerações sobre educação sexual, mas também poderá encontrar facilmente o caminho para arrumar e fortalecer o Brasil, se guardar uma cópia de um relatório recém-lançado pelo Ministério da Fazenda [...] nenhum ganho será sustentável sem a reforma da Previdência, a recuperação fiscal de Estados e municípios e um controle efetivo das despesas com pessoal e encargos, hoje superiores a 20% das obrigações orçamentárias. Educação, tecnologia, reforma tributária, financiamento, abertura comercial, articulação com o Mercosul e participação em organismos internacionais são tópicos dessa discussão. A noção de produtividade interliga todos esses componentes da política".

A chacota feita pelo Estadão (segundo o qual Bolsonaro poderia seguir "se perdendo em considerações sobre educação sexual") se combina com uma advertência severa: nenhum ganho sustentável virá sem a reforma da previdência, mãe de todas os demais ataques econômicos às massas trabalhadoras. Mais ainda: afora a economia, todos os demais assuntos são "tópicos da discussão", temas secundários e subordinados. Em outras palavras, já passou da hora de Jair entender que foi eleito para alterar a relação de força entre as classes em primeiro lugar na economia, e não erguer-se como padroeiro da velha moral sexual cristã, ou como embaixador da revisão curricular escolar (temas com os quais a arquiconservadora burguesia brasileira está, nunca é demais lembrar, no mais piedoso acordo).

Cida Damasco, colunista do mesmo Estadão, reforça a ideia: "Não há sombra de dúvida que a reforma da Previdência é o objeto dos desejos dos mercados e do setor produtivo e foco dos planos de ajuste fiscal". Acusando a equipe de transição de "idas e vindas" e opiniões conflitantes no tema da previdência, conclui que "há fortes dúvidas se, com essas idas e vindas, o resultado final será contornar ou se submeter antecipadamente às pressões que virão mais adiante."

É impossível analisar o relatório do Coaf sem esta abordagem econômica ligada ao golpe institucional (um déficit que encontramos em distintos analistas, inclusive Nassif). A grande imprensa está sedenta pelos resultados do ajuste, e pressiona Bolsonaro a negociar com um Legislativo fisiológico que busca recompensas por seus serviços no Congresso. Além destes fatores de poder, nunca é demais lembrar que o primeiro violino do golpe institucional, o Judiciário, ao contrário de "recolher-se", segue em campanha política pela reforma da previdência, tendo o presidente do STF Dias Toffoli como eminente portavoz.

A decalaração do vice-presidente, Hamilton Mourão, é suficientemente ambígua: "O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro. O Coaf rastreia tudo. Algo tem, aí precisa explicar a transação, tem que dizer." Essa mensagem pode ser entendida tanto como um movimento para separar o presidente eleito do escândalo de Queiroz com Flávio Bolsonaro, quanto a pressão para que a declaração deste até então simples assessor seja contundente o suficiente para respingar em Jair. O que aparece até agora é a primeira alternativa.

Os generais não formam um bloco único no governo Bolsonaro. Os generais mais próximos do entorno bolsonarista dificilmente aceitarão sair chamuscados desse escândalo. As disputas que existem entre os militares poderiam também sair mais à tona, libertando-se do círculo imediato de Mourão-Heleno. Lembremos como Villas Boas, responsável por nomear o general Azevedo e Silva (hoje Ministro da Defesa) como assessor de Dias Toffoli, se pronunciou sobre Bolsonaro, o acusando de messiânico em entrevista à Folha de São Paulo.

Uma resposta da "grande política" contra Bolsonaro, os golpistas e o autoritarismo judiciário

O combate ao autoritarismo judiciário é um componente chave de qualquer batalha séria contra a corrupção e a impunidade, inerentes ao capitalismo. De fato, o tema da "corrupção" – tão caro ao imperialismo, que se utilizou distintas vezes desse tema para interferir na política latinoamericana nos anos 90 – é usado como o principal ativo do autoritarismo judiciário para avançar no golpe institucional, uma espécie de "distração" para que se avance nos ataques.

Contra essa democracia manipulada por juízes politicamente interessados, é preciso defender que os juízes sejam eleitos pelo povo, revogáveis a qualquer momento e recebam o mesmo salário de uma professora, abolindo suas verbas auxiliares (como o grotesco auxílio-moradia). Para acabar com a farra de empresários e políticos corruptos, que atinge todos os partidos dominantes, todos os julgamentos por corrupção devem ser realizados por júris populares, abolindo os tribunais superiores.

Este programa de ataque aos privilégios do regime e da oligarquia de juízes deve estar ligado com pontos que enfrentem a crise econômica gerada pelos empresários: é necessário impor o não pagamento da dívida pública e a nacionalização dos bancos, do comércio exterior e dos recursos estratégicos da economia sob controle dos trabalhadores. Ligado a isso, é preciso defender a Petrobras e as demais estatais da privatização: isso está ligado à defesa de uma Petrobras 100% estatal administrada pelos petroleiros e controlada pela população, e a estatização sob gestão dos trabalhadores de todas as grandes empresas de infraestrutura, como a Eletrobras, a Embraer, os Correios. Para impedir a degradação das condições de vida com os mais de 25 milhões de pessoas sem emprego, é necessário impor a partilha das horas de trabalho a empregados e desempregados, e a redução da jornada de trabalho sem redução salarial, abolindo a reforma trabalhista de Temer.

Tudo isso é necessário para impor que os capitalistas paguem pela crise, e que a reforma da previdência seja derrotada na luta de classes.

A corrupção é inerente ao capitalismo e é mantida pelo Judiciário em estreita aliança com o Legislativo e o Executivo. Frente a isso somente uma política anticapitalista e revolucionária pode responder de fundo ao problema da impunidade dos capitalistas.

Os franceses em luta contra Macron mostram que, se lutarmos decididamente em ações comuns e coordenadas, podemos enfrentar os ajustes de Bolsonaro, os golpistas e o autoritarismo judiciário. Essa força de massas nas ruas, impondo pela luta suas reivindicações em nome das condições de vida dos trabalhadores, revela a completa impotência da "resistência democrática" passiva e por fora da luta de classes que o PT propõe junto a suas burocracias sindicais, permitindo que os ajustes econômicos enquanto "esperamos 2022".

É para dar essa batalha que chamamos todos os trabalhadores e jovens e militantes de esquerda que rechaçam o golpismo e a extrema direita, mas não confiam mais na estratégia do PT, a militar em comum no interior de cada local de trabalho e estudo e batalhando por isso nos sindicatos e entidades estudantis.

 
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