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França
Coletes Amarelos. As margens no centro
Boris Lefebvre

A França dos Coletes Amarelos é também aquela da periferia, do perímetro urbano, dos bourgs[*] distantes, lugares cujas bordas são difíceis de definir.

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1. Termo fixado a partir do estudo publicado em livro sob o título de “La France des ‘petits-moyens’” (Marie Cartier, Isabell Coutant, Olivier Mascle e Yasmine Siblot, 2008). Refere-se a um setor da classe média francesa que vive em localidades situadas entre o universo das cidades e os conjuntos habitacionais. (N. do T.)

2. Termo próprio da língua francesa utilizado para se referir ao cinturão urbano em torno de uma cidade central. Por considerar que o termo “subúrbio” é insuficiente, uma vez que adquire distintos significados em países desenvolvidos e em desenvolvimento, optou-se aqui por manter a palavra francesa tal como consta no original. Parece-no que seria possível estabelecer um paralelo com o que em português do Brasil costuma-se se designar por “cidade-satélite” ou, ainda, “cidade-dormitório”. (N. do T.)

3. Reunião Nacional ou Frente Nacional: partido político francês de extrema-direita e de caráter protecionista, conservador e nacionalista. (N. do T.)

4. La République En Marche, partido político francês de tendências centristas, liberais e social-liberais fundado por Macron em 2016. (N. do T.)

5. Referência à empresa francesa do ramo de carne suína fundada em 1956 por Louis Gad. (N. do T.)

6. Société nationale des chemins de fer français, companhia ferroviária estatal da França.(N. do T.)

7. A imprensa francesa atribuiu a alcunha irônica ao presidente, que se comporta como se fosse o Deus Júpiter, pai dos deuses na mitologia romana. (N. do T.).

O colete amarelo, o estacionamento e os trevos rodoviários

Desde o 17 de novembro, a mobilização dos Coletes Amarelos põe em destaque todo um setor da população que não estávamos acostumados a ver em manifestações. Trata-se da França da periferia, que se mobilizou através dos Coletes Amarelos, da França rural ou dos perímetros urbanos, que recebe diretamente as "chicotadas" das reformas tributárias de Macron, sob o pano de fundo de uma crise social e econômica e para os quais o imposto sobre os combustíveis foi a gota d’água que fez o copo transbordar. De repente, toda uma camada da população e de trabalhadores surgiu com seus códigos e lugares simbólicos, os quais se distinguem dos contextos gerais de manifestações.

Primeiro, o colete amarelo surgiu de um vídeo de Ghislain Coutard, técnico em manutenção da Narbonne, que, segundo seu chamado, desejava “ter um código de cor para poder reunir um grande número de pessoas” no dia 17 de novembro. Nos canteiros de obras, operários e caminhoneiros, uma vez terminado o trabalho, colocam seus coletes amarelos sobre o para-brisa. Foi assim que nasceu a ideia de transformar esse colete de alta visibilidade em um sinal de reconhecimento do movimento. Nessa primeira-linha de manifestantes, é pela dianteira do veículo que podem se contabilizar e se reconhecer. É também esse reconhecimento originalmente ausente que simboliza o colete amarelo. Guardado, geralmente, no fundo do porta-luvas, ele está, de agora em diante, à vista e se revela para mostrar a aflição das vítimas de "acidentes-sociais" largadas à margem da estrada. É o sinal do perigo iminente que o governo deve sentir, já que o movimento foi inesperado.

Outro forte símbolo do movimento: o estacionamento. Lugar de convergência dos motoristas que toda semana fazem suas compras nos supermercados, o estacionamento é, em tempos de normalidade, esse não lugar sem corpo e vazio de vida. Lugar funcional destinado a estacionar o carro durante o momento das compras, o estacionamento é esse lugar comum onde, justamente, nada de coletivo surge, em geral, exceto o frenesi das compras durante o período das liquidações. Agora, à iluminação parca dos imensos postes de luz, esse lugar foge da trivialidade e da banalidade do ambiente e assume a aparência de um lugar de reuniões e de organização, onde os Coletes Amarelos, em geral dispersos, encontram-se para se associar, discutir e planejar suas ações de bloqueio. Eles se engajam, assim, em uma reapropriação de seu espaço dedicado normalmente a imperativos econômicos, interrompendo o fluxo incessante de carros dessa área, muitas vezes congestionado entre um trevo e um hipermercado. Enfim, foi nos trevos rodoviários, elementos centrais do movimento rodoviário das estradas secundárias, presentes em todas as entradas de vilas, de bourgs ou de centros comerciais, que vários Coletes Amarelos se manifestaram nos dias 17 e 24 de novembro. Esses lugares de cruzamento de caminhos encarnam, perfeitamente, uma França que anda em círculos e não sabe mais o que fazer diante das permanentes investidas fiscais do Estado. Bloquear os trevos rodoviários, “seus” trevos, é um modo de se fazer visível mais uma vez e interromper o fluxo em um local normalmente transitório, onde a racionalidade está em controlar o fluxo e a orientação dos motoristas.

