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CORONEL DA PM HOMENAGEIA MARIELLE NAS REDES
O que expressa a homenagem de um Coronel da PM assassina a Marielle Franco?
Fernando Pardal
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O Coronel Robson Rodrigues, da PM do Rio, postou um longo depoimento de lamento à morte de Marielle intitulado “Os sinos dobram por ti”. Não nos cabe aqui debater quais são os sentimentos pessoais de Robson frente ao brutal crime que indignou milhões de pessoas no Brasil e no mundo. O que queremos debater é o papel da polícia, do Estado, e se é possível que uma polícia feita e conduzida por muitos “Robsons”; se isso é algo que nós queremos e que pode acabar com monstruosidades como a que abateu Marielle e como a que mata cotidianamente nos morros e favelas.

O Coronel, em sua postagem, se atribui o lugar de um humanista, a quem “cada morte violenta arranca um pedaço da alma”, e que considera, tomando os versos do poeta John Donne, que "a morte de qualquer homem ou mulher diminui o gênero humano”. Pois é: uma humanidade em que as pessoas se matam é algo triste, profundamente lamentável. Mas as mortes não existem “em abstrato”: cada morte concreta tem um agente, uma vítima, e uma série de determinações que levaram a que ela ocorresse. Por isso, não é possível dizer que todas as mortes são iguais. Os assassinatos na Inglaterra elisabetana de Donne tiveram motivações sócio-econômicas diferentes dos assassinatos da sociedade capitalista atual: o crime contra Marielle é de responsabilidade dos golpistas e do Estado capitalista, uma de cujas instituições é a polícia. Por isso que a brutal morte de Marielle, por tudo o que ela representa, fez com que milhões se indignassem e centenas de milhares tomassem as ruas. Pensemos então nas mortes concretas que enfrentamos e, fundamentalmente, na relação da instituição da qual Robson faz parte, para podermos pensar efetivamente em como acabar com essas mortes.

O Coronel afirma que os comportamentos de uma unidade da UPP que, em seus próprios termos, “barbarizavam moradores de uma certa favela” eram incompatíveis com “o que se podia esperar de uma instituição que existe para combater o crime, mas, sobretudo, para servir à população.” Essa é a imagem que ele faz da instituição policial. Mas, como ela serve? Que crime combate? Os dados são claros, podemos vê-los, por exemplo, no Atlas da violência produzido pelo IPEA. Em 2016, as polícias brasileiras mataram 4.224 pessoas, 25,8% a mais que em 2015. Em oito anos, foram 21.897. Do número relativo a 2016, o equivalente a 81,8% tinha entre 12 e 29 anos e 76,2% das vítimas eram negras.

Para ficarmos apenas nesses poucos dados entre tantos, podemos concluir que: a) a polícia brasileira que supostamente “serve à população” é instituição mais assassina do país (uma das mais assassinas do mundo) b) suas balas tem alvo certo: a juventude negra das periferias, morros e favelas. Ou seja, se Robson está certo, poderíamos concluir que matar e encarcerar negros (a população carcerária do Brasil é das maiores do mundo) é a forma de “combater o crime” e “servir a população”. Isso quer dizer o que? Que os negros são “mais propensos a roubar”? Que matar é uma forma de proteger o “cidadão de bem”? Bom, seguindo a lógica do Coronel, de que a polícia está dividida entre “a polícia violadora de direitos, a polícia bandida” e a instituição policial com “aqueles que não querem que ela seja instrumentalizada para fins vis e elitistas, sendo direcionada para os mesmos estratos de onde a maior parte de nossos próprios policiais vem.”, poderíamos pensar que se trata de um problema de “orientação” da polícia: que ela só mata dezenas de milhares porque é “mal treinada” ou o que seja.

Mas não: a polícia é muito bem treinada, e isso Robson sabe. Ela é treinada para isso. A questão é justamente pensarmos o que causa a necessidade que o Estado tenha uma instituição que, de armas em punho, por meio da violência direcionada ao segmento mais explorado e oprimido da população, se garanta a “ordem” e a “paz social”. Trazemos aqui o depoimento de Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, em trecho do documentário “Notícias de uma guerra particular” que pode nos ajudar a refletir sobre a questão (ver trecho entre 02:40 e 03:40)

Como afirma sem meias palavras e de forma muito clara o ex-chefe da polícia, o papel da polícia é muito claro, e muito distante do que afirma Robson e toda a ideologia que nos é vendida sobre uma polícia com a função de “proteger”: em uma sociedade dividida em classes, ou seja, em que a propriedade privada que garante os bilhões de alguns é o complemento da miséria que submete outros à exploração e à privação, a polícia é o braço armado de um Estado que é um órgão de opressão de classe, uma máquina de despotismo dos capitalistas contra a classe trabalhadora e o povo pobre. Assim, não é uma mentira inteira que a polícia serve para “proteger”; ela serve, mas para proteger os que tem daqueles que não tem.

