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TRIBUNA ABERTA
"A constituição como um grande cardápio"
Gabriel Siqueira
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"*Ao entrar num restaurante qualquer e se acomodar em uma mesa, logo é apresentado um cardápio ao cliente, com opções para todos os gostos e preços. Assim também funciona o Estado, em especial o Estado brasileiro. O governante mal assume seu posto e já deve apresentar para a clientela os direitos disponíveis para a mercantilização.

Educação, saúde, moradia, transporte, trabalho e todos os demais direitos previstos na Constituição: nenhum escapa da ganância do Capital. Da mesma forma, modelo constitucional algum é capaz de desatar o nó entre Capital e Direito. A “forma-cardápio” da Constituição é apenas uma das inúmeras facetas jurídicas que evidenciam o cinismo do Direito que, ao se apropriar de demandas sociais, na verdade suprime as verdadeiras formas de materializar as demandas reivindicada, transformando-as em mercadorias. Assim, em contraste com o Capital, o conteúdo presente na Carta Magna não é tão determinante quanto se espera. Como também não é o conteúdo de um cardápio que determina por si só sua própria forma de cardápio, mas a própria natureza do ambiente e as configurações das relações sociais ali vigentes.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 cumpre um papel esclarecedor. No período de “redemocratização” do país, a ala progressista que, durante os anos anteriores, travava uma resistência ao comando militar do Brasil, depositou exagerada confiança na construção de um texto constitucional. Ressalta-se, porém, que setores mais revolucionários já descartavam qualquer ilusão na constituinte, não apenas pela presença majoritária dos conservadores na Assembleia Nacional, mas justamente através da crítica que se fazia na concentração da luta nas vias institucionais.

Apesar da polarização, o que se observou – em síntese - foi a impregnação da esperança legalista na sociedade civil, através de um “arranjo institucional” enquanto discursos considerados mais radicais foram gradativamente minados. Ao chegar no governo, o Partido dos Trabalhadores que outrora flertava com um pensamento mais radical, já carregava com firmeza a bandeira das práticas conciliatórias e de lutas institucionais. A luta, se um dia teve potencial para questionar o “modelo de cardápio”, foi apropriada por setores que estavam mais preocupados em estabelecer os “pratos principais”.

Não por acaso, logo que perceberam o esforço do que viria a ser a nova gerência, os capitalistas deixaram de oferecer uma resistência significativa e, mais do que isso, se apropriaram da nova-velha política de “pratos” e “preços”. Foi neste período de apropriação e conciliação que, conforme as palavras do próprio Lula, “nunca os banqueiros lucraram tanto”. Para uma consonância com a metáfora do cardápio, a frase emblemática poderia ser a afirmativa de que “nunca os clientes consumiram tanto”.

Não bastasse o exemplo brasileiro, é interessante notar que inúmeros outros países também seguiram caminhos semelhantes e, de forma mais ou menos simultânea, se esgotaram praticamente nos mesmos moldes. Sem citar outros casos específicos para não estender o texto para além de seus objetivos, o que podemos observar a nível internacional é que a ascensão das políticas conciliatórias estava acompanhada de uma nova guinada neoliberal e conservadora capaz de dissolver em pouco tempo qualquer “avanço” social construído nos últimos anos.

O art. 6º da Constituição Federal estabelece um rol dos chamados direitos sociais. O texto os descrevem como sendo a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Todos na bandeja para interesses estritamente individuais.

Em nome do direito à educação, por exemplo, a última década foi marcada pelo aumento considerável do número de pessoas nas universidades. No entanto, o foco no ensino privado através do PROUNI e do FIES tornou a educação algo extremamente lucrativo. O acesso de mais jovens no ensino superior foi um avanço muito importante, mas a consolidação e ampliação de um modelo educacional voltado para o lucro ameaça, cada vez mais, a qualidade do ensino. O ensino superior privado já compõe mais de 70% de participação na educação superior nacional, conforme aponta o sociólogo Wilson de Almeida, autor do livro “ProUni e Ensino Superior Lucrativo em São Paulo”.

Outro exemplo que ilustra bem a lógica mercantil dos direitos diz respeito à segurança pública. Em 2017, o Banco Interamericando de Desenvolvimento (BID) divulgou um estudo que constata que o Brasil tem mais investimento no setor privado do que no setor público. Se no exemplo da educação o setor privado lucra com a falta de vagas no ensino público e gratuito, no caso da segurança pública o setor privado constitui uma estrutura lucrativa em torno da insegurança.
Nas eleições de 2014, as doações realizadas por planos de saúde cresceram mais de 200%. Em se tratando de deputados federais, 29 foram eleitos com auxílio das doações. A presidenta Dilma Rousseff também recebeu doações do setor, além de 3 governadores e 3 senadores e 29 deputados estaduais. Os interesses privados também predominam em matéria de direito à saúde.

O déficit habitacional somado ao encarecimento do custo de vida nas grandes cidades e a marginalização de famílias de baixa renda constituem o cenário de especulações imobiliárias e indicam a evidente mercantilização do direito à moradia, assim como inúmeros outros fatores indicam a privatização de cada direito previsto na Constituição Federal.

Com o esgotamento das políticas conciliatórias fracassadas pelos governos petistas (conforme já indicava a história) e o ataque aos investimentos públicos, que já se encontram, como apresentado, sob o domínio de interesses privados, a mobilização da classe trabalhadora tem sua necessidade intensificada. Assim, a lição que devemos absorver é que não basta ser cortejado por direitos quando a concretude das relações materiais é o que determina o modo e a qualidade de vida.

Os trabalhadores e as trabalhadores não alcançaram (nem podem alcançar) seus interesses como classe majoritária e fundamental através do aparato jurídico e, portanto, carecem de controle direto de suas próprias vidas. Aos trabalhadores e trabalhadoras cabe ocupar, cada vez mais, os espaços de gerenciamento de seus próprios interesses, para além dos espaços de representação. Assim, enfrenta-se diretamente os privilégios e, ao mesmo tempo, a lógica capitalista.

Para tanto, é fundamental travar resistência contra os interesses privados-capitalistas em todos os espaços e investir na construção de condições de participação direta dos trabalhadores e trabalhadoras. Somente assim, a Constituição Federal sairá do nicho de culinária da biblioteca burguesa para o espaço destinado aos livros de história da biblioteca do proletariado."


*Tribuna Aberta é uma coluna especial do Esquerda Diário disponível para trabalhadores e a juventude divulgarem seus relatos, artigos, denúncias e expressões artísticas livremente. Não necessariamente expressam a opinião do ED.

 
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