Margens, periferia e periurbano: a França dos “petits-moyens” [1]

O perímetro urbano está, desde as suas origens, ligado ao automóvel. Acompanhando o crescimento das cidades nos anos de 1960, a criação de grandes eixos viários possibilita viver fora do centro da cidade, em um cinturão mais ou menos “no campo”, e trabalhar na cidade ou em seus arredores. Grandes áreas comerciais são construídas nesses espaços amplos, onde a circulação é frequente. O carro se torna uma ferramenta indispensável desse modo de vida. É desse perímetro urbano da França, mais do que dos banlieues [2] próximos dos centros das cidades, que os Coletes Amarelos vieram a entrar em ação.
As áreas rurais, distante dos bourgs e dos cinturões de emprego, também fazem parte do movimento.

O movimento dos Coletes Amarelos colocou em destaque a França periurbana, que é com frequência precipitadamente assimilada à classe média. Como assinala a publicação coletiva, La France des “petits-moyens”, Enquête sur la banlieue pavillonnaire [A França dos ‘petits-moyens’, Pesquisa sobre os cinturões de aglomeração urbana, em tradução livre]: “a tese de ‘medianização’ da sociedade francesa, que veria uma dissolução das diferenças de classe sob a expansão de uma ampla classe média e da homogeneização dos estilos de vida, parece ter perdido, em grande medida, a sua relevância”. Com efeito, a “classe média” inclui, em realidade, numerosos estratos sociais que vão desde funcionários a técnicos, passando por determinadas categorias de trabalhadores. Foi dentro de toda essa diversidade que os Coletes Amarelos reuniram “as classes populares e as classes médias, irmanadas por um sentimento idêntico de pauperização econômica e descrédito político” e entre “as periferias e as grandes cidades” em uma aspiração em ter a “dignidade social e, in fini, a cívica reencontradas”; de acordo com a análise de Arnaud Benedetti.

Para entender melhor a França dos Coletes Amarelos, em vez de qualificar as populações que os compõem como “petits-blancs” [“brancos pequenos”, em tradução livre] (a saber: o equivalente do que seria o eleitor de Trump nos Estados Unidos, o homem branco, rebaixado socialmente, descendente da classe trabalhadora, com mais de quarenta anos), como o fez Christophe Guilluy em seu Atlas des nouvelles fractures sociales : Les Classes moyennes oubliées et précarisées [Atlas das novas fraturas sociais: as classes médias esquecidas e precarizadas, em tradução livre], nos lembram a noção de “petit-moyens”, privilegiada pelos autores de La France des “petits-moyens”. Com efeito, parece-nos que o principal marca da mobilização não seria a chamada marca étnica, mas, sim, a lacuna entre as elites e os de baixo. Ao destacar a distinção entre “autóctonos vulneráveis” (nesse caso, os "petits-blancs") e os imigrantes, acreditaria-se na visão de que o movimento dos Coletes Amarelos é uma emanação do Rassemblemant Nacional [3] ou de setores da extrema-direita. No entanto, como assinalou Jean-Yves Camus, diretor do Observatoire des radicalités politiques (ORAP) [sigla em francês para “Observatório da Radicalidade Política”, em tradução livre], o fracasso da recuperação do movimento por Marine Le Pen é “o sinal de que já passamos a outra coisa", em termos de rejeição ao sistema.

Falar de “petits-moyens” a propósito dos Coletes Amarelos é destacar aquelas “famílias situadas entre o topo das classes populares e a base das classes médias”, compostos por funcionários ligados ao trabalho manual ou não-intelectual, funcionários e técnicos, e que abrange uma gigantesca variedade de condições de trabalho. É também uma forma de considerar os aposentados, cujo poder de compra diminuiu consideravelmente com Macron. A realidade dessas categorias é a das pequenas mobilidades sociais representadas na imagem da casa própria na região periurbana, que “materializa tanto a distância entre seu meio social de origem, quanto a aspiração de ‘viver como todo mundo’”, conforme descrito em La France des “petits-moyens”. O afastamento desse horizonte de mobilidade e o crescente sentimento de decaída social atinge em cheio essas populações marcadas por uma certa fragilidade social, reforçada por uma crise que começou, para alguns, bem antes de 2008.

