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CINEMA
“Auto de resistência”: os assassinatos do Estado nas telas do cinema
Fernando Pardal
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16.000 casos de “auto de resistência” ocorreram no Rio de Janeiro nos últimos vinte anos. O termo é um eufemismo para assassinatos cometidos pela polícia – supostamente reagindo a agressão por parte de bandidos – mas que ocultam a realidade de um massacre racista e impiedoso contra a juventude negra das favelas e subúrbios cariocas, muitas vezes execuções contra vítimas já rendidas. 98% dos inquéritos abertos para investigar esses casos são arquivados sem solução; os 2% restantes dificilmente chegam a juris populares, já que a lei reserva tribunais especiais para militares onde eles são julgados – e absolvidos – por seus pares. O termo "auto de resistência" foi substituído em 2012 por “homicídio decorrente de intervenção policial”, mas a prática é a mesma. A certeza da impunidade continua firme para os policiais, que sabem que muito raramente serão julgados, quase nunca punidos, e a punição, se vier, muitas vezes é uma mera alocação do policial para trabalhos internos ou alguma medida de tipo administrativo.

Essa é uma realidade monstruosa do estado do Rio de Janeiro, e que Natasha Neri e Lula Carvalho se deram o desafio de levar para as telas no documentário “Auto de Resistência”, e durante dois anos estiveram junto das famílias que lutam desesperadamente por justiça, enfrentando o peso de um Estado que tem como regra a criação do encarceramento em massa e das mortes de jovens negros, utilizando como seu instrumento para isso a polícia.

Neri é pesquisadora, e por oito anos, antes do projeto do filme, investigou a forma de atuar desse mecanismo. Decidiu, então, encarar o desafio de denunciar, escancarar ainda mais essa realidade das mortes encobertas pelo Estado por meio de um longa-metragem. Os casos que aparecem no filme, contudo, já representam a exceção, pois são casos que foram levados aos tribunais: “Os casos que chegam a ter um processo são a exceção. A militância dos familiares ou por conta da existência de vídeos que caem nas redes sociais acabam influenciando a possibilidade de abrir um processo”. São casos como a chacina do Borel, a chacina de Costa Barros, assassinatos de Johnatah, entre outros que são ilustrados no filme. Em entrevista ao site “Ponte”, Neri falou sobre como opera a impunidade na fase de inquérito (nos raros casos em que há): “Vemos um corporativismo entre a Polícia Civil e a Polícia Militar. Via dentro das delegacias e está impresso no modo como as investigações são feitas: o policial que investiga a maior parte dos casos é um policial civil que trabalha na mesma área que atua um policial militar que matou. Isso quando não é a própria Civil investigando policiais civis, como no caso da Favela do Rola [quando cinco pessoas foram mortas por agentes da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais) que sobrevoavam a favela, numa operação em agosto de 2012, na zona oeste, e foram absolvidos em 2017]. A maior parte dos inquéritos só traz como testemunhas os próprios policiais militares envolvidos nos homicídios. E aí a Polícia Civil alega que não tem condições de ir na área porque, em geral, a favela é estereotipada como uma suposta área de risco e não faz nenhum esforço para ir ao local. Mas a gente sabe que o Ministério Público pode investigar e, nos casos em que há possibilidade de denúncia, poucos promotores chegam a ouvir os familiares.”

Ela denuncia outros mecanismos perversos, como no caso das UPPs, em que o policial que mata permanece alocado no mesmo lugar, e a ameaça de retaliações em caso de denúncia é constante. Ou o fato de que os policiais acusados têm pleno acesso às armas supostamente apreendidas no crime, podendo adulterá-las à vontade; ou ainda que sequer são feitas, na esmagadora maioria dos casos, perícias nos locais dos crimes.

Vimos mais uma vez, com o brutal assassinato de Marcos Vinicius que as mortes continuam, e são cotidianas. Episódios como o massacre de maio de 2006, em que entre os dias 12 e 20 daquele mês pelo menos 564 pessoas foram mortas pela polícia, com traços inegáveis de execução, mostram que o Rio de Janeiro está muito longe de ser o único local do país onde a polícia mata massivamente a juventude negra com a certeza da impunidade. O maio paulista levou à organização do movimento “Mães de Maio”, das mães dos jovens assassinados que buscam justiça. Débora Maria as Silva, uma de suas lideranças, viu “Auto de Resistência” em sua estreia em São Paulo e reafirmou que é a mesma realidade, dizendo que o filme vai além de mostrar o massacre policial e mostra como diversos organismos do Estado atuam nesse mecanismo de impunidade: “O filme mostra que temos duas polícias, uma que mata e outra que não investiga, um Ministério Público que de público não tem nada e é o maior violador de direitos que existe, e um Judiciário que devia estar no banco dos réus”.

Além de uma denúncia contundente, que, por meio de poucos exemplos consegue traçar um retrato apurado de uma realidade de dezenas de milhares de mortes, o filme dá uma dimensão humana dessa tragédia fundamental, mostrando que as mortes desses jovens são muito mais do que números em uma fria estatística. Os discursos cínicos e hipócritas de advogados e policiais, que procuram julgar as vítimas e criminalizar suas comunidades em busca de uma “justificativa” higienista, racista e reacionária para os assassinatos, são de fazer o espectador querer levantar da cadeira do cinema e gritar com os que na tela representam essa estrutura social. As mães, pais, sobreviventes dos massacres expõem seu sofrimento, mil vezes revividos com o julgamento. Como dizem, ver seus filhos acusados pela mídia, pelos advogados, é como se eles fossem “assassinados mais uma vez”.

O pretexto das drogas e do tráfico – mais um expediente cínico, como se o próprio Estado e a polícia não fossem ligados a ele por mil laços – segue sendo a principal justificativa bisonha de uma política de “guerra às drogas” importada do imperialismo estadounidense que sempre foi um pretexto para criminalizar o povo negro e reprimir brutalmente suas comunidades.

“Auto de Resistência” é um filme imprescindível, que deveria ser parte fundamental do debate sobre a violência no Rio, um debate que é feito de forma manipulada, cruel, mesquinha e cínica pelos governantes e pelas mídias. A verdade, tal como ela é, aparece na obra de Neri e Carvalho. Não à toa, o filme foi feito por um edital com uma bancada independente, de 70% de pessoas que não eram ligadas ao Estado, de acordo com Neri. Mas as vozes cujo silenciamento cotidiano o filme quer romper seguem sendo caladas. São poucas as salas no país que exibem o filme, numa competição absurda e injusta com os blockbusters hollywoodianos. Contudo, o filme foi vencedor do festival “É tudo verdade” e indicado para concorrer ao Oscar. Esperamos que a voz desse filme se espalhe, fortalecendo a luta contra o Estado racista e assassino, que cala à bala as contradições do capitalismo que ele mesmo cria e sustenta. Veja abaixo o trailer do filme e saiba aqui onde assistir.

 
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