Sem dúvida a polícia militar é uma máquina de extermínio de jovens e negros, merecendo todo o repúdio massivo que se vê contra ela desde junho de 2013. Mas a polícia do Rio não é das mais violentas do mundo apenas porque é militar. Uma prova concreta disso é a polícia americana, também recordista em assassinatos do povo negro, e que não apenas é civil, mas possui xerifes eleitos. A polícia do Rio (bem como a de SP e do Brasil em geral) é das mais violentas do mundo por um motivo bastante claro: porque o país em que ela atua é um dos mais desiguais do mundo. Essa desigualdade estrutural e insolúvel dentro dos marcos capitalistas, ao lado de medidas como a proibição das drogas e a política de guerra contra estas, é o primeiro alimento do crime organizado. Como apontou Hélio Luz, é muito fácil para o tráfico recrutar jovens dispostos a trabalhar e inclusive a morrer e matar com essa situação de miséria. O esculacho da polícia já cria a raiva antes de tudo; a privação material, o desemprego, a pobreza criam a necessidade. Aí, o tráfico aparece com a “oportunidade”. Do outro lado, o Estado também oferece um salário um pouco melhor para que o jovem negro torne-se o carrasco a seu serviço, fazendo com que abandone os interesses de sua própria classe e vire um mercenário a serviço de manter essa exclusão: um policial.

Aliás, nunca é demais lembrar que o próprio crime organizado nasceu dentro dos presídios como um movimento de resistência aos abusos policiais. Dizia que era para fazer “justiça”. Mas, obviamente, se algum dia puder ter sido isso efemeramente, em pouquíssimo tempo se tornou uma lucrativa empresa que movimenta milhões. E, como todo nicho de mercado no capitalismo, se tornou um ramo lucrativo disputado pela burguesia, com ligações orgânicas com o Estado (e também, é claro, com a polícia).

Por isso, independente inclusive do que acredite em seu íntimo o Coronel Robson, a crença de que a polícia possa ser uma instituição “direcionada para os mesmos estratos de onde a maior parte de nossos próprios policiais vem”, ou seja, a classe trabalhadora, é uma pura ilusão destinada, tal como a repressão em si, a nos manter mais domesticados, mais calmos, menos rebelados contra esse Estado de coisas. A origem social de um policial não tem importância: uma vez subordinado ao comando do Estado capitalista, se torna um "agente armado da burguesia" contra os trabalhadores, sua classe antagônica.

A polícia nasce assassina e defensora de privilégios. Nasce, aliás, em 1831 para capturar negros que fugiam da escravidão. E hoje cumpre papel análogo. Em uma sociedade sem miséria ou desigualdade, superior a essa miserável sociedade capitalista, comandada pelas leis de mercado, em que um punhado de bilionários que não trabalham se apropria do trabalho excedente de bilhões de pessoas que não tem nada, não precisaríamos de um corpo especial, destacado e separado da sociedade com privilégios e impunidade, autorizado a reprimir. E hoje, independente de boas intenções, qualquer medida que favoreça a polícia, como melhores salários, melhores condições de trabalho, etc. é um fortalecimento de uma instituição que nenhuma reforma poderá transformar no que é sua essência: a repressão para garantir privilégios de classe.

O assassinato de Marielle, uma execução brutal que, todos sabemos, independente de quem tenha puxado o gatilho, está intimamente associado à sua denúncia da violência policial, da intervenção federal que cumpre o mesmo papel e procura agudizar a repressão como via de conter o aprofundamento das contradições sociais que é consequência da crise. Crise essa que é filha legítima do capitalismo.

Queremos, com todas as forças, fazer justiça por Marielle e honrar sua memória. A forma mais coerente e correta de fazer isso é lutar para que nunca mais alguém morra como ela, nem como a população negra moradora das favelas que ela sempre defendeu e morreu defendendo. Por isso não podemos nos iludir com o “canto de sereia” de policiais “democráticos” como Robson. O papel social de uma instituição não é feito de belas palavras e boas intenções. É feito de necessidades materiais e ações concretas. E, no caso da polícia, de muitas balas, muitas mortes, muito sofrimento. É uma instituição que não é nem nunca poderá ser nossa aliada, que nasceu com a barbárie capitalista e com ela deve morrer.

 
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