Com os Coletes Amarelos, é esta França que aspira à dignidade que entrou em ação, como também pode ser percebido pelo testemunho de um aposentado, recolhido pelo RevolutionPermanente.fr na Champs-Élysées, durante a manifestação do dia 24 de novembro: “O combustível foi a gota d’água que fez o copo transbordar, depois, há um problema no pano de fundo, porque nos prometeram poder de compra e depois nos demos conta de que estão dando presentes para aqueles que já têm muito dinheiro e batendo naqueles que não podem se defender: os aposentados, as pessoas pobres...”.

Hipermobilidade e relegação social: um "problema cultural"?

Entre as linhas de fratura que opõe o governo Macron e os coletes amarelos, existe a oposição entre uma ordem à hipermobilidade e a realidade (ou simplesmente a obrigação) de ancoragem local ou mesmo de rebaixamento. A retórica do governo, e especialmente de Macron, durante sua campanha, baseou-se, em grande parte, em sua capacidade de se modificar, evoluir e mudar, a cada hora, tanto espacialmente, quanto suas coordenadas sócio-políticas. Macron ia além das fronteiras da direita e da esquerda e convidava seus futuros eleitores a "se moverem" com ele. Uma retórica mais peculiar aos anos 1980, quase Reaganiana, quando se pensa retrospectivamente, do que propriamente ultramoderna. O "movimento" En Marche [4] esboçou o retrato de uma mobilidade feita de oportunidades a serem aproveitadas em uma economia globalizada, onde a reatividade se torna uma qualidade indispensável. No entanto, esse imaginário do movimento e de sua repercussão bate de frente com a realidade "estática" das populações peri-urbanas.

Enquanto as populações peri-urbanas ou rurais estão limitadas à solidariedade familiar, às redes locais e suas raízes territoriais, essa "França da imobilidade", como Christophe Guilluy a chama, entra em oposição com a das elites que "viajam em jatinho privado, em carros com motorista ". Essa evidente lacuna entre esses dois mundos é perfeitamente visível no modo como Macron se dirigiu aos trabalhadores da empresa GM & S de La Souterraine, quando ele os incitou a percorrer mais 100 quilômetros de distância, ou quase duas horas de carro de sua residência, para encontrarem trabalho na fundição de Ussel. Em uma entrevista fechada relatada por jornalistas, entre o chefe de Estado e Alain Rousset, presidente do Conselho Regional da Nouvelle-Aquitaine, Macron enfatizava que a relutância dos trabalhadores a se movimentar para encontrar trabalho evidenciava um "problema cultural". Foi exatamente o mesmo problema de "cultura" que as trabalhadoras "analfabetas" do matadouro de GAD [5] , então em liquidação judicial, deveriam enfrentar em 2014, de acordo com Macron, já que estavam forçadas a "ir trabalhar a 50 ou 60 km”. A liminar determinando a flexibilidade na organização do tempo de trabalho e dos horários nos contratos que regem o exercício do trabalho e nas remunerações, leitmotiv do “pensamento complexo” de Macron, define o projeto neoliberal que intenta que todos estejam adaptáveis às exigências da demanda de mão de obra e estejam prontos a sacrificar suas vidas.

Essa "cultura", como Macron a chama, é estranha aos coletes amarelos, não porque eles relutariam em "mudar", mas porque não podem responder à ordem de "mudança" ditada por leis de capital e lucro. Suas condições materiais e suas rendas não lhes permitem ir "para outro lugar". Se o carro é, para os Coletes Amarelos, um meio indispensável de locomoção para ir trabalhar, não é por escolha, mas sim por necessidade. O aumento dos impostos sobre os combustíveis, em um contexto em que o final do mês é difícil, “ateou fogo à pólvora”, tanto que foi acompanhada pela presente consciência de que "não é aumentando impostos que vamos salvar o planeta".

