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HOMEM TRANS
Morre João Nery, o homem trans que enfrentou a ditadura e desafiou a cisnormatividade
Virgínia Guitzel
Travesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC
Débora Torres

Incansável lutador pelos direitos das pessoas trans, João Nery faleceu hoje (26/10), de câncer terminal. Inspiração para as novas gerações que florescem em luta contra a cisnormatividade, João Nery desafiou a perspectiva de vida de 27 anos e deixará saudades e uma história inspiradora de resistência e de sensibilidade.

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Com luta para ser João, ele próprio tornou-se grande referência e influência para a luta pelo direito a igualdade de gênero, e seu nome foi escolhido como homenagem ao projeto de lei que visa garantir direitos fundamentais, inspirado na lei da Argentina.

Trata-se do projeto de lei 5.002, dos deputados Jean Wyllys e Erika Kokay, queprevê que “toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a
sua identidade de gênero auto-percebida”.

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Despedida

João enfrentava uma batalha contra o câncer desde o ano passado e foi em setembro deste ano que revelou ao público que a doença havia chegado ao cérebro. Além das batalhas diárias e incansáveis para desatar o nó da garganta de quem tem de enfrentar muita coisa e muita gente para ter o direito de ser quem se é, o comunicado foi também um chamado para que homens e mulheres trans não deixem de lutar. As palavras de João:

“Se unam, não oprimam os nossos irmãos oprimidos, já por tanta transfobia e sofrimento. Um trans masculino não precisa ser sarado, nem ter barba, nem se hormonizar ou ter pênis para se operar. Basta saber quem são e que sente do gênero masculino. Vamos nos respeitar, nos unir, nos fortalecer e, sobretudo, ensinar os homens cis o que é ser um homem sem medo do feminino”.

A cartunista Laerte, sua amiga, declarou para mídia: “É uma partida difícil. Ele não estava bem e, de uma certa forma, já esperávamos, mas estou muito triste. A importância dele para mim é imensa. Agora fica o projeto de lei João W. Nery, que vamos tentar que seja aprovado”, disse.

Uma vida inteira de uma grande denúncia anticapitalista

Quem ler seu segundo livro "Viagem solitária" conhecerá a longa trajetória enfrentada por João Nery para ser reconhecido assim.

Quando nasceu João W. Nery foi registrado como mulher, mas desde a infância não se reconhecia como tal. Ainda jovem deu início a seu processo transexualizador, que certamente foi um processo impregnando de coragem, ’coração que age’.

Foi o primeiro homem brasileiro a passar pelas cirurgias de transformação de seu corpo quando, aos 27 anos, removeu mamas e ovários. Roberto Farina, o cirurgião pioneiro nas operações no Brasil e médico de Nery, chegou a ser preso por mutilação, já tais procedimentos eram ilegais nessa época, assim como a alteração de nome.

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Mas João estava de fato disposto a encarar de frente a hipocrisia e a burocracia que impunham o que consideravam moralmente dentro dos “padrões”. Contou uma vez que como nunca havia tirado documento algum, foi preciso fingir no cartório para que seu nome masculino fosse garantido. E relatou ainda que o caminho, para além da burocracia é tão ou ainda mais cheio de espinhos: “Ao assumir uma nova identidade, tive de negar todo o meu currículo acadêmico. Parei de dar aulas de psicologia na universidade e de atender no consultório. Passei décadas com medo de ser punido por tentar ser quem eu sou”, conta ele.

Foi questão de tempo para tornar-se ativista, mantendo grupos de apoio e de discussões, além de palestras. Novamente, ’coração que age’.

Para declarar-se à imprensa consultou advogados e somente quando se sentiu seguro o fez. Só tomou coragem de mostrar-se à imprensa após consultar um advogado, e podemos compreender que de longe se tratava de um medo infundado. Somente anos depois de suas operações os procedimentos e as cirurgias transexualizadoras passaram a ser oferecidas pelo SUS. Assumir um novo nome demorou mais ainda. Faz pouco mais de um ano que o STF, Supremo Tribunal Federal, autorizou a alteração de documentos sem a necessidade de se entrar na Justiça.

João Nery será conhecido por futuras gerações pela sua coragem e pelo legado que deixou na luta pelos direitos civis a comunidade trans. Aos amigos, familiares e companheiros de luta, compartilhamos a dor que sua partida nos deixa.

Sua vida é a maior denúncia do roubo de nossa identidade produzida pelo Estado capitalista, que mesmo sob suas instituições democráticas somente neste ano de 2018 retirou a ideia de que ser trans é sinônimo de doença mental. No momento onde Bolsonaro e a extrema direita seguem a linha de Donald Trump de tratar as pessoas trans como inimigos, buscando nos extinguir, lutaremos com mais força e mais ódio, fortalecidos pela coragem indomável deste pioneiro.

Para garantir a liberdade desde a infância, sem as absurdas e moralistas imposições cisnormativas e heteronormativas, impregnadas desse patriarcado que nos aprisiona à decisão de um gênero ou outro, que nos impõe a lógica formal e o moralismo cristão como regras , que toma nossos corpos e nossa subjetividade como mercadorias do capitalismo. É preciso unir a luta em defesa dos nossos direitos e contra o capitalismo , para que sejamos de fato livres.

Sempre lembraremos da poderosa força de Marsha P. Jhonson que dizia: "Nenhum orgulho para nós, sem a libertação de todas nós".

 
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