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RÚSSIA 2018
Mbappé e a história dos campeões: o ouro que não poderá esconder o racismo
Lucho Aguilar

Eles sabiam que esse domingo poderia transformá-los em “heróis” por um momento, ou lembrar-lhes que são filhos dos desterrados da “república francesa”. Reeditamos uma crônica sobre os craques dos banlieues.

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Kylian Mbappé é o “Messi” da equipe francesa. Nasceu há 19 anos em Bondy, um dos bairros dos subúrbios de Paris. É um gênio. Reúne as duas condições que são buscadas pelos caçadores de talentos que circulam nos bairros populares franceses: a habilidade que associam aos imigrantes argelinos e a potência dos que vêm da África subsaariana. Talvez porque sua mãe é argelina como Zidane e seu pai camaronês como Eto’o.

Nesse domingo, na final na Rússia, milhões terminaram de se deleitar com sua velocidade e seus dribles. E as de Modric. Assim fizeram durante um mês, sem saber as histórias que há por trás de Mbappé, Pogba e boa parte dos jovens que vestiram a “azul”. Esses que, se chegassem ao ouro, podiam continuar sendo por mais alguns dias os heróis emprestados da “França multicultural”. Mas se os grandes titulares perdessem os tratariam como “racaille de la société” (“ralé da sociedade”), como uma vez os batizou Nicolás Sarkozy.

Filhos dos banlieues

Bondy é uma das comunas dos subúrbios de Paris, os chamados “banlieus”. Uma palavra que surgiu há séculos para nomear o “lugar proibido” ou “lugar de desterro”: os nobres mandavam para fora de Paris quem consideravam como delinquentes e mendigos.

Mbappé cresceu numa das multitudinárias torres de Bondy. Tal como outros sete dos selecionados pela Federação Francesa de Futebol (FFF) para o mundial. Paul Pogba cresceu em Lagny-Sur-Marne, N’Golo Kanté em Suresnes, Blaise Matuidi em Fontenay-sous-Bois, Benjamin Mendy em Longjumeau e dos mesmos bairros vieram Alphonse Areola, Presnel Kimpembe e Steven Nzonzi.

Cresceram ali como milhões de filhos e filhas de imigrantes de distintas origens, mas que enfrentam o mesmo “destino”.

A marginalização desses jovens “franceses” segue sendo brutal. A “república” os condena à precariedade na escola, em suas casas, no trabalho e até no esporte. Segundo pesquisas, 4 em cada 5 empresas discriminam os candidatos “negros” ou árabes. Se você se chama Mohamed ou Kamel tem quatro vezes mais chance de estar desempregado do que se chamasse Alain ou Pierre. As mulheres, além disso, se conseguem trabalho serão dos mais precários: na limpeza, terceirizadas, “domésticas” e muitas vezes em “meio período”.

Mas uma das marcas mais duras para essa juventude é a violência policial, com os esculachos, enquadros, a discriminação e os assassinatos. Essa violência que desatou a chamada “Revolta dos banlieues” em 2005.

Rebelião depois do jogo

“É 27 de outubro de 2005, estamos em pleno Ramadán. O dia termina, para os adolescentes é hora de terminar sua partida de futebol, voltar para casa e dividir a refeição familiar depois dessas horas de jejum que fazem parte da tradição muçulmana nesse período do ano. Mas essa noite Zyed e Bouna não voltaram. Um vizinho havia alertado a polícia de que três jovens poderiam ter entrado em um canteiro de obras para roubar material. Estão com seu amigo Muhittin, o único sobrevivente dessa noite. Quando os jovens veem um carro de polícia parar bruscamente, que vinha a toda velocidade atrás deles, o medo os domina, pois estão acostumados com a violência das batidas policiais. Começam a correr. Em alguns minutos, já são cinco carros da polícia e mais uma dezena de policiais a pé para pegar três adolescentes que não fizeram absolutamente nada. Um policial percebe suas sombras passando sobre as cercas de um terreno da companhia de eletricidade EDF. ‘Não dou muito por sua vida’, diz pelo rádio da polícia. Um choque elétrico os arremessa pelos ares. Os policiais se afastam. Os corpos de Zyed e Bouna caem inertes. Muhittin, queimado a 2000 graus, a roupa grudada à pele, encontra força para voltar ao bairro, buscar ajuda. Os rostos do bairro se cobrem de lágrimas e a notícia se espalha como um rastilho de pólvora, desatando um ódio imenso nas periferias que sofrem com a violência policial diariamente. A revolta dos banlieues durará três semanas, nas periferias de mais de 300 cidades francesas não apenas se incendeiam milhares de carros e centenas de edifícios públicos, mas os jovens também se enfrentam diretamente com a polícia”.

O fragmento pertence à excelente crônica de Flora Carpentier no “Revolution Permanent” [diário francês da rede do Esquerda Diário NdT]. Nela resume o golpe que desatou “a raiva” mas também como dez anos depois esses milhões de jovens seguem sofrendo o racismo e a brutalidade da “república” francesa. Pior ainda: desde o atentado à revista Charly Hebdo aumentou a “islamofobia” e depois o patriotismo contra os milhares de refugiados das guerras que a França desata.

