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POLÊMICA CONSUNI
Em defesa das cotas trans: porque a proposta alternativa de uma comissão de inclusão de cotas não é legitima
Virgínia Guitzel
Travesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC
Kyem Araújo

O professor da UFABC, Cedric Rocha Leão, do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas (CECS) e membro do Conselho Universitário encaminhou aos demais conselheiros uma contraproposta às cotas trans que está em fase de votação. Intitulada como proposta alternativa cuja ideia seria “ampliar a inclusão” de populações vulnerareis no ingresso ao ensino superior, escrevemos, neste breve artigo, o porque esta proposta não é legitima, e o que se esconde por trás dessa “boa intenção”.

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Vivemos um momento extremamente polarizado e conturbado em nosso país. As eleições, manipuladas pelo poder judiciário e apoiada pelas forças armadas, estão colocando às claras os projetos de país que estão em jogo, e a frágil e recente democracia brasileira encontra-se questionada assim como o regime estabelecido pela Constituição de 88.

Neste cenário que temos um candidato a presidente disputando o segundo turno a partir de ideias claramente racistas, machistas e especialmente LGBTfobicas, com declarações que incentivam a violência e políticas que propõem silenciar as pessoas não heterossexuais nas escolas, com possibilidade de retorno à tratamentos de choque, “curas gays” e um sombrio passado que infelizmente é parte da defesa não só de Jair Bolsonaro e do PSL, mas de seus apoiadores e eleitores. Por outro lado, tivemos agora na história do Brasil a primeira mulher trans negra eleita como deputada estadual da camarada de São Paulo, demonstrando que há também uma forte resistência às ideias conservadoras. A UFABC está em meio a ameaças de corte de verbas, e possível venda do ensino superior com o fim das pesquisas. Não pode ser “neutra” ou negligente com esta disputa que está a sociedade.

E é neste marco, que a luta por cotas trans representa um símbolo da resistência de uma população que sempre esteve marginalizada e profundamente atrelada a uma longa cadeia de violências, legitimadas por diversas instituições democráticas que fecharam os olhos para os dados alarmantes de 90% da população trans estar na prostituição compulsória (ANTRA) a perspectiva de vida de apenas 27 anos (GGB) e a 0,01% que chega ao ensino superior. Esses dados apontam uma peculiaridade da população trans de todas as outras, ainda que isso se cruze a outras opressões como a rescisão racial e de orientação sexual.

Por isso, ao Prof. Cedric ao reconhecer superficialmente a transfobia, e suas dificuldades de acesso ao ensino superior é equivocado a comparação com outras tantas condições de marginalidade, pois visa a diluição de uma luta de uma comunidade especifica que demorou muitos anos preocupada apenas com sua sobrevivência, e agora exige das universidades o seu direito a cidadania.

Para desenvolver o que nos motiva a essa reivindicação é preciso recorrer a história, infelizmente, recente. O Estado Brasileiro, em 1976, há apenas 42 anos, utilizou a polícia civil de São Paulo para estudar e combater travestis. Em 1987, o delegado Guido Fonseca foi responsável a Operação Tarântula, com o objetivo principal de prender travestis que se prostituíam nas ruas de São Paulo. Pode-se pesquisar em Ditadura e Homossexualidades - Repressão, Resistência e A Busca da Verdade.

Somente este ano de 2018, nós pessoas trans deixamos de ser consideradas doentes mentais, na 11° revisão do Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). Isso significa que pelo menos desde os anos 80, toda pessoa trans teve o estigma patológico, tendo de passar por enormes constrangimentos e novos traumas pelo autoritarismo médico e por juízes que decidem sobre nossos corpos e identidades.

Esse estigma veio também fruto ao surgimento da AIDS e a demora intencional que levou quase 10 anos para o primeiro plano de combate a doença que não apenas dizimou a enorme energia de questionamento revolucionário sobre a relação entre a opressão e exploração como perpetuou um medo e fobia contra pessoas transgêneros, como se transmitissem morte só por existirem.

Outro ponto que não poderíamos nos privar de debater, já que estamos numa academia, então há que se ater também aos erros desta ordem no documento do conselheiro. Se avaliam seus alunos desta maneira, há que se debater o conceito de transfobia, transfobia estrutural, e suas versões institucionais. Para compreender isso, é necessário retomar a ideia de porque o Estado pune severamente quem não segue a cisnormatividade.