Como o Estado se desprende cada vez mais dos territórios mais isolados, negligencia os serviços públicos, as administrações e os hospitais locais, os coletes amarelos têm a impressão de pagarem um imposto dos quais eles não vêem retorno. A política do tout-TGV [incorporação completa do trem de grande velocidade, em detrimento das pequenas linhas periurbanas] para alguns, que a Ministra dos Transportes, Elisabeth Borne, vem pautando, tem como contrapartida a imposição de só-carros para os outros. Isso para um maior benefício do SNCF [6] , por um lado, e dos fabricantes de automóveis, por outro. É essa realidade que, hoje, o governo quer criminalizar através dos impostos, embora não proponha nenhuma solução para introduzir uma verdadeira transição ecológica. Pior, ele atua ativamente na questão quando obriga, com o pacto ferroviário, o fechamento de 9000 km de linhas de trem tidas como secundárias, forçando ainda mais pessoas a utilizar seus veículos.

O sentimento geral de estarem fartos e de empobrecimento incita os Coletes Amarelos. ("É um todo, é o poder de compra, talvez amanhã eu não possa mais pagar minhas contas".) É também a prática jupiteriana [7] de poder que traz à luz a "diferença entre o topo e a base" que enfurece os Coletes Amarelos, como apontado por um jovem casal do banlieue. Os sentimentos de impunidade e de privilégios para os mais ricos, enquanto os mais pobres devem apertar os cintos, não são estranhos à raiva que eles vem exprimindo. É por isso que o chamado por um movimento "cidadão" está no centro das reivindicações e das palavras de ordem do movimento. Esses Coletes Amarelos que se sentem cidadãos e que, em grande parte, nunca conheceram manifestações e sua violência policial, experimentam o desprezo escancarado do poder por seus futuros.

“Cultura" não é algo em falta para os Coletes Amarelos. Sua capacidade de mobilizar todo o território, de comunicar através das redes sociais, de coordenar suas ações, de formar grupos e organizar seu movimento, mostra que essas mulheres e homens, de todas as idades, geralmente invisíveis, estão, no entanto, cheios de recursos. Embora vindos das margens da sociedade, eles souberam manifestar sua raiva e colocar sua oposição a Macron e o desprezo de classe do mesmo no centro do debate. Contudo, também vimos o movimento dos Coletes Amarelos querer sair dessa relegação social e desses anonimato dos espaços periféricos. Sua vontade de mostrar na Champs Elysées, vitrine mundial do país e símbolo do poder do Estado em todo 14 de julho, num contexto de anos tendo sido impossível a realização de manifestações "regulares", é uma prova da importância do movimento e da amplitude que ele pretende alcançar. Ao mesmo tempo, foram as refinarias e os centros nevrálgicos da economia que foram objeto dos bloqueios dos Coletes Amarelos, o que também mostra um transbordamento do movimento em direção a uma radicalização que afeta diretamente as grandes fortunas e a injustiça social no país.

Traduzido de: http://www.revolutionpermanente.fr/Gilets-jaunes-Les-marges-au-centre

[*] Bourgs: termo francês para designar grandes vilas onde geralmente encontram-se mercados. (N. do T.)

1. Termo fixado a partir do estudo publicado em livro sob o título de “La France des ‘petits-moyens’” (Marie Cartier, Isabell Coutant, Olivier Mascle e Yasmine Siblot, 2008). Refere-se a um setor da classe média francesa que vive em localidades situadas entre o universo das cidades e os conjuntos habitacionais. (N. do T.)

2. Termo próprio da língua francesa utilizado para se referir ao cinturão urbano em torno de uma cidade central. Por considerar que o termo “subúrbio” é insuficiente, uma vez que adquire distintos significados em países desenvolvidos e em desenvolvimento, optou-se aqui por manter a palavra francesa tal como consta no original. Parece-no que seria possível estabelecer um paralelo com o que em português do Brasil costuma-se se designar por “cidade-satélite” ou, ainda, “cidade-dormitório”. (N. do T.)

3. Reunião Nacional ou Frente Nacional: partido político francês de extrema-direita e de caráter protecionista, conservador e nacionalista. (N. do T.)

4. La République En Marche, partido político francês de tendências centristas, liberais e social-liberais fundado por Macron em 2016. (N. do T.)

5. Referência à empresa francesa do ramo de carne suína fundada em 1956 por Louis Gad. (N. do T.)

6. Société nationale des chemins de fer français, companhia ferroviária estatal da França.(N. do T.)

7. A imprensa francesa atribuiu a alcunha irônica ao presidente, que se comporta como se fosse o Deus Júpiter, pai dos deuses na mitologia romana. (N. do T.)

 
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