Zyed e Bouna vinham, nesse dia, de uma partida de futebol. Quem sabe sonhavam em driblar não apenas as batidas policiais, mas o “destino” que lhes impõe a França. Esse “destino” que Mbappé, Pogba e seus companheiros parecem ter driblado.

À caça de gazelas e panteras

O camisa 10 da seleção francesa começou no A. S. Bondy quando tinha pouco mais de 5 anos. Seus treinadores logo descobriram que chegaria longe.

Milhares de crianças chegam todos os meses para fazer testes nos clubes dos bainleues. São no total 235.000 jogadores registrados, metade tem menos de 18 anos. Muitos se queimam nos campos de concreto ou tragando pó nos campos de terra, onde a bola endiabrada os obriga a forçar cada músculo e afiar a destreza. Ainda assim, melhores do que os que usaram seus pais quando pequenos, talvez já destruídos pelas bombas da “república francesa” e seus aliados que os levaram a fugir da África ou do Oriente Médio.

Nesses campos se misturaram com os filhos da “classe operária francesa”, como Frank Rivery, que foi órfão e pedreiro antes de se converter em um dos “grandes”.

Chegam até ali os “caça-talentos” que trabalham para os poderosos clubes da Liga 1. Que caçam? Mohamed Coulibaly descreveu para uma bota matéria do New York Times: “atlético, vigoroso, dinâmico, técnico, agressivo: o tipo que é buscado para a seleção nacional”. Aos mais técnicos chamam de “gazelas”, aos mais potentes de “panteras”.

O sonho dos jovens dos bainleues de driblar o desemprego, a precariedade do trabalho, a pecha de delinquentes ou jihadistas é o mesmo sonho que embala por vezes famílias inteiras. O sonho de “valer” 100 milhões de euros, como esse pequeno Kylian que jogava com eles nos campos do bairro há alguns anos.

Querem acreditar na promessa desse mural com a imagem de Mbappé: “Bondy, cidade de possibilidades”.

Mas só alguns chegam à Liga 1. Muitos menos à seleção, ainda que na Rússia 2018 hajam jogadores que saíram dos campos dos subúrbios representando Marrocos, Portugal, Tunísia e Senegal.

Campeão multirracial?

A seleção de 98, que saiu campeã do Stade de France, iluminou o slogan da “França unida e multirracial”. Os filhos do Magreb ou da África subsaariana eram “mimados” pela imprensa e “tolerados” pelas elites. Ainda que muitos deles não quisessem cantar La Marsellesa porque continuavam desconfiando da França colonial.

E sobravam motivos. Fora do campo e dentro também. Como demonstrou o escândalo que revelou as manobras de dirigentes da federação (FFF) de limitar o número de jogadores de ascendência árabe e africana nas academias de formação. Sofriam isso na própria carne os jovens que não podiam provar que seus pais haviam vivido cinco anos regularmente na França.

Contudo, quando se aproximam os mundiais, a Cidade Luz, como chamam Paris, voltará a apelar ao que cada dia tenta manter nas sombras. Os gênios da bola que vêm dos “monoblocos” nos quais se amontoam as famílias nos banlieues.

São os filhos dos refugiados da França imperialista. Esses que conseguem “driblar” a perseguição do agora eufórico Macron, que expulsou 85.000 deles apenas em 2017.

Precisam deles para tentar esconder, por trás da camiseta “blue”, o racismo e o classismo da “república”. Para distrair, se é que é possível, do brutal ajuste com o qual Macron tentar avançar sobre a poderosa classe trabalhadora, essa que nesse 28J voltou a parar e se mobilizar, em muitos lugares acompanhados pelos estudantes que rechaçam os planos do governo. Somam-se à luta os trabalhadores e trabalhadoras imigrantes “les sans papiers”) e os jovens de quem essa crônica fala, não haverá ninguém que possa detê-los.

O que ficará depois desses 90 minutos

Talvez no campo Mbappé e seus amigos não saibam que por trás das camisetas rivais há outras histórias, muito parecidas. Ainda que hoje cada um desses 22 jogadores valha milhões. A de Ángel Di Maria, que o Central levou de um campo do bairro de El Churrasco de Rosario pelas 26 bolas que seu clube pediu. A do imparável Romelu Lukaku, que conta que “quando as coisas estavam bem, os jornais me chamavam de ‘o goleador belga’. Quando iam mal, ‘o atacante belga de ascendência congolesa’”. Ou o genial Luka Modric, que aprendeu a jogar futebol como quando fugia da guerra com sua família, junto com milhares de refugiados.

Terminou o Mundial. Já há um campeão. Macron, o presidente que expulsa imigrantes, mas festeja a copa. Mas fora do estádio as coisas continuam iguais. O futebol continuará sendo um jogo bonito. As classes sociais e a opressão racial também continuarão sendo as mesmas.

A não ser que as derrotemos. Mas para isso não servem as pátrias nem as camisetas.

 
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