Néstor Perlongher em Sexo y revolución:

"A genitalização está destinada a remover do corpo sua função de reprodutor do prazer para convertê-lo em instrumento de produção alienada, deixando à sexualidade apenas o indispensável para a reprodução. É por isso que o sistema condena com especial severidade todas as formas de atividade sexual que não sejam a introdução do pênis na vagina, chamando de "perversões", desvios patológicos, etc. Para aprisionar o ser humano ao trabalho alienado é necessário mutilá-lo reduzindo sua sexualidade aos genitais".

Ao recair nestes problemas conceituais, o Prof. acaba por invisibilizar a enorme barreira entre a cisgeneridade e a transgeneridade, e a cisnormatividade imposta pela sociedade democrática burguesa em que vivemos.

Neste caso ao argumentar que "Tentar quantificar as proporções da sociedade que estes grupos de excluídos representam para criar cotas específicas implicaria recair em numerologia de bases frágeis. Argumentar quanto à nuances que permitam hierarquizar o sofrimento destes grupos de maneira coletiva e assim definir quais são mais merecedores de amparo seria escarnecer da individualidade de histórias repletas de sofrimento e lutas.", acaba por camuflar a hegemonia cisgênera sob todos os aspectos da vida, sem ver as condições desumanas das quais vivem as pessoas trans, que se questiona até mesmo o uso de um banheiro comum, como tivemos que lutar e não entendemos como o Conselho Universitário não leve em conta que ainda não foi sequer colocado as placas pela reitoria.

Uma comissão: quem manda e com que provas?

E a quem será dado o poder de hierarquizar as opressões através de uma comissão que julgaria todos os pedidos de inclusão em cotas levando em conta o histórico de cada indivíduo, a ser atestado por laudos médicos/psicológicos? Aqui cai mais uma vez em uma ótica cisgênera patológica que age muito mais como uma ferramenta para deslegitimar a autonomia dessas identidades, bem como a luta para não depender de laudos que validem essas existências.

Ainda dentro dessa proposta de indivíduos laudados encontraríamos então uma opressão validada pela medicina e psicologia frente a de uma pessoa que não possuí laudo ou se quer acesso a esses acompanhamentos especializados, pois o próprio acesso ao Sistema Único de Saúde ainda é um obstáculo para pessoas trans, que assim como nesta Universidade o simples respeito e utilização do nome social aparece como uma questão de difícil solução, já que quando solicitado a inclusão do nome social no sistema o mesmo não aparece nas listas de chamadas de forma automática, cabendo ao aluno a exposição desnecessária de falar pessoalmente com cada professor em todos os quadrimestres.

Não se trata então, de "hierarquizar opressão", como tenta contrapor as cotas trans por outras demandas de setores oprimidos, mas pela via das cotas sinalizar um atendimento especifico a um segmento social do qual tem uma trajetória de luta e de resistência a estas opressões, sem diluir em diversos problemas sociais que merecem sua devida atenção e uma pesquisa mais aprofundada e não apenas como uma fundamentação para deslegitimar demandas trans.

36 vagas, um exagero cisfobico?

O problema de "redução de vagas da ampla concorrência" colocam dois debates importantes: 1) O que é "ampla concorrência"? É a concorrência daqueles que tiveram condições de "treinar" para superarem o filtro racista e transfóbico do vestibular. Entendemos que o CONSUNI legitime este instrumento, pois é parte das burocracias da universidade de classe baseada neste modelo de universidade restrita, todavia, sob uma ótica trans-inclusiva é ver que a ampla concorrência está destinada a cisgeneridade. Assim como tem o sido o conjunto das vagas desta instituição. O que estamos lutando é para que a universidade não seja trans excludente.

2) Para uma discussão séria preocupada em não reduzir as vagas da universidade seria preciso revogar o teto de gastos estabelecido pelo governo golpista do Temer e não impedir que pessoas trans acessem a universidade. Isso em um possível governo Bolsonaro, é ainda mais dramático. Se os conselheiros estão preocupados com expandir a UFABC, nós podemos oferecer um programa radical que englobe a estatização dos monopólios da educação privada como a Kroton-Anhanguera, sem indenização, e assim ampliar a universidade pública junto com o fim do vestibular, que garantia o acesso irrestrito. Mas não nos parece que seja esta a preocupação de Cedric e os demais aqui.

Por último, nos fica um questionamento: Seria esta proposta uma medida de contra-reforma para neste momento de crise econômica não apenas revogar as cotas para refugiados e impedir as cotas trans, mas quem sabe rever as cotas étnicos raciais, com objetivo de hierarquizar também o sofrimento dessa população? Independente da intenção do seu relator, a proposta neste momento deixa muitas dúvidas à quem interessa